O Poeta [louco] das Flores
A pele negra está bastante enrugada, tanto pela idade quanto pela exposição diária ao sol enquanto trabalha. Mãos meio trêmulas, olhar às vezes perdido, o corpo já demonstra cansaço. Mas o Poeta das Flores, como é conhecido, luta para demonstrar que o tempo é apenas um companheiro inseparável. Suas roupas são bem simples, de um tempo em que se usava tergal. Ele usa um par de óculos de grau embaçado, que lhe ajuda a enxergar com o olho esquerdo. Wagner perdeu a visão do olho direito por não obedecer às prescrições médicas após uma cirurgia de catarata, em 2004. Este fato levou o poeta à depressão, inclusive ficou internado por dois meses num hospital psiquiátrico da cidade.
A poesia, companheira inseparável, lhe deu fôlego para persistir e vencer a tristeza. “Escrever e declamar me fez renascer, enxergar o mundo com outros olhos”, declara, apesar de se ressentir de não ver com os dois olhos, pois sua sede de conhecimento é maior do que pode abraçar.
A poesia, companheira inseparável, lhe deu fôlego para persistir e vencer a tristeza. “Escrever e declamar me fez renascer, enxergar o mundo com outros olhos”, declara, apesar de se ressentir de não ver com os dois olhos, pois sua sede de conhecimento é maior do que pode abraçar.
Wagner Américo Silva é um senhor de 84 anos de idade. Mede cerca de 1,75m de altura, 63 quilos, cabelo esbranquiçado, bem curtinho, já quase careca. Aposentado desde 1989, não se acomodou nem se acostumou a ficar em casa sem fazer nada, ou ‘aproveitando’ a vida, como muitos fazem.
Leitor inveterado, escritor de todos os dias e horas, Wagner carrega um caderninho onde anota os poemas que lhe vêm à mente. Acorda todos os dias por volta de 6 horas da manhã e parte para o batente. De sua casa, na Liberdade, para a barraquinha de bugigangas no terminal da Barroquinha, onde trabalha, ele gasta cerca de uma hora de ônibus de segunda a sábado. É no veículo que Wagner escreve poesias e guarda no bolso. Sonhando em publicar um livro de poesias, Wagner insiste em mostrar seus escritos a todo mundo, na esperança de receber um elogio. O poeta passa o dia inteiro no trabalho, vendendo ou tentando vender todo tipo de quinquilharia, desde zíperes a pente de espichar cabelo. De fácil conversa, apesar do ritmo pausado, faz amizade com vizinhos da barraquinha, com transeuntes e com os curiosos que se aproximam dele. Sempre declamando versinhos curtos, o poeta cativa gente de todas as idades. Sua saudação predileta, e que ele repete para quem lhe é apresentado, é esta:
“Vida, agora, total realidade,
Beleza de vida, rodeada de alegria,
Ao me dar felicidade em desejar
Meu caro amigo, bom dia!”
De volta pra casa, no final da tarde, ele se recolhe às oito da noite ao leito, a fim de descansar para a batalha do dia seguinte, que recomeça, invariavelmente, às 6 horas da manhã. Sua alimentação consiste em verduras, frutas, cereais e sucos de fruta. Wagner não consome carne nem derivados de animais. “Este é o segredo de viver 84 anos com a lucidez de um rapaz jovem”, gaba-se.
Quando tem um tempinho, o poeta prepara flores de papel colorido, em formato de rosas, nas quais grampeia um poema. O apelido Poeta das Flores lhe foi dado por Bene do Carmo, amiga há vinte e seis anos, com quem aprendeu a fazer flores de papel crepom. No início, Wagner comprava flores e distribuía junto com poemas, mas ficou inviável por causa dos custos.
Ele continua declamando nos finais de semana, quando caminha pela cidade, visitando as igrejas católicas da Liberdade e Centro Histórico de Salvador, recitando poesias e entregando rosas a quem lhe der ouvidos. O ritual é sempre o mesmo. O poeta aborda um transeunte, declama um dos seus poemas, abaixa-se e faz um gesto como se fosse beijar os pés da pessoa. Depois oferece a flor, esperando um elogio e uma gorjeta, que nem sempre vem. Wagner Américo não cobra para declamar, mas reclama, em particular, sobre a falta de educação dos brasileiros. “Quando é turista estrangeiro, recebo uns trocados, sou fotografado, o pessoal se aproxima, curioso”, desabafa. Em relação aos conterrâneos, Wagner é categórico ao concluir que “quase não me dão atenção, nem ao menos me agradecem ou me agradam”. Perguntado sobre o que é ‘agradar’, o poeta responde que seriam moedas ou mesmo uma notinha de dez reais, para complementar a sua renda.
Wagner revela ter um projeto cultural que “salvará a humanidade da perdição”. Trata-se do desejo de levar poesias às escolas e locais públicos, como praças e entidades e órgãos governamentais. “Eu queria saber o que é má índole, e ainda não descobri”, confessa ele, acrescentando que “a imprensa mostra muita violência na TV e jornais, quando deveria mostrar boas ações e incentivar o fortalecimento da cidadania”. Esta é sua missão: espalhar o amor, plantar a semente da solidariedade, falar de ecologia, denunciar os problemas sociais e as injustiças de toda sorte. Enquanto conquista espaço na metrópole, Wagner protesta contra o sistema político e segue sua vida de poeta errante: devagar e sempre.
Em dias de desfiles cívicos, como Dois de Julho e Sete de Setembro, bem como nas caminhadas do Bonfim e outras, ele se veste com uma toga preta, coloca a melhor roupa e sapatos, põe um chapéu de época e sai atrás do cortejo, com um estandarte no qual escreve um poema-desabafo. Suas vestimentas têm vinte, trinta anos de uso, de acordo com o poeta, que se gaba de poder preservar pedaços da vida através de objetos e das roupas.
