Uma noite qualquer
Os badalos de um velho sino dourado ressoavam e desmanchavam-se junto ao ballet de um vento gélido que cobria aquela noite. A praça vazia, com gramas altas e bancos quebrados, marcados por lembranças, vozes, gritos de dor onde outrora houvera alegria. Nessa melancólica noite nessa tristonha e lúgubre praça, almas ineptas permaneciam inertes.
Passos fortes, apressados e longos, um homem magro, alto, de olhar longínquo e rude, como se o levasse para um abismo, cabelos longos, grisalhos e reluzentes a luz de um crepúsculo luar, sua pele pálida, de damasco tom, revelam cicatrizes, roupas escuras, quase imperceptíveis em meio ao breu daquela noite. Atravessa a rua em frente aquela praça, quando, misturado ao som de seus passos, um grito sufocante é ouvido estendendo-se pela noite. O homem desaparece em uma esquina.
No outro dia o enterro. Olhos chorosos ao passarem com aquele caixão escuro e lacrado pela praça vazia, atravessaram a rua que outrora aquele homem esguio houvera cruzado. Que ser, tão inescrupuloso e insensível, poderia ter cometido tal ato? Muitas perguntas, vindas de muitas partes e muitas pessoas, porém nenhuma resposta. Era mais um arquivo, um caso não solucionado na pasta de assassinatos.
Aqueles gritos pareciam ainda ecoar pelo apartamento, o lugar era frio, escuro e úmido, os móveis e objetos logo seriam cobertos por poeira, pois quem ali entraria ou viveria após aquele horror? As paredes de cor clara, eram tão novas que podia-se até sentir o cheiro da tinta, contudo, agora estavam manchadas por sangue, foram cúmplices, viram a garota, de pele rosada e macia, cabelos louros e encaracolados a altura da cintura, uma bela garota, ser esfaqueada, decepada e, por fim, ter a pele de seu rosto arrancada, e onde estaria a sua pele? Que ser iníquo teria feito? Todos perguntavam, ninguém respondia.
Manhã seguinte, um drink no bar emporcalhado da esquina, uma noite bem dormida, um descanso malévolo, céu claro, sem nuvens, com uma brisa levemente adocicada. Ao atravessar aquela rua estreita, feita de paralelepípedos, que traçava uma linha reta até aquela praça vazia, o homem encontrava-se em sua casa, as mãos apressadas trabalhavam, atentas a cada detalhe, costurando aquela bela máscara feita por peles humanas. Bastava apenas um único pedaço, sim um único e último pedaço, para que ele finalizasse seu trabalho de meses, mas não poderia encontrar essa pele numa mesma e pequenina cidade, pois cada pedaço, que ali estava cuidadosamente costurado, pertencera a locais mais diversos, de partes distantes de um mesmo país.
A tarde era dedicada a analisar perfis, a procura da imagem perfeita, aquela que se encaixaria no espaço não preenchido de sua máscara. Alimentava-se do sadismo e das más lembranças, aquelas de quando era criança, do abandono, da rejeição, das zombarias, dos padrões que nunca teve e tudo que o fez tornar-se insensível.
Noite torna-o caçador. Ele sai em busca de sua presa. Passos apertados e apressados, olhos atentos registram cada cena ao seu redor. E o vento baila, rodopia, ao som de gritos estridentes esvaindo-se pela noite.