Como nasceram dois poemas
Meti-me em devaneios e resolvi que seria significativo (ainda não sei bem a quem) que me pusesse a escrever sobre a gestação e o parto de dois de meus poemas. Então, aqui vai.
Fui privado da sensação de me suster em minhas próprias pernas aos nove anos de idade. Fato bastante significativo para o curso de minha existência: “a vida inteira que podia ter sido e que não foi”.
Nos primeiros anos em que aprendi a viver com um novo eu, pegava-me, muitas vezes, a divagar por cenas de uma época de pernas e aventuras infantis. Uma delas acontecia na praia da enseada, no Guarujá. Morávamos a pouco mais de dois quilômetros do litoral e, aos Domingos, parece-me ainda viva a lembrança, sempre íamos para lá. Era ali que me transfigurava em Tarzan, assim que vestia minha tanguinha preta e empunhava uma daquelas facas de plástico que acompanhavam alguns doces que comprava. Nas aventuras vividas, sempre enfrentei crocodilos enormes e onças e leões que se banhavam naquelas águas. O tempo foi aos poucos apagando as lembranças sensíveis de pés enterrados na areia fofa, de vento salgado no rosto e de pele úmida à milanesa.
Aos oito anos de idade vim embora para a terra de meus pais, minha terra.
Em Nossa Senhora da Glória, a vida foi mais severa conosco e não nos permitia a regalia de viajar 126 quilômetros para ir à praia, na capital Aracaju, de forma que até meus 19 anos estive muito distante daquelas sensações.
Já por essa época cometia meus poemas descaradamente. Lia-os em voz alta para minha mãe, enquanto preparava a comida ou lavava a roupa, mostrava-os aos amigos e pensava seriamente em publicá-los. Sentia-me poeta e escrevia por uma necessidade existencial, era minha forma de estar no mundo.
Inscrito num concurso público, precisei ir à capital para as provas. Fui com dois amigos, também aspirantes a poeta. Dever cumprido, o horário ainda o permitia, decidimos passear pela orla de Atalaia. De repente, todas aquelas sensações começaram a bolinar-me em silêncio. Parado diante do mar, celebrava silenciosamente o reencontro com a paisagem e sentia um dedo de melancolia por não poder dar ao meu corpo o prazer táctil e térmico de comungar com aquelas águas. Percebi então que meus companheiros maquinavam algum plano. Subitamente, um deles arrancou-me da cadeira de rodas e, rindo (os dois) às gargalhadas, começou a me levar para as águas.
Surpreendido e apreensivo com a brincadeira, pedia que me devolvessem à cadeira e acabassem com a piada, embora, intimamente, rezasse para que não me atendessem ao pedido até que pudesse sentir novamente meu corpo nas águas. Sensação indescritível. Extasiado, o corpo leve a boiar, tive a impressão de ser abraçado, não só pela amizade, mas também por aquele espetáculo simples e comum da natureza. O sal, o Sol, a leveza do corpo, a suspensão nas águas, as gargalhadas, a lágrima furtiva que consegui esconder naquele momento, me tornaram pleno por alguns instantes. Todo eu. Todo Ser. Não pernas nem limitações, mas Ser, sem limites.
De volta à realidade, devolvido ao meu canto, seguimos nosso roteiro premeditado e fomos, cobertos de areia, ao cinema no shopping. Filme bom? Não sei. Durante o resto do dia, fiquei numa espécie de transe e sentia profundo que um poema havia sido fecundado em mim pelas águas.
Em casa, no sossego do quarto, tentei realizá-lo em palavras. Nada. O momento era grande, eu pequeno. Era de parar e simplesmente sentir.
Algumas dias depois, novas tentativas. Nada, pelo menos que julgasse à altura do fato que lhe dera origem. Duas semanas depois, veio-me o seguinte poema:
TRILOGISMO
Solidão foi ver o mar.
Foi contente à capital,
Contemplando lindas serras...
De um lado tinha o Sonho
E do outro, a Plenitude.
O Sonho, sorriso puro
De magnífico afeto!
A Plenitude, de olhos verdes
E de cabelos dourados.
Amigos inseparáveis,
Companheiros verdadeiros,
Poetas de um mundo louco,
De loucuras incontáveis,
De amores impossíveis,
De leveza insustentável.
Solidão não tinha pernas
E foi nos braços do Sonho
De encontro àquelas ondas.
O Sonho então carregava
Em seus braços Solidão.
E a fazia sorrir...
E, entre risos, chorar...
E ao contemplar o mar
Nos braços de um poeta,
Percebeu a Solidão
Que nunca estivera só,
Pois em meio à imensidão,
Tinha o Sonho presente.
Caminham lado a lado
Contemplando lindas serras
Em direção ao poente.
Certos de que em frente
A Plenitude os espera.
Gostei dele, embora não revelasse o que me vinha na alma. Contudo, a personificação do Sonho, da Plenitude e da Solidão obscurecia seu sentido, de forma que possibilitava outras leituras, e isso me agradou.
Alguns anos depois, talvez induzido por mim, o fato se repetiu. Fui levado novamente ao encontro das águas, embriagado de amor. Estava apaixonado por aquela que assumiu o título perpétuo de “mulher da minha vida”. Dessa vez a cena foi registrada, justamente por ela. Enquanto embevecia-me novamente daquelas sensações aquáticas, percebia seu sorriso de plena felicidade ao me ver também pleno de êxtase, e fotografava tudo. Dizer que um raio não cai duas vezes no mesmo lugar, além de clichê é a mais ingênua mentira. Caiu. Lá estava eu a descobrir-me fecundado pelo mesmo gameta, e pela segunda vez.
Novas tentativas. Até que outro poema me veio:
NOS BRAÇOS DAS ÁGUAS
Meu corpo nos braços das águas...
Sorrisos envolta de mim...
A minha vida sorrindo
Brincando de me ver feliz
Captava na foto minha alma.
Meu corpo nos braços das águas...
Nas águas meu corpo sorri,
Nas águas meu corpo é mais corpo,
Nas águas eu sou mais de mim.
Simples, delicado e sincero. Este me pareceu realizar melhor o que me vinha na alma, mas ainda há muito daquele sentimento que ainda busca uma maneira de sair. Talvez a poesia fecundada naqueles momentos me acompanhe pelo resto de meus dias.
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