João do Violão
Êta João que demorava chegar com a rapadura que seu pai havia mandado comprar na venda do Jabar... parece até que não conhece o pai Véi-Nardo, bravo que só ele.
Uma hora depois...
Êta João sem vergonha, agora sei. No horário do trabalho, precisamente depois que almoçou, botou o violão por debaixo do braço e foi pro boteco tocar, cantar e prosar pra pinga vir de graça. Quando chegou em casa, já estava escuro, então Véi-Nardo chegou de mansinho por trás dele, tomou-lhe o maldito violão e foi uma só! É, na cabeça. Quebrou o violão e o Véi ficou feliz pelo infeliz do João.
1975, Município de Itamaraju, em algum lugar do Brasil. Véi-Nardo, pai de mais de quinze filhos – ele só sabe dos que estão vivos – dono de uma sapataria montada de madeira e lona e em sua única caixa de ferramentas havia tarraxas e uma navalha. No centro da sapataria, seu banquinho de madeira sem encosto. À sua esquerda a velha, manual e fiel máquina de costura e finalmente à sua direita todas as formas de madeira para fabricação de botas, exceto a do pé direito número 43 que nunca ninguém soube dar notícias dela. Dos quinze filhos o único funcionário era o João do violão, que sempre escolhia a pinga, na hora do café com pão.
Tempos difíceis onde as frutas eram contadas em seus pés para a hora da fome-negra. As encomendas variavam entre um parzinho de botina aqui, uma correia (cinto daquelas de fivelas imensas estilo cawboy) ali, as contas eram pendências bravas de se cumprir. Penúria das grandes que causavam no Véi-Nardo saudade dos tempos das encomendas que para entregá-la, tinha de implorar por sacos de linha nas vendas... e no receber dos serviços, dava até pra comprar carne.
Êta João que não chegando, Véi-Nardo encaixou seriamente o chapéu na cabeça – é claro – partiu sem saber pra onde, mas na ânsia de encontrar a rapadura e companhia. Logo encontrou João com uma lata numa mão e uma dose de pinga na outra.
- Você é surdo rapaz! Pedi pra comprar rapadura pra sua mãe e o moleque me compra cola de sapateiro? Isso eu tenho!
- Não é cola de sapateiro, não pai. É a aquelas pra madeira, que usei pra colar o violão.
Num só gole, João virou a pinga e desfazendo-se do resto da cola, aferrou novamente por entre os braços o venerado violão e partiu pra casa em função de não se repetir o feito do golpe-de-viola no meio da rua.
Chegou em casa, guardou com carinho a viola na sapataria a aguardar completa colagem, acendeu uma vela e ali ficou esperando o Véi-Nardo que, na chegada, fora logo metendo a mão na viola e arremessando-a ao outro lado da rua. Pegou o esquerdo 43 e disse:
- “Esse aqui num vai fazê farta nenhuma e nem ocê, sem vergonha!”
O violão já tinha ido, mas dentro da sapataria voaram os pés de madeira de todos os números, pés e mãos de verdade, tarraxas, fivelas... e só deu João saindo pela rua a gritar:
- Socorro! Meu pai ta doido!
Quanto mais ele gritava, mais peões corriam pra ajudar o Véi-Nardo, quando ouviram alguém gritando: “a sapataria do Sinhô ta pegando fogo seu Véi-Nardo!”
Agora sim. Voltam o Véi, os peões e até o João pra ajudar a apagar o fogo. Baldes e até tigelas haviam muitas, o que não tinha era bombeiros e a cisterna era muito funda. Tanto que na quinta puxada de corda, a sapataria era apenas cinzas.
Êta João acendedor velas próximo à cola de sapateiro, óleo de máquina, couros...
Condoído, o prefeito Zé Lima ao saber do ocorrido, deixou o Véi-Nardo melhor do que estava. Fez uma grande encomenda a permutar pelas máquinas e ferramentas que agora tinha inclusive o par 43!
Menos de dois anos após a queima da sapataria, Véi-Nardo veio a falecer e alguns dias depois, a mãe de João, Dona Glória.
Falando no João, ta vivo. Trocou botecos por uma igrejinha que hoje é um grande templo que ele pastoreia, de “cantor de botequins” passou a Levita, de sapateiro a proprietário de uma grande fábrica de calçados e acessórios no centro de algum município do Brasil.
Êta João!