TIPOS DE ARTE: seleção artificial para o conhecimento da beleza do caos.

No sentido amplo, em que admitimos a arte como grupo de ofícios, o fabrico da obra encaminha a atividade, pela técnica e segundo a ciência, para o produto final, cuja exposição consumará, por medida do viés artístico, a arte de fato. A obra, este produto final de toda arte, entretanto, é muito distinta entre os vários tipos de arte. E é esta diversidade justamente o melhor parâmetro para definir, dentro do conceito geral de arte, subdivisões para posterior análise.

A prosa pura é uma maneira artística cujo conteúdo é completamente dissociado e independente da forma. E mais, a literatura de prosa, ao contrário das artes em geral, não tem a forma como parte de si, pois é essencialmente pelo conteúdo, muito embora não exista sem aquela (a forma). Não se pode dizer ser a obra da literatura o livro tampouco dizer que a forma se expressa no conteúdo. Esta última premissa se mostra improvável, visto que são entes separados, até que se prove o contrário, conteúdo e forma. E de outro lado um Lima Barreto é igual em sua raiz de prosa, não importa de quais cores ou de que tipo sejam as serifas das letras nem a sua disposição das mesmas que perfazem seu volume. De sorte que o conteúdo é a obra. E não há a prova em contrário pedida para uma fusão conteúdo-forma, mas, isto sim, uma separação confirmada pelo dito.

Em caminho inverso seguem os ofícios artísticos que, grosso modo, são pela forma física. A idéia de Rodin que provavelmente precedeu “O Beijo” não era arte de escultura, esta só passou a vislumbrar a partir da confecção sobre pedra da estátua. Ocorre também na pintura, cuja imagem sobre tela é algo necessariamente físico para que seja a arte pictórica e possui, como as artes deste grupo, aquele algo, conteúdo. De um lado o conteúdo intencional (do artista), volátil, porém pressuposto(1); e o conteúdo real e mais importante – vário, mutável, relativo, múltiplo, sempre em função de quem contempla a obra. Assim, essas artes são cosmológicas (se expressam na coisa).

Correto é dizer que nenhuma arte foge da natureza (das coisas e seus derivados ideais), todavia se relacionam as diferentes faculdades artísticas, através de suas obras, de modo diferente e particular com aquela.

O conteúdo nunca vem ao mundo. O conteúdo é uma idéia sobre o mundo: uma afirmação, uma negação, uma narrativa sobre as coisas(2). Transita, portanto, tão somente pelo “mundo humano”. Precisa, então, para “ser” algo, transferir-se de alguma forma para sujeitos(3). É aí que age a linguagem simbólica(4), cuja principal função, na prosa pura, é transmitir com exatidão a idéia do autor (obra). Uma piada pode ser objeto da prosa pura, desde que o humor esteja na situação inventada, e não no modo como se a diz nem nos trocadilhos que se faz com a língua formal tampouco numa situação real(5). Nas artes que se expressam na forma isso não ocorre, fundamento do qual decorre a separação que há no seu conteúdo(6), haja vista a essência múltipla do entendimento das obras quando em forma.

A prosa utiliza-se unicamente da linguagem de referencial formal. De forma tal que, porém, não a tem como fim, mais como meio. Linguagem feita de símbolos, não de arquétipos ou combinações físicas, este é o motivo pelo qual não tem a forma como imanente. Portanto, a linguagem referencial formal é imaterial: ao seu parâmetro – código artificial e unívoco para um grupo – se pode referir com o molde do físico por analogia. É dizer, em palavras nuas, que forjar uma peça de aço em forma da A com a intenção de referir-se à letra é usar (também) daquela linguagem. Então, esta se refere a um parâmetro (neste caso o alfabeto “grego”, válido para quem o conhece), que por sua vez alude às coisas possivelmente existentes; um caminho indireto até as coisas do mundo.

Em contrapartida, as artes cosmológicas usam a linguagem do real apriorístico para transmitirem-se e existirem. A linguagem do real apriorístico é a pela qual conhecemos as coisas pela percepção imediata dos nossos sentidos (visão, olfato, audição, tato, paladar), os quais nos remetem automaticamente, de forma mais ou menos profunda, a idéias nossas. É por esta linguagem que percebemos ser o sol menor que uma das montanhas que o escondem no horizonte. Esta linguagem diferencia-se, portanto, da linguagem do real, que se abriga na filosofia(7).

As artes cosmológicas usam a existência como coisa (forma física), de suas obras, para transmitirem algo que é uma analogia, uma relação de exortação, uma comparação entre o que está exposto e o que é subjetivo (interior) ao receptor. Se a intenção do artista se aproxima (pois nunca coincide) com o que despertou em quem lhe contempla a obra, isso é admirável, embora de forma alguma esta não consecução seja reprovável. Importante é entender que, devido à existência como coisa, à percepção de uma coisa pela linguagem apriorística, à existência de, principalmente, uma distância quase sempre grande entre o que se quis passar e o que se transmitiu de fato – existente pela intermediação da forma, a arte deve ser considerada cosmológica.

