A última floresta 

 

A cidade crescia como uma criança faminta, engolindo colinas e córregos. Marina, cansada do asfalto que ardia sob seus sapatos, seguia para a floresta todas as tardes. Não era uma floresta grandiosa — apenas um remanescente teimoso entre prédios em construção, onde as árvores sussurravam histórias antigas em dialetos de vento.  

Naquele dia, o crepúsculo chegou mais cedo, tingindo o céu de um alaranjado bonito. Marina caminhava pela trilha habitual quando ouviu um estalo seco, como galhos quebrados sob um peso desconhecido. Entre os troncos de eucalipto, viu movimento: flancos dourados, crina negra desgrenhada. Um cavalo? Não. A silhueta ergueu o torso, humano até a cintura, e ela conteve o ar nos pulmões.  

Ele tinha olhos de âmbar, profundos como poços de mel esquecido. Metade homem, metade animal, seu corpo era uma contradição viva — músculos tensos de equino, braços marcados por cicatrizes que lembravam letras de um alfabeto perdido. Na mão direita, segurava um punhado de margaridas selvagens.  

— Você veio para arrancar mais árvores? — A voz dele era áspera, como terra rachada pela seca.  

Marina balançou a cabeça, as palavras presas na garganta. Apontou para as flores em sua mão.  

— Elas estão sumindo — ele murmurou, esfregando uma pétala entre os dedos. — Antes, esta floresta era um rio verde. Agora, é um fio de água suja.  

Ela se aproximou, devagar. O cheiro dele era mistura de musgo e suor, nada como o odor metálico da cidade. Notou que suas feridas tinham brotos minúsculos nascendo nas bordas, verdes tenros insistindo em existir.  

O vento balança as copas das árvores remanescentes. Ela senta-se em uma raiz exposta, o centauro deita-se sobre o flanco, seus olhos âmbar fixos nas nuvens que escorrem sobre a cidade ao longe.  

Marina tocando uma margarida entre os dedos:  

— As pessoas dizem que amor é coisa que se planta, como semente. Regar todo dia, colher quando florescer.  

Ele sorrindo com amargura:  

— Humanos gostam de mentiras bonitas. Amor não é semente. É raiz. Cresce no escuro, sem pedir licença. Estrangula, alimenta, sobrevive até quando tudo acima do solo morre.  

Marina erguendo o rosto :  

— E como um centauro ama?  

Ele puxando uma folha seca da própria cicatriz, onde um broto verde teima em nascer:  

— Como o rio ama a pedra: corroendo, moldando, levando um pedaço consigo a cada cheia. Sem perdão. Sem arrependimento.  

Ela aproximando-se, voz suave:  

— Isso parece... doloroso.  

O centauro estendendo a mão, deixando que ela toque os sulcos de sua pele áspera:  

— Dor é o que resta quando o amor é verdadeiro. Você acha que essas árvores gemem de prazer quando o vento as dobra? Mas gemem mesmo assim. Porque é melhor ser partido pelo vento que secar em pé, intocado.  

Marina com os dedos dele enroscando-se entre si :  

— E se eu disser que quero ser partida?  

O centauro retraindo-se, o casco batendo no solo como um trovão abafado:  

— Você não é da floresta, mulher. Seu amor é feito de horas, não de estações. Um dia, você vai olhar para mim e ver só um animal. Ou um monstro. Vai correr de volta para suas luzes de plástico e esquecer o sabor das raízes.  

Marina firme, segurando seu pulso:  

— Você fala como se fosse imortal.  

Ele rindo, um som que ecoa como cascata em pedras:  

— Sou feito do que a cidade não consegue matar. Mas você... você é feita de pó breve. E eu não sobreviveria a mais uma semente morta em minhas mãos.  

Silêncio. Uma margarida desabrocha abruptamente no cabelo de Marina, suas pétalas brancas tremendo. 

Marina sussurrando, enquanto a primeira escavadeira ruge ao longe:  

— Ensina-me, então. A amar como rio. A deixar que meus ossos virem leito para suas águas.  

O Centauro encostando a testa na dela, o calor de seu corpo misturando-se ao cheiro de terra molhada:  

— Cuidado, mulher. Porque se eu começar... não vou saber parar. E quando você se for, vou cavar o mundo inteiro atrás de seu rastro. Até que todas as cidades virem pó, e todas as florestas, um epitáfio com seu nome.  