Família de artistas
Wagner Américo tem nome de artista. A mãe apreciava música clássica, por isso colocou no filho o nome do músico alemão. “Aprendi a valorizar cultura no Rio de Janeiro”, se orgulha o carioca, filho de baianos que foram ao Rio em busca de emprego e lá tiveram o primeiro filho, em 1924. Com umano, Wagner voltou à Bahia, onde morou até 1943. Decidiu retornar à cidade natal em busca de emprego. Na capital fluminense, conheceu Helena Fontes Silva, com quem se casou e teve Sheila, hoje com 60 anos. Os motivos da separação dele com Helena, entretanto, o poeta se esquiva de falar. Desde 1963, ele vive com Cleusa Ramos, mãe de Tchaikovsky, 38, o segundo filho do poeta, e Strauss, 28, o caçula.
O Poeta das Flores convive com Cleusa até hoje, numa casa de dois quartos, sala, cozinha e banheiro, bem arejada, no Beco do Leandro, uma travessa da avenida Lima e Silva, próximo ao colégio Duque de Caxias. O beco onde ele reside é estreito, mal dá para passar duas pessoas lado a lado. Para se chegar à casinha, tem uma escada de uns trinta degraus. A casa tem, ainda, uma área superior, que Wagner usa para guardar livros, descansar, se recolher e escrever poesias.
A mulher é calada, fica somente a observar minha entrevista com o marido. Raramente fala algo, mesmo quando Wagner recorre a ela para lhe refrescar a memória sobre um ou outro fato do passado. Ela acompanha tudo, sem interferir.
Wagner, ao contrário, é falante. É um tipo que não pára de tagarelar, mesmo que eu tente interromper. Repete algumas frases já ditas, conta e reconta as mesmas histórias, como se tivesse ficado preso ao passado, do qual não deseja largar. Sobre seu gosto por poesia, o Poeta das Flores diz que veio da época em que viveu no Rio de Janeiro. “Quando morei no Rio, eu ia muito ao Teatro Municipal, assistia óperas e tinha contato com as pessoas que freqüentavam o ambiente”, relembra. “A cultura que aprendi lá é muito diferente da que vejo na Bahia. Aqui as pessoas não gostam de música clássica, de teatro, de ópera. Preferem essas músicas barulhentas, que enlouquecem a gente”, reclama.
De comerciante a camelô
Wagner diz que já teve dois armarinhos. De 1963 a 1974, a primeira lojinha era em sociedade com a família. Desavenças familiares motivaram sua saída do investimento em 1974, quando abriu um estabelecimento próprio, na rua Santos Dumont, 19. Esta loja mudou-se para a rua Marcílio Dias, 16, fechando as portas definitivamente cinco anos após a inauguração. O ofício de camelô Wagner Américo aprendeu no Rio, onde o poeta diz que vivia bem com as vendas. Na Bahia, após a experiência com as duas casas comerciais, teve vontade de voltar a ser ambulante. Inicialmente, sua banca foi instalada na Rua do Couro, ao lado do Hotel Castro Alves e da Igreja da Barroquinha, onde hoje é um Centro Cultural. Após o incêndio da igreja, em 1984, Wagner mudou o ponto para o final de linha da Barroquinha, onde trabalha atualmente. Sua riqueza são seus mais de 8756 poemas e rosas já distribuídas. Cada flor leva um número e um pequeno verso. “A riqueza do Wagner [a poesia] é intangível”, declara, convicto de ter feito a escolha certa para sua vida.
Pretende deixar de ser camelô para dedicar-se inteiramente à arte, mas a minguada aposentadoria de apenas um salário mínimo, que recebe do INSS, não lhe permitiu, ainda, o luxo de deixar o mercado informal, pelo menos por enquanto. Outro motivo justo para se manter na atividade é o projeto, antigo, de publicar um livro de contos e parte dos 97 poemas que afirma saber de memória. “Não vai ser um livro rebuscado. Será um livreto de poucas páginas”, resigna-se.
Num poema auto-retrato, Wagner revela: “No mundo louco de poesia e felicidade, o vil metal faz com que eu seja louco ativo e não possa viver no mundo dos loucos passivos. Eu sou louco”. Mas o Poeta das Flores fica indignado com aqueles que não o compreendem como um louco do bem, um louco lúcido e consciente do seu papel de cidadão. Revolta-se com aqueles que não percebem seu compromisso com a arte e dedicação em espalhar bondade através da poesia.
Um dos seus poemas prediletos:
Fui a Deus
Desesperadamente fui à alvorada, uma pergunta lhe fiz:
- O que devo fazer para sorrir, minha boa amada?
Ela me respondeu:
- Acorde a você e então será feliz.
Fui à manhã e tornei a perguntar, que de pronto respondeu:
- Levanta-te, anda com firmeza.
Fui à tarde, estava linda, calorenta mas suave, que retrucou:
- Levanta-te, anda e pisa com firmeza.
Fui à noite, com todo o céu fulgurante que surgia e implorei:
- Ajude-me que estou só.
Gargalhando com alegria, disse:
- Cubra-se e faça do próprio lume o seu lençol.
Fui à madrugada, orvalho caindo, deitei, rolei na relva como pássaro ferido. Ela me ordenou:
- Levante-se, erga-se, você não está ferido.
Fui ao vento, feliz aragem naquele instante:
- Imite-me, soprando as mágoas.
Fui ao mar, no seu vai-e-vem constante:
- Prossiga como as águas.
Fui ao firmamento e para encantos meus, tudo claro, total bondade. Ele me disse:
- Ama-me, ame à humanidade, ame a você próprio. Aí está a felicidade.
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