A prosa é pela própria idéia do que tenciona dizer. Uma narrativa pura, assim como uma argumentação, é o que pretende ser entendido, e não o que se ou a forma pela qual se mostra. Dessarte, a linguagem simbólica, em sua função de transmitir universalmente uma idéia, faz jus a si tecnicamente na prosa. Se o autor, ao escrever a prosa, transmite com clareza o que pensa, está antes sendo técnico que artista. A arte está na estória inventada, na anedota, de forma que, por exemplo, quem escreve as estórias pode ser um terceiro, sob o ditar do autor. Ao mesmo tempo, todavia, somos cônscios de que é impossível a uma arte existir se não trazida ao conhecimento de alguma forma; para a prosa isto se prende à expressão da linguagem simbólica – a forma. Portanto, a forma é necessária para a existência da prosa, embora não seja parte sua.

Se a prosa pura tem como obra o seu conteúdo, não é a arte cosmológica a única detentora da forma como obra. A arte gráfica é uma categoria artística, no entanto que não é nem a transformação do físico nem é o conteúdo puro e simples. Se a prosa pura se externa também pela linguagem simbólica gráfica, a qual gera uma imagem e a pintura trabalha com a composição de tintas, o que além de gerar um objeto físico resulta também uma imagem, é justamente este elemento último, em qualquer de suas formas graváveis e apresentáveis, a obra das artes gráficas. É, então, uma arte formal, porque, malgrado não se apresente como coisa, tem na forma imagética seu objeto(8). Nesta categoria estão as artes em que a imagem é a obra e independe da maneira como ela (a imagem) se mostra(9). O design, dito grosso modo em “duas dimensões”(10), é uma arte gráfica, assim como o cinema(11), cuja realização dispõe ainda de uma outra dimensão, o tempo.

Existem artes em que há a junção daquela dimensão às expressões físicas. A dança trabalha com a mutação constante da composição física do corpo humano, como as posições são formas físicas, podemos dizer sem receio que a dança é a variação, em qualquer intensidade, sob um ritmo proposital(12), do próprio corpo humano, em determinado espaço de tempo, com fim em si mesma. De tal maneira que esta arte sem dúvida se expressa cosmologicamente, porém, como subjacente à sua atividade há um mudar necessário, esta arte se caracteriza não tanto pela forma constante, mas pela sua variação (que supõe um tempo), de forma que se abriga melhor sob a categoria de arte rítmica, e não de arte cosmológica. O mesmo para a música, cuja expressão física existe no limite de sua variação e cuja dúvida quanto ao caráter desta expressão pode ser dissipada pela identidade entre energia e matéria.

No teatro, as cenas se constituem essencialmente de pessoas com falas e gestos. Não nos parece, aí, absurdo pensar em dança e música sobre o palco... Igualmente de maneira natural nos vem à mente a primazia da representação(13). Entretanto, não é somente com falas e gestos que se representa, afinal operar mamulengos e o trabalho do ventríloquo o que são? Representação é, na acepção aqui entendida, a montagem ou desenvolvimento(14) de uma cena. Esta que por sua vez caracteriza-se por “maquetear” intencionalmente a realidade à qual se refere(15). De um lado existe a cena animada, nas quais pessoas operando os seus corpos ou instrumentos representam com os movimentos e expressões necessários; de outro há a cena estática, composta de elementos físicos para a alusão a outra realidade. O teatro é a expressão da facção animada da arte cênica, grupo artístico que trata da representação como objetivo ostensivo(16).

Por fim, a poesia, outra categoria artística, não se expressa pela forma física necessariamente nem é o conteúdo tampouco o objeto de determinado sentido. Existem artes que dependem da linguagem simbólica para se expressarem, assim, a prosa pura, conteúdo, se externa pela linguagem simbólica. A poesia é a responsável pela maneira com que se usa a linguagem simbólica. Ela está tanto na maneira pela qual se dispõem as palavras no papel, no sentido múltiplo dos símbolos, na composição deles para a geração de sentido quanto na entonação do discurso. De tal forma que, entretanto, não foge às regras gerais do sistema de símbolos referidos. Por exemplo, se se usa a escrita para fazer poesia, a variação de cores das letras está distante do sistema de símbolos da escrita. Na medida em que este uso é uma confluência entre poesia e arte gráfica, coisa não pouco comum nem para estas nem para as outras artes todas aqui descritas, em acepção ampla é possível dizer ser a poesia o uso convergente dos vários sistemas de linguagem referencial.

Embora essencial em termos de definição, é evidente a artificialidade quase didática da separação que aqui se faz dos diversos ofícios artísticos. Na prática, o que ocorre é que algumas artes, no mais amplo dos sentidos dos termos que lhe dão nome, são mais frequentemente abarcadoras de outras demais, as quais se cooptam para conceber o produto final. Miscelânea que só nos engrandece. Assim, chamamos a associação prosa-poesia ou somente de prosa, ou somente de poesia, afinal dizemos ser Hamlet prosa e Os Lusíadas poesia, considerando a artificial diferença entre a confecção por parágrafos ou versos. Por outro lado, a pintura é uma arte que costuma manifestar-se só, igualmente a música, o que não podemos dizer também da dança, eterna amante das sete notas.