Ela ri, um som úmido, enquanto a primeira pá de concreto cai na borda da mata. Algumas margaridas, ali, já começam a ser destruídas  pelo cimento.

— Por que você fica? — perguntou Marina por fim.   

O centauro riu, um som rouco. — Sou feito do que sobra. Das raízes que eles não conseguem arrancar, das sementes que voam para o asfalto e germinam nas frestas. — Inclinou-se, oferecendo uma margarida. — Leve. Antes que apodreça em minhas mãos.  

Quando seus dedos se tocaram, Marina viu flashes: um rio cortando a floresta como uma veia, cervos bebendo sob a lua, o primeiro machado cravado num carvalho ancestral. O centauro puxou a mão, recuando.  

— Volte amanhã — disse, virando-se. — Se ainda houver flores.  

No dia seguinte  a  tarde está quente, o ar pesado com o cheiro de concreto fresco. Marina chega à clareira com um pote de geleia de amora — colhidas dos arbustos que existiam onde agora há um estacionamento. O centauro está deitado sobre um tapete de folhas secas, trançando margaridas em correntes frágeis. Suas cicatrizes, hoje, estão cobertas por líquens azuis. 

Marina sentando-se próximo a ele, segurando o pote:  

— Trouxe algo doce. Para compensar o amargo que você tanto fala.  

O Centauro cheirando a geleia, fazendo uma careta:  

— Açúcar mascara veneno, não cura. Mas vou comer, só para ver você sorrir.  

Ele mergulha um dedo no pote, lambe devagar. Marina ri, o som ecoando estranho na clareira vazia. Há um trator parado a cinquenta metros, coberto por um pano, como um animal adormecido.

Marina apontando para os líquens em seu peito:  

— Está se transformando em montanha?  

O Centauro erguendo uma das correntes de flores e colocando-a no pescoço dela. 

— É o contrário. A montanha está se transformando em mim. Pedra vira carne quando não há mais lugar para ser pedra.  

Ela toca as flores murchas na corrente. As pétalas se desfazem ao contato, virando pó dourado. O centauro não comenta.  

Marina olhando para o céu, onde helicópteros riscam o azul:  

— Amanhã vou chegar mais cedo. Trago sementes de ipê. A gente planta onde o rio secou.  

Ele puxando uma lasca de madeira petrificada do chão e entregando a ela:  

— Guarde isso. É mais antigo que seus deuses de concreto.  

Marina virando a lasca nas mãos, notando veias pretas na superfície: 

— Parece um osso.  

O Centauro sorrindo, os dentes brancos como quartzos:  

— É. O osso de uma árvore que amou demais o sol.  

Um silêncio. O vento traz o ruído de uma britadeira. Marina se levanta, sacudindo a saia. Caminhando em direção à trilha, sem se virar:  

— Amanhã a gente refaz a cerca de galhos. Os caminhantes estão entrando mais fundo.  

O Centauro deitando-se novamente, fechando os olhos:   

— Amanhã.  

Ela hesita, quase volta. Ainda vê ele cavalgar em sua direção e por um momento sua sombra  cobre todo o corpo dela, sensualmente. Imagina perguntar por que ele não a chama para ficar, por que não foge com ela para onde as florestas ainda são nomes em mapas. Mas o celular vibra no bolso — lembrança da mãe, do trabalho, da vida que espera — e ela continua andando.  

Ele sussurrando, quando ela já está longe:  

— Amanhã você vai entender que ipês não crescem em cinzas.  

Naquela noite, enquanto Marina dorme com a lasca de madeira sob o travesseiro, ele cava. Encontra o rio subterrâneo que a cidade ainda não envenenou, bebe até sentir a água limpa corroer suas feridas. Quando as máquinas chegarem ao amanhecer, não haverá centauro para lutar — apenas um cavalo selvagem, esquelético, galopando em direção ao horizonte de fumaça. E onde ele deitava, um círculo de margaridas brota do cimento, alimentado por geleia de amora e palavras não ditas.

Na manhã seguinte, tratores rugiam na borda da mata. Marina correu até a clareira, a margarida murcha em seu bolso. Encontrou apenas pegadas de cascos na terra úmida — e, onde ele estivera, um círculo de margaridas brotando entre o cimento recém-despejado, furando a cinza como pequenos sóis brancos.  

Naquele dia, Marina não voltou para a cidade. Sentou-se no concreto quente, esperando que a terra engolisse as máquinas.

Ana Pujol
Enviado por Ana Pujol em 12/04/2025
Código do texto: T8307601
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