COTAS PARA NEGROS NAS UNIVERSIDADES PÚBLICAS DO BRASIL: de como o principal argumento em favor de sua rejeição é inválido.

Na discussão a respeito das quotas para negros(1) nas universidades públicas do Brasil, a opinião da classe média brasileira é um exemplo da política bem sucedida da grande media de incutir, no seio daquela classe social, uma opinião. A opinião, que é a principal manifesta no país pelos contrários às cotas, é a seguinte: “não se deveriam estabelecer cotas para negros, pois é subestimar-lhes a inteligência, posto que é dizer que eles não têm condições intelectuais equivalentes aos brancos para disputar em igual nível as vagas nas universidades [e que isso torna esta ação (de estabelecer cotas), preconceituosa)”. Vejamos, então, como este argumento(2), que é aparentemente verdadeiro, não é nada senão um subsídio para a imposição de uma tese, qual seja, “não se devem estabelecer cotas para negros”.

Isto sabido, das duas uma: ou a classe média usa este argumento, no campo apenas ideal, sem considerar as reais condições do negro no Brasil, ou considera as condições reais – e, claro, mantém o argumento e a tese. Pois bem, analisemos as duas hipóteses, apesar de que, claro, uma opinião no mundo real, quando sobre coisas reais, tem – é minha opinião que isso é consenso – de levar em conta condições reais. Se fosse rígido desta maneira, eu já teria descartado a validade do argumento se inserido num campo ideal. Porém, me interessa provar ser, aquela idéia, inválida tanto teoricamente quanto praticamente; lembro-lhe: quero provar ser falso o argumento, e não a tese.

Então vamos à primeira, a hipótese ideal. Notemos que, quando se afirma que “não se deveriam estabelecer cotas para negros, pois é subestimar-lhes a inteligência, porque é dizer que eles não têm condições intelectuais equivalentes aos brancos para disputar em igual nível as vagas nas universidades”, é dizer, também, que as cotas visam igualar as condições intelectuais. (Se o leitor não entender esta dedução imediata, favor reler e pensar por si, pois esta é de fundamental importância para se compreender o contra-argumento.) Observemos, por esta razão, que racista é o argumento, e não a inserção de quotas. Ora, se até recentemente o efetivo percentual de negros nas universidades públicas era baixíssimo e a classe média diz que a função das cotas é igualar em nível de disputa, está, então, automaticamente, dizendo que os negros são menos inteligentes e não tinham, por este motivo, significativo número de vagas naquelas instituições.

Para entender melhor, pormenorizo. Primeiro. Não entravam antes do estabelecimento de quotas nas universidades públicas, número substancial de negros nestas instituições (é um fato). E neste tempo as condições de disputa eram iguais (considerando ideal a conjuntura, como se nenhum fator influenciasse). Logo tem de haver alguma razão para este paradoxo, o de negros disputarem as vagas em igual nível de condições externas, mas quase não constarem no quadro de estudantes universitários. Como este argumento é tido, aqui, na primeira hipótese – que é a ideal –, os motivos históricos e qualquer outro motivo material não podem ser levados em conta (serão, na análise da segunda hipótese) para compor aquela razão, que ainda não sabemos qual é. Segundo. Agora, após o estabelecimento das cotas, número substancial de negros entra nas universidades públicas em que este sistema funciona. As cotas oferecem algum tipo de subsídio para os seus beneficiários (é lógico), no entanto, no caso dos que defendem aquele argumento, este subsídio é algo que visaria igualar as condições intelectuais. Se após o estabelecimento das cotas ocorreu o aumento do número de negros nas universidades, é porque as cotas funcionaram. Se funcionaram é porque conseguiram igualar o nível intelectual. Mas se só com igualação do nível os negros conseguiram vagas, então: os negros não conseguiam vagas antes, por serem menos inteligentes; isto seria a única explicação plausível quando falamos de um método, como o teste vestibular, que avalia intelectualmente. Portanto essa seria também a resposta àquela dúvida do início do parágrafo – sobre que razão levaria àquele paradoxo. Conclusão, este argumento, no campo ideal, é preconceituoso e, por isso, inválido.

