Meus bichos (2)
O nome dela era Dolly. Foi batizada pela minha mãe e chegou aninhada no colo de meu pai ao nosso pequeno apartamento no segundo andar de um pequeno prédio numa ruela sem saída chamada Beco do Mota. Eu e minha irmã éramos crianças e o medo que tínhamos de cachorro fez com que meu pai levasse um para dentro de casa e assim pudéssemos perder esse medo, sábio meu pai, dito e feito. Não só perdi o medo como me apaixonei pelos cães. Dolinha (era assim que eu a chamava) e eu crescemos juntas. Eu tinha sete anos de idade quando meu pai chegou com aquela pequinesa de 2 meses, olhos grandes e assustados, uma diarréia e sem rabo, era cotó a pobrezinha. Até hoje não entendo porque fazem isso com os cães, cortam o rabo, cortam as orelhas, amputam o “dedinho” a mais, e hoje em dia, pasmem!... cortam as cordas vocais prá inibir o latido. Mas a Dolinha quase não latia, salvo quando a visita se levantava do sofá se despedindo, aí era um problema sério, seus latidos e rosnados ecoavam pelo beco como um grito de guerra, e somente minha mãe, quando a pegava no colo, conseguia acalmá-la nessa hora. As visitas podiam chegar, mas partir... jamais! Ela viveu entre nós com a maior liberdade, assistia televisão conosco deitada no sofá entre as almofadas, dormia aonde bem entendesse, e esse entender durante bom tempo foi na minha cama, e quantas foram as madrugadas em que eu acordei com ela se remexendo no meu travesseiro exigindo mais espaço, e eu cedia. Nos passeios de carro ia no banco da frente apreciando a paisagem, com o focinho no vento, sob as mãos protetoras de minha mãe, mas se aparelhasse um ônibus ela descia da janela se protegendo do perigo, e quando chegávamos na garagem próxima ao beco, saía em disparada na nossa frente como numa brincadeira “de quem chegar por último é a mulher do padre”... e eu ficava morrendo de medo dela se perder, mas isso nunca aconteceu, nós a perdíamos de vista, mas era só entrar no beco que já podíamos ver aquela coisinha pequenininha sentadinha no portão do prédio esperando por nós. Eu gostava de olhar o movimento do beco no parapeito da janela na companhia dela, as corridas pelo corredor atrás de uma bola e o grito de gol quando ela a empurrava prá debaixo da cadeira, o pedido de carinho quando nos surpreendia deitando de barriga prá cima sobre nossos pés, a porta do banheiro arranhada por saber da minha mãe lá dentro sozinha... isso não podia, ela chorava e num gesto aflito das patas implorava que a porta se abrisse, e minha mãe lá de dentro pedindo calma... eu já vou!... espera!... e quando a porta se abria ela corria pela casa demonstrando a sua alegria, o pedido de socorro quando se aventurava pelo vão atrás do fogão e não conseguia sair justamente por causa da sua tigela de comida que impedia a saída, e quando escutávamos o chorinho, eu e minha mãe nos olhávamos e dizíamos: “lá foi ela pelo fogão...”, e lá íamos nós acudi-la. Ela era cheia de pequenas manias, como são todos os cachorros, e eu amo todas essas manias caninas.... eu amo todos os cachorros que tive, tenho, terei e, também, os que não tenho.
Fui crescendo com ela, brincávamos juntas e brigávamos também... mas eu tinha um truque, quando ela rosnava prá mim eu emitia um som como um beijinho espremido e ela ficava hipnotizada me olhando... tudo sobre controle, eu só não sabia do meu descontrole ao perdê-la.
Foram quinze anos de uma convivência que se confunde com as lembranças da minha infância, adolescência e até mais... de grande parte da minha vida. Já com bastante idade, Dolinha pouco andava, se limitava a ficar num cantinho do apartamento, que já não era mais o do beco, e seus olhos não brilhavam mais devido à catarata. Um dia dormiu e não acordou. Quando cheguei em casa da faculdade e vi o cantinho vazio, não foi preciso perguntar por ela, chorei abraçada com minha mãe, enquanto meu pai estava em algum lugar sob uma árvore no Alto da Boa Vista para dar aconchego ao descanso dela. Nos dias seguintes faltei à faculdade, chorei durante três dias, e se eu continuar a escrever... é melhor parar por aqui.
(...continuando a série "Meus bichos" em homenagem à nossa querida colega Sal...)