A MOTO - (Contra-contos #20)

A MOTO

Suspensório.

Castiçal.

Assim, também, não é possível!

Palavras as mais disparatadas ocorrem sabe-se lá por quê, como se a nós que nos reputamos tão cônscios fosse dado saber alguma coisa, satisfazer a mania crônica de estar pedindo ou recebendo explicações a-deus-e-a-todo-mundo.

Como se fossemos os reizinhos da Criação e com direitos de berço e nascença a nos explicarem seja lá o que for.

Queres entender?

Em vez de perguntar sai atrás de explicação.

Aprende a responder tuas perguntas, logo as farás mais inteligentes e obtendo talvez a resposta.

Pois há perguntas sem resposta, nem poderiam ter.

'Qual o antônimo de "gaveta"?'

A 'perguntaças' de tal tipo só 'respostunças' descabidas.

Nada ensina ninguém com mais eficiência em matéria de usar água do que extraí-la do poço fazendo força na corda e no balde -- semi instantaneamente desaparecem as tolices de banhos prolongados e frequentes, lavar vasilhas além do necessário, este cada vez mais compreendido.

Nada ensina tanto -- ou com ela podemos aprender -- quanto a realidade.

Fantasia é coisa de homem folgado e borocochô, encheu o paiol e acha que pode devanear e fazer incursões sérias pelo terreno das camadas mais profundas da Realidade.

Realidade tão parecida a uma cebola!

A cada camada/casca, se quisermos aprofundar encontramos outra -- e a passagem ou perfuração por esta ou aquela camada faz os olhos arder, põe-nos a chorar perdidamente como bezerros desmamados -- coisa altamente lacrimogênea, essa de varar as camadas/cascas da cebola.

E por aí seguiam os pensamentos de Rufino.

Vivia um drama que, contado, ninguém acreditaria.

A bem da verdade via-se proibido de contar fosse a quem fosse -- ninguém entenderia.

O filho fora taxativo.

Após avisar que lhe queria falar, fora ter com ele no gabinete da mansão luxuosa onde habitavam -- o filho na metade das noites pois nas outras dormia fora ou, o que era mais provável, passava tais noites mais do que acordado em seus embalos e baratos.

Entrara com estudada naturalidade no gabinete fora diretamente ao assunto, como os cowboys de filmes americanos que só nos 'rodeos' fazem seus rodeios:

--Olhaí, pai, tou a fim de uma moto Honda.

Rufino ouvira em silêncio que de início fora apenas consternado, as instruções subsequentes do requisitante.

--Já sei que tu vai ficar fazendo hora e tropicando nos pés pra me dar a moto. Por isso -- tirara uma faca imaginária do bolso de jaquetão de couro, com ela limpara imaginariamente as unhas sujas -- tou avisando que só espero até a sexta-feira. Três da tarde.

--Falou, bicho -- Rufino encontrara a voz, afinal, e dissera as palavras a tempo de ser ouvido pelo filho que lhe voltara as costas e se retirara em passo firme, porém malandro, de quem estudou karatê e tudo quanto é arte/ciência marcial.

Cursos que haviam custado os olhos da cara.

E então?

Eram duas da tarde de sexta-feira e por três dias Rufino estivera nas garras do drama.

Simples, aliás: dar ou não dar a moto ao filho?

Qualquer um, qualquer besta quadrada resolveria a questão com simplicidade.

O filho era garotão bem situado nas esferas jovens; a ele, Rufino, não faltava dinheiro para dar dez motos por mês ao requerente.

A questão não era essa, o preço da moto nem entrava em cogitações -- dinheiro desde muito deixara de ser problema na família mais do que bem situada na vida.

Rufino soubera, por gênio e tino comercial, galgar a escadaria da fortuna.

Os filhos jamais haviam conhecido o aperto, a necessidade, a falta, o 'não tem' ou 'não posso'.

Rufino nunca se negara a atender qualquer pedido, já por íntimo impulso paterno de generosidade, já por obter tanta satisfação no uso do dinheiro que soubera conquistar e ainda por ser absurdo imaginar filhos privados de qualquer desejo satisfeito apenas por ele negar o pedido.