Sobre o argumento, os defensores deste poderiam, neste ponto do texto, aceitar quanto preconceituoso ele é no bojo ideal, porém, não deixá-lo de lado, argumentando que é válido em condições reais. Mas não é. Se aqueles defensores partem para a realidade, têm de reconhecer os quase 350 anos de escravidão dos povos negros neste país; que os atos da resistência negra foram e são tão escondidos que não se os conhece se não se é especialista no assunto. Tanto que quase a totalidade dos que agora lêem estas páginas não sabe sobre a representação abolicionista da flor camélia, por exemplo – e não tem qualquer culpa disso. Os defensores do argumento devem levar em conta, ainda, que o ato da Princesa Isabel, não foi senão fruto de uma pressão externa britânica para inserção do Brasil como mercado consumidor no capitalismo industrial pujante; que aos negros nada foi dado em seu processo de “libertação”, a não ser o próprio corpo debilitado; que, mesmo após 120 da assinatura da Lei Áurea, o nosso país é racista; que as possibilidades de ascensão de um negro pobre são muito menores comparadas às de um branco [pesquisas o comprovam e, claro, não é culpa dos negros (a não ser que nos arraiguemos àqueles argumentos preconceituosos)]; que num país onde pelo menos a metade da população é afro-descendente é preciso redigir em lei a participação mínima dos pertencentes a este grupo nos comerciais de TV; que temos apenas um senador negro, entre 81, no congresso nacional (Paulo Paim, PT-RS); que a classe média – quase toda branca – contrata pessoas igualmente brancas, que por sua vez tornam-se parte daquela e continuam o ciclo; que a maior parte da população negra do Brasil é pobre e que a maioria dos pobres brasileiros são negros. É preciso admitir tudo isso para sequer cogitar ter aceito aquele argumento em condições reais. Devem, portanto, levar em consideração que a “igualação das cotas” não é, nem nunca pretendeu ser, igualação do nível intelectual. É sim, uma tentativa de restabelecer a igualdade democrática de condições materiais e de condições de aceitações cultural e imagética.

Ainda é vago parar aí. O que seria de fato a igualação das condições materiais, de aceitação cultural e de aceitação imagética?

O primeiro fator desta igualação referir-se-ia a dar subsídio à população negra de baixa renda, que não tem acesso à escola da qualidade que exige o vestibular das universidades públicas. Mas este fator se poderia incluir nas cotas para população de baixa renda ou nas para escolas públicas, ao contrário dos dois últimos fatores; os quais explico na seqüência.

Igualar a aceitação cultural é, nesse caso, fazer estarem em mesmo nível de conhecimento e respeitos gerais as culturas dos povos africanos e afro-descendentes em relação às dos indígenas e índio-descendentes e dos europeus e euro-descendentes, no país. E como age a entrada dos negros na universidade para isto? Ora, quem são os maiores difusores das idéias e do respeito às suas próprias senão a classe média? Formar uma classe média heterogênea(3) é: primeiro, tornar a aceitação, o conhecimento e o respeito culturais mais abrangentes às culturas diversas que compõem o nosso país; e em segundo lugar, reunir a diversidade cultural de que dispomos em um grupo social unido no presente capitalismo – a classe social.

Quanto à aceitação imagética, concerne mesmo à imagem. A discriminação racial(4) se dá, via de regra, pela observância dos aspectos físicos do ser humano que lhe é vítima e, evidente, tão logo a rejeição destes caracteres, a exclusão e/ou penalidade direta aos seus portadores. No caso do preconceito racial brasileiro em questão, são os traços físicos africanos, mas principalmente a cor da pele, os fatores atingidos pelo preconceito. E a exclusão, que antes era pena direta – escravidão –, se mostra hoje na rejeição/exclusão de indivíduos com aqueles traços corpóreos em atividades econômicas que envolvem a imagem, quais sejam, a publicidade(5) e os serviços. Portanto, adicionar indivíduos de traços físicos negros nas classes contratantes melhoraria a aceitação imagética, além disso, como ocorre no esporte e na arte, teriam os negros em quem se espelharem para alcançar o sucesso financeiro(6) etc.

Tudo o que disse, porém, não justifica a existência de cotas, apenas põe evidente a necessidade de reparação aos negros de alguma maneira. Se as cotas são o método melhor de fazer isso, não pretendemos afirmá-lo nem negá-lo. Entretanto, reiteramos ser necessário reparar sim, afirmamo-lo sem escrúpulos, esta dívida que tem o Estado brasileiro para com aqueles sobreditos, tanto quanto para com os índios, os deficientes físicos e outras minorias(7), embora haja proporções muito distintas de prejuízo entre estes todos.