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1. Volátil porque não é possível deduzir seguramente qual foi a intenção de um artista a partir de determinada obra. Erro de entendimento já postulado sabiamente por Espinosa (no seu “Tratado da Correção do Intelecto e do Caminho pelo qual melhor se dirige ao verdadeiro conhecimento das coisas”), qual seja, o de deduzir uma causa pelo seu efeito. Mas devido à aproximação por parte das ciências humanas através de certo determinismo histórico, as disciplinas de história não erram, desde que não afirmem certeza sobre o que dizem. “Pressuposto”: a intenção é pressuposta, uma vez que, se toda arte nasce da ação volitiva de um homem, há alguma intenção sempre.

2. O conteúdo é uma sensação, como prefere Espinosa, se partirmos de seus dizeres sobre a idéia.

3. Se uma idéia como uma ficção se transmite para as coisas, podemos estar falando de teoria e práxis, e não de arte e forma.

4. A. Evidentemente linguagem simbólica é aquela feita de símbolos. Daí decorre o seguinte: 1. é criação humana, 2. refere-se a um sistema geral, 3. é entendida por um grupo. Exemplos: o alfabeto e o português (coloquial ou denotativo), falados ou escritos; a linguagem matemática; a língua de sinais para deficientes auditivos; a linguagem tribal de percussão; a linguagem entre os jovens na internet (embora oriunda de uma língua oficial), o desenho arquitetônico. B. O teatro não se aproxima duma transmissão exata do que determina o autor, afinal sua linguagem não é simbólica formal, mas real apriorística, própria das coisas (mais em parágrafo posterior).

5. Se o humor tivesse sentido na situação real descrita com exatidão e indiferença, não haveria arte, por ausência de transformação subjetiva intencional.

6. Cf. parágrafo anterior.

7. Deve-se entendê-lo no sentido de que o método da filosofia supõe uma investigação (indutiva ou dedutiva) para elidir dúvidas. De maneira que, se temos uma impressão sensorial apriorística e resolvemos, baseados na certeza da enganação dos nossos sentidos, investigar o que realmente ocorre além de nossas impressões, estamos fazendo filosofia.

8. Notar que, porquanto as artes cosmológicas se expressem pela linguagem do real apriorístico, ou seja, pelo a priori de todos os sentidos, e a imagem seja o objeto da arte gráfica, esta faz uma espécie de “recorte” naquela linguagem ao prender-se na visão unicamente.

9. A pintura não se encaixa nas artes gráficas. A obra da pintura é a composição de tintas sobre uma superfície, ou seja, a pintura depende e se define pela forma através da qual a imagem se mostra. A imagem, nesta arte, é uma derivação da percepção dela pelo sujeito, como ocorre com todas as coisas físicas visíveis. Do mesmo ocorre também com a escultura e as artes cosmológicas cujas obras se percebem também pela visão, nas quais este sentido é imprescindível. Portanto, pintura não é uma arte gráfica.

10. Os outros exemplos em “duas dimensões”, exclusive p.ex. a fotografia, podem ser incluídos no design “em 2D” (que, na verdade, trabalha com três, embora sobre o plano) lato sensu: a foto montagem; a arte em pixel`s; as artes cosmológicas quando expostas por meios diversos, como a reprodução computadorizada, sem perder a composição imagética geral (reproduções diferentes distorcem, ainda que imperceptivelmente, a imagem).

11. Na categoria de quatro dimensões se abrigam também a televisão e o cinema quando estes se caracterizam por si, mantendo, apesar de eventual cooperação, independência em relação à arte cênica.

12. Para qualquer refutação formalista a respeito do ritmo devemos compará-lo à escolha na medida em que ela nunca é aleatória realmente, quando parece ser, na verdade segue uma regra, porém infinita, motivo pelo qual “ritmo” não precisa ser cíclico.

13 O que denota uma finalidade ulterior e principal, que afasta o “fim em si mesma” das artes rítmicas.

14 Em conjunto ou isoladamente, ao mesmo passo ou não.

15 Realidade deve se entender por situação ou coisa do mundo que ocorre antes do ato cênico ou as que se pode buscar internamente (subjetivo ao espectador). E depois, o objeto ao qual se refere a cena pode ser um remendo de realidades.

16. Fica clara a necessária expressão física para a representação teatral, o que ajuda explicar a questão da nota no. 4. Ora, no teatro há uma interpretação através de falas e gestos de personagens p.ex., ferramentas que não se igualam à expressão física de uma linguagem simbólica formal (como o fonema está para uma língua), mas são expressões físicas “reais”. Ou seja, no palco, um aperto de mão é mesmo um aperto de mão, e não a expressão física que traz ao conhecimento um símbolo, símbolo que por sua vez alude a um sistema de referência, e que só então se refere à natureza (realidade). O aperto de mão é um aperto de mão, mas a finalidade de representação faz com que ele aluda a outro aperto de mão (em certos casos o aperto de mão de personagens) ou a outra coisa, mas diretamente (gesto-realidade). Portanto a linguagem é real apriorística.