A questão era outra.

Rufino sabia que dar a moto ao filho constituía imprudência tendo em vista a temeridade e a imprudência do rapaz.

Que, diga-se de passagem, por disritmia cerebral não era dotado de reflexos muito rápidos.

Rodolfo montado na moto, engarupado com amigos e colegas motoqueiros?

A sombra da morte se adiantara ao primeiro pensamento.

Faziam acrobacias, pegas, o que surgisse nas mentes jovens -- ou o que o cinema e televisão mostrassem como novidade.

Hell's Angels e aquela coisa toda.

Capacetes com suásticas, caveiras e tíbias...

Rodolfo não duraria muito tempo.

Rufino pagara já o conserto de duas motos de amigos do filho e a ele emprestadas e batidas, e outra inteiramente nova, num caso de irrecuperação onde o rapaz apenas machucara um pouco o nariz.

Assim se via diante da alternativa nua e crua: dar a moto e o filho estaria aleijado-estropiado ou morto em pouco tempo; não dar a moto e ter de se haver com a opinião geral da família voltada contra ele.

Nada mais natural que o rapaz ter a moto! diriam.

Ia tocando os estudos, pagando e entrando para a faculdade a fim de fazer sua administração de empresas onde se capacitaria para ajudar e depois substituir o pai na gerência das firmas da família.

Como negar a moto?

Se os amigos dele haviam adquirido motos, por que Rodolfo não teria a dele?

Rufino examinara as possibilidades.

Dando a moto, em caso de acidente a mãe e irmã de Rodolfo lhe cairiam encima, no caso de acidente com ferimentos.

Se morresse, nem era bom pensar -- ele seria o responsável direto, quer isso fosse proclamado sobre os telhados das casas ou no terrível silêncio inculpador de quem não queria tocar no assunto.

Nos olhares-adagas, cheios de veneno.

Incontestável: com moto, dificilmente Rodolfo escaparia incólume ao veículo para o qual seus reflexos não serviam, sua temeridade menos ainda, os companheiros nem se fala.

Morto ou ferido?

Ferido, apenas, ou aleijado?

Não dar a moto -- inconcebível!

Como negar ao filho mais velho quando em tais ocasiões a família se põe otimista, super religiosa, confia em Deus e no raio-que-o-parta, acha que 'tudo vai dar bem'.

Consultara a mulher.

--Se você não quer dar a motocicleta ao Rodolfo -- viera ela, simplista em raciocínio ou assim se apresentara-- não dê, mas não me meta nessa questão. Eu nada tenho a ver com isso.

Arquiteta, filha de gente rica, sabia expressar-se com muita correção gramatical, semântica e léxica.

Desenhara a casa do sítio/fazenda a que Rufino não ia já por oito anos.

--E se eu não der, você dá? -- perguntou Rufino, entrevendo uma saída, jogar a bomba nas mãos da mulher.

Esta dispunha de dinheiro mais do que suficiente para pagar a moto do rapaz: por que não dava de presente ao filho?

Colosima se voltara, fria e fúria, olhos cravados nele, vidrados de intensidade.

--Você não sabe resolver os problemas de pai? Se não sabe, diga logo. Eu tomarei as providências necessárias.

Rufino se encolhera intimamente mas saíra do quarto dela -- tinham quartos separados, aliás muito separados -- retendo todo o ar de dignidade e sobranceria com que a tratara nos últimos sete anos.

Após o incidente no sítio/fazenda.

Tinha de reconhecer, Colosima era matreira e muito inteligente.

Soubera lançar lhe de volta a bomba com a maior naturalidade e todo o aspecto de responsabilidade.

A moto seria ideia dela?

Para acabar de desgraçar o casamento, a família, desde o incidente no sítio/fazenda?

Acabar com o casamento e abocanhar sua polpuda parte que lhe daria a liberdade desejada?

O maldito caseiro!

Rufino o contratara julgando ter encontrado o homem ideal para tomar conta do sítio/fazenda, paraibano bronco e de família numerosa, afeito à terra e asseverando (não se chamava Severino?) que em pouco tempo aquilo tudo estaria uma tetéia.

Um brinco! -- tinha sido a promessa do amaldiçoado pau-de-arara.

E em questão de seis meses a casa desenhada por Colosima, esta a visitar frequentemente o local das obras para fiscalizar, ficara pronta.

Outra fortuna!

E eu, pensava tristemente Rufino, passei a ter dificuldade para atravessar as portas, passar pelas portas.

Os chifres esbarravam em ambos os lados.

O paraibano caíra no goto da patroa/arquiteta, a coisa só viera a furo quando a pau-de-arara da mulher dele, gente que não tinha onde cair morta, fizera o maior escândalo e chamara Rufino, por mais patrão e doutor que fosse, de tudo quanto era nome no linguajar de sua terra sáfara e agreste.

De 'chifrudo' para baixo ela fizera a festa, só se aquietara dias depois mediante passagem de volta à Paraíba -- em avião! -- para ela, filhos e o amaldiçoado marido que podia ir se quisesse, ficasse onde estava, ela se separava dele para sempre -- mulherzinha decidida!

As palavras!

Ainda lembrava do impacto causado.

--Me admira muito o senhor, patrão, um homem estudado e distinto, um doutor 'devogado', se prestar a um papel desse, homem! Tá mais chifrudo que um maxixe, que esse sem-vergonha do Severino e sua mulher, seu doutor cornudo, doutor de chifre, lhe encheram a cabeça pra todas as sete banda, e não tem vergonha na cara?! Não toma jeito nem cobro de macho, home?

E o fecho de couro:

--Esse mundo tá mesmo perdido. Mas eu não sou mulher de 'guentar' umas tantas coisa. Quero ir embora daqui e é pra já! Não 'guento' ficar perto de cabra tão frouxo!

O incidente do sítio/fazenda.

Mais tarde Rufino soubera, era o terceiro imbecil a cair no conto, o pau-de-arara sabia intimizar-se com as patroas, na hora certa a mulher entrava em cena e para abafar o escândalo voltavam todo para Campina Grande, de avião sempre e com dinheiro para viverem com largueza bastante tempo.

Ao saber disso, aí sim, tudo doera mais.

Rufino amaldiçoara a arquitetura da casa, amaldiçoara o sítio/fazenda, nunca mais pusera os pés por lá.

Colosima, esta sim, ia frequentemente e promovia reuniões femininas com as amigas, muita bebida e comida, jogo de canastra e outras regalias aos frequentadores, casa com doze quartos dotados de banheiros modernos não podia ficar em desuso -- tornara-se clube campestre ao estilo euro-americano.

Ele não a conseguira pegar em flagrante!

E o ultimato dado por Rodolfo por momentos lhe parecera um presente dos céus -- era entregar a solução a ela, que sendo mãe iria escorregar em tal casca de banana -- agora percebia que Colosima percebia tudo muito antes dele.

Provavelmente insuflara o filho a pedir a moto.

Planejava liberdade ainda maior?

Rodolfo era colado com ela, mas lhe fizera ressalvas por ocasião do incidente com o pau-de-arara?

Entrou no gabinete, deixou a porta aberta.

O relógio assinalava quinze para as três.

Rodolfo apareceria ao toque das três, Rufino o adivinhava.

Acendeu calmamente o charuto e se pôs a contemplar as volutas azuladas do bom Habana, desenhado véus finíssimos sobre o escuro das paredes de madeira de lei.

Haviam-no posto num beco sem saída.

Mesmo assim...

Quando Rodolfo entrou o relógio de carrilhão batia a segunda das três horas.

No gabinete estava Colosima, sentada diante do marido que a chamara com certa energia -- na verdade ela viera por gosto, curiosa pela decisão que o imbecil ia tomar, em qualquer dos dois casos mais tarde se estreparia por completo.

Ela antegozava.

O filho veio, passou a perna pela secretária de mogno, abriu o blusão de couro.

--Já encomendei a moto, só falta o cheque de cem mil -- explicou -- Eu saio daqui agora mesmo com o cheque e em cinco minutos tou montado na moto, prontinha, equipada com gasolina e tudo.

Uma pausa, Rufino contemplava o teto abobadado do gabinete, parecia ausente.

--E então, o que vai ser? -- interpelou Rodolfo.

Rufino voltou a fitá-lo e com expressão diferente de todas que filho e mãe haviam visto.

Calmo e distante mas cuidando dos assuntos em pauta, atendendo ao ultimato ele pigarreou de leve, outra baforada no charuto e disse:

--Tua mãe é mulher tão religiosa e crente na igreja e nos santos que fui pedir opinião a ela. Não quis resolver, acha que a responsabilidade é toda minha.

Colosima começava a desconfiar de alguma coisa, o filho pegou o sentimento pelo contágio/telepatia, dizem que os filhos muito se aproximam das mães.

--Por isso -- proseguiu Rufino, com mais calma ainda -- resolvi as coisas de um modo coerente. Você tem uma moeda aí? -- perguntava ao filho, que deixara a secretária e se pusera de pé, encostado na estante, recuara um ou dois passos.

Rufino já estendera a mão, Rodolfo enfiou a dele no bolso, retirou de lá algumas moedas, estendeu-as em mão espalmada ao pai.

Rufino olhou, apanhou a maior.

A um gesto seu, Rodolfo guardou as demais, a outro gesto Rufino lhe devolveu a moeda maior.

--Resolvi entregar a questão nas mãos de Deus -- explicou.-- Entrega a moeda à tua mãe, Rodolfo.

Um tanto espantado o filho atendeu.

Colosima sentia avolumar-se a sensação de que algo não estava dando certo.

Recebeu a moeda e segurou-a com dois dedos como se estivesse fervendo, quentíssima -- na verdade ela a sentia mesmo quente demais.

--Pois é -- disse Rufino. -- Vou escrever neste papel, olhe, Rodolfo: 'Cara, tem motocicleta. Coroa, não tem'. Compreendeu?

Um tanto abestalhado o filho assentiu.

--Você concorda, meu filho?

Novo asentimento aturdido.

--Pode jogar a moeda, Colosima -- e na voz de Rufino surgira uma fibra de aço que os dois jamais tinham percebido nele. -- Vamos, mulher! Jogue!

E Rodolfo, animado, pediu também:

--Joga logo, mamãe!

Ela operou no automático, lançou a moeda ao ar, o pequeno disco metálico subiu e desceu, rolou no tapete.

Rodolfo se pôs de quatro no chão para ler o resultado.

E ergueu o rosto radiante, anunciando:

--Deu cara, mamãe! Puxa, muito obrigado, você é uma mãe e tanto! Como me dá sorte!

Rufino mergulhava em pensamentos, triste por antecipação, comovido pelo momento, pressago quanto ao futuro.

No olhar de Colosima ele percebeu; seria preciso efetivar o desquite -- pelo menos a separação de corpos, ele mudaria para um hotel até tudo se decidir legalmente -- o mais depressa possível ou ela o mataria de algum modo.

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Nota do editor:

Estes vinte trabalhos nunca antes publicados, (cujos originais estiveram a ponto de perder-se na enchente de Porto Alegre de 03/05/2024); do saudoso Affonso Blacheyre, demonstram a riqueza de vocabulário de um homem especial, um escritor e tradutor de vários idiomas.

Ainda hoje, digitando e editando estes vinte CONTRA-CONTOS, aprendi muito mais português do que é ensinado nas escolas.

Considero-me privilegiado em tê-lo conhecido em vida e chamá-lo de Amigo.

Que os deuses sejam contigo, meu querido amigo e irmão!

Gabriel Solis

Editor.

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Valpii 860504-801110

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A MOTO

Forma parte da Coletânea

CONTRA-CONTOS, de Affonso Blacheyre, (1928-1997),

cuja biografia está publicada no RECANTO..

Trata-se do vigésimo dos contos da coletânea.

(editado por Gabriel Solis.)

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Affonso Blacheyre

Affonso Blacheyre
Enviado por Gabriel Solís em 06/04/2025
Código do texto: T8303064
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