O que é verdadeiro, sem dúvida, é que, primeiro, aquele argumento (ao qual combatemos) é superficial em sua análise. Segundo, que obviamente a discussão a respeito das políticas afirmativas deve ser mais profunda. E, finalmente terceiro, que devemos, nós todos, brasileiros, estar atentos aos perigos do que nos tenta veicular a mídia; fazê-lo confiando a verdade à associação entre a nossa capacidade de discernimento e as diversas fontes de informação, e nunca aos veículos comunicativos de massa, apenas. Pois assim, pensando por nós e escutando dois lados ou mais lados de uma questão, e nos manifestando de alguma forma (como faço a redigi-lhe este texto), estaremos gozando da liberdade democrática e exercendo-a ao mesmo tempo.

-------------------------------------------------------------------

Notas

*Andrié Roberto da Silva (Andrié Silva/Andrié Keller)é aluno da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA. (andriesilva@hotmail.com).

1. Refere-se a negros e mestiços de negros.

2. Atentemo-nos. Em “não se deveriam estabelecer cotas para negros, pois é subestimar-lhes a inteligência, posto que é dizer que eles não têm condições intelectuais equivalentes aos brancos para disputar em igual nível as vagas nas universidades”, a tese é “não se deveriam estabelecer cotas para negros”, enquanto o argumento é ou está em “pois é subestimar-lhes a inteligência, posto que é dizer que eles não têm condições intelectuais equivalentes aos brancos para disputar em igual nível as vagas nas universidades”.

3. Duas notas: 1. “heterogênea” refere-se neste caso à composição da classe média por diversas etnias. 2. Notemos algo interessante. Uma classe média homogênea (de uma só etnia predominante), para aceitar, respeitar e conhecer as diversas culturas que compõem seu país, deve ser bem instruída. Instrução que não diz respeito apenas à qualificação profissional, mas à instrução de educação real – ou seja, social, cultural, política e formal. Nesse caso, uma classe média bem instruída, primeiro, não se deixa guiar pelos meios de comunicação de massa, pelas ideologias e controles, segundo, acaba por incluir as outras culturas e etnias nacionais, visto que, ou enxerga o problema e tenta corrigi-lo, ou involuntariamente, em sua indiferença quanto a quem contratar, inclui.

4. Não existe raça entre os humanos segundo a biologia, mas também não tomamos “raça” no sentido biológico. Usamos este termo apenas para nos referir a cada um dos grupos étnicos de traços físicos característicos.

5. As atividades publicitárias em sua maioria envolvem a imagem: propagandas televisivas, programas de TV, outdoors, cartazes, revistas etc. Sobre revistas, por exemplo: “(...) Os preconceitos da elite são refletidos pela revista (Veja). Além dos movimentos sociais, há quem relate que um dos bordões de Tales Alvarenga, atual diretor de publicações, em sua fase à frente da revista era: “Não quero gente feia”. Por gente bonita, referia-se não apenas a padrões estéticos de magreza, mas também aqueles ligados à cor da pele. Segundo colaboradores próximos, fotografar negros seria quase certeza de material desperdiçado.(...)” [In “Revista Veja: laboratório de invenções da elite”. MASSAD, Anselmo. No site: www.novae.inf.br (este endereço é da página principal)].

6. A grande importância que damos ao caráter financeiro da ascensão deve ser encarada como atenção sóbria. Pois temos que focar este elemento, visto que é o principal fator de integração cultural no capitalismo. Afinal, as idéias dominantes são as idéias da classe dominante – dizia Marx – e o principal acesso à classe dominante, no Brasil, (excluindo nascer numa família burguesa) é pela classe média. Além disso, temos por opinião que a própria classe média, enquanto tal, pode ter influência grande na ideologia, uma vez que a educação e a auto-conservação pode lhes mudar o caráter de apenas reprodutor das idéias da classe social superior.

7. “Minoria” não é usada aqui na sua acepção literal, a qual leva em conta a quantidade. Mas sim, uma concepção social, ou seja, na qual a predominância (de influência, composição da elite financeira etc.) e a exclusão social entram no conceito; aquela para negar e esta para afirmar o caráter de minoria de uma classe.