FINDA A GUERRA - (Contra-contos #17)
FINDA A GUERRA
Sentindo-o, sentou-se e sentado sentiu que, sem tentar, uma centena de sentenças lhe ocorria.
Sem temores, sem ter motivos para entrar em parafuso, mandou tudo e todos mentalmente à...
Perdem-se os bens, pessoas queridas não morrem porque ficam em lembranças vivíssimas conosco, perde-se a saúde em aviso de que está a se aproximar a velha da foice afiada que Affonso afiou, perde-se a vida e se alguma coisa se ganha ou não em troca, é com outro departamento.
'Já tive medo de sentir medo', pensava.
'E parece que em vez de ter medo ao medo estou agora com raiva do medo, ele que vá pra pqp, vá fazer medo nas negas de outro, quero que ele se fornique'.
Pensamentos atrevidos ou apenas esperneamento diante do inevitável?
Quem quisesse saber que fosse buscar a solução, pusesse a indagação em anúncio de jornal, consultasse o dicionário -- sempre há quem tem explicação para tudo e qualquer coisa.
O mais soberano e solene desprezo por tudo, a começar por si mesmo, atolado até o gasnete naquela mania de pensar, sentir.
Era questão de organização interna/íntima e ele se desligava, mandava o próprio pensamento ao inferno, o sentir a Deus ou ao céu -- que o deixassem em paz, pouco estava ligando, rasgava para tudo e todos e totais.
Foi nesse estado de espírito nada conducente ao raciocínio lógico que Jaqueline o encontrou -- e veio disposta a fazer agrado, ainda haveria de apanhar aquele cabeçudo, toda aquela pose de durão não iludia sua intuição feminina -- tão feminina!
Quanto mais durão o imbecil (suave e doce imbecil) que lhe enchia sentimentos e pensamentos, (com mulher é assim, nessa ordem, os últimos decorrentes dos primeiros), tanto mais masculino se afigurava a seus sentidos.
--E o que foi, desta vez? -- indagou com a suave ternura das mulheres apaixonadas que ainda não se manifestaram nem encontraram a total receptividade esperada.
Depois de encontrá-la e positivá-la o negócio muda, é atrelar o bicho na carroça, ele que a puxe em chuva ou sol, subida ou descida.
Jaqueline era mulher extremamente feminina.
O cretino (suave e doce cretino) haveria de levá-la à realização máxima, o filho.
Após o quê o negócio era aumentar um pouco o peso e número dos passageiros na carroça à qual o idiota (suave e doce idiota) estaria definitivamente atrelado.
O filho segura e prende o homem, fonte de todos os filhos.
Que coisa!
Talvez um dia a mulher os dispensasse, aos homens, para dar à luz.
Mesmo elétrica, na madrugada de uma maternidade qualquer.
Mesmo à luz das estrelas, na campina aberta e anoitecida.
Mesmo ao luar, à luz refletida do satélite tão feminino.
Mesmo...
--Quer me deixar em paz? Vai encher o saco do Brabantino, vai! -- e com essa o pobre infeliz (doce e suave infeliz) punha para fora a confirmação dos seus sentimentos, notara que o referido Brabantino ganhava atenções da pequena.
Mulher não se engana nessas coisas!
Coração de mãe não se engana porque o da namorada jamais se enganou -- salvo deploráveis exceções.
Ela o fitou com desdém possível, a sensibilidade ferida e mais possível, dos pés à cabeça -- aliás próximos, ele apoiava o queixo nos joelhos.
--Precisa ser tão grosseiro? Só perguntei porque você está a imagem da desolação, sentado aí feito cachorro sem dono.
--Pois vai procurar o teu cachorro, que este aqui não quer saber de donos ou de donas.
Diálogo brilhante mas nada promissor para a perspectiva eterna do aumento da população mundial.
Jaqueline sentiu o impacto, o desgraçado (suave e doce desgraçado) estava mesmo distribuindo patadas.
Pois que fosse!
Saiu com a dignidade ferida mas bem escondida, aquele palhaço (suave e doce palhaço) ia ver uma coisa, tudo isso lhe fortalecia a decisão de, instalada na carroça, de vez em quando pedir água fresca -- e mais pressa na viagem.
'Ele me paga', prometeu a si mesma, anotou no caderninho de deve-e-tem onde contabilidade muito original mantinha o referido (doce e suave referido) em saldo devedor constante.
Mas tinha crédito, o bestalhão (doce e suave bestalhão), ele tinha crédito!
--Olha aqui -- e vinha inesperada a voz do pobre coitado (suave e doce coitado) -- suave e doce é a puta que te pariu, entendeu?
Jaqueline parou, gelada, no meio da praça.
Quase menstruou ali mesmo.
O que estava acontecendo?
--Acontece que sei perfeitamente o que você pensa, sua calhorda dos infernos!
Voltou-se para ele.
Como podia acontecer isso?
Ele estava dizendo a verdade, podia ler seus pensamentos?
--Todos, sua bruaca infernal -- veio a confirmação.
Jaqueline sentiu o calor-frio avolumar-se em ondas dos pés à cabeça.
Ao rubro agora, gelada em seguida.
O silêncio perdurou enquanto, confusa, tentava coordenar os sentimentos-pensamentos em vista do ocorrido.
Pensou então em sair correndo.
--Pois corre e vê se quebra a xoxota por aí, num tombo -- desejou-lhe o indiferente cafajeste (suave e doce cafajeste?).
Ela recuperou os movimentos, decidiu afastar-se o mais rapidamente possível daquele perigo, daquela situação que a engolfava.
--Se correr com vontade ainda pega o ônibus das cinco -- vaticinou ele como um cicerone turístico -- Vê se só para quando estiver em Buenos Aires, Timbuktu, coisa assim.
Pedir socorro?
Sentia-se mais do que despida em plena praça.
As palavras vinham no momento exato, como se estivessem trocando pensamentos.
Começou a sentir medo, logo se avolumava em pavor.
Aquele cretino, palhaço, desgraçado, imbecil...
--Mas não sou veado como teus irmãos e teu pai também! -- bradou o perigoso louco, desvairado, bruxo dos infernos, alma danada.
Jaqueline nem percebeu como o pânico se apoderou dela e a fez cobrir a distância da praça à padaria do pai em tempo que seria nova marca mundial para os 150 metros rasos.
Os poucos circunstantes não deram atenção à corrida, a rapidez foi tanta que apenas um deles percebeu alguém passando -- homem ou mulher?
Bem, aqueles peitos balançando indicavam a feminilidade da atleta.
Maluca, a correr com o sol tão quente!
Na padaria o pai viu-a embarafustar e jogar-se sobre uns sacos de farinha, bufando, rubra, coberta de suor que surgia.
--Que foi? -- interpelou patriarcalmente, assustado -- um tarado?
Jaqueline não podia responder -- estendera-se nos sacos e no chão, esparramada, desmaiada.
O trabalho que deu para reanimá-la, horas depois, no hospital!
Quando voltou a falar estava inteiramente incoerente e não dizia coisa com coisa, era um jorro de palavrões que nem sua mãe e amiga íntima sabia estarem contidos no repertório da jovem tão sestrosa, linda, inteligente e avançada.
Internaram-na dias depois numa clínica de repouso, para sonoterapia de 30 dias iniciais.
Os especialistas haviam sido unânimes, era caso para dormir até passar o descontrole -- ou a primeira medida a tomar, depois veriam a evolução da perturbação.
*******.
O prefeito não perderia a ocasião de cumprimentar o rapaz, filho de prócer político ora antagonizado com ele.
Política desse nível faz-se com base de nunca antagonizar pessoalmente com criatura alguma, não à-toa se via reeleito sistematicamente.
--Como vai, Braguinha? Descansando um pouco? -- pergunta adequada em vista da postura do rapaz, sentado na calçada e à sombra do cinema da cidade.
Espetáculo um tanto estranho e que não podia ignorar, algo se passava ali.
--Quem ficou maluco foi teu pai, seu verme asqueroso. Tão maluco que acabou a vida afogado em cachaça -- veio a resposta.
O prefeito estacou, gelou nos passos com que pretendia atravessar a praça.
Que negócio era esse?
Teria inadvertidamente chamado o rapaz de maluco, embora fosse o pensamento que lhe ocorrera?
Braguinha nunca fora muito bom do juízo.
--Como é que foi? O que você disse?
--Vai tomar satisfação com tua mulher, que já te corneou com metade da cidade, pela frente! -- veio o brado em resposta. -- E com a outra metade por...
O prefeito, pelo tom de voz alta vinda de Braguinha, viu-se tomado de indescritível confusão.
Em fímbria de luz percebeu, precisava esconder melhor os pensamentos, as preocupações causadas pelo comportamento de sua mulher eram precisamente aquilo em que mais pensava.
Com palavras encobria qualquer coisa, era mestre nessa diplomacia -- mas os pensamentos deviam estar transparecendo.
Na expressão facial?
Sem poder evitar levou a mão aos dois cantos da testa.
Não, nada havia de protuberante ou saliente por ali.
Como...?
E seguiu andando o mais depressa que pode, afastou-se do lugar como dizem que determinada entidade busca afastar-se de determinado símbolo.
Sentiu, forte, o cheiro de enxofre no ar.
--Chifrudo e fedendo a enxofre estás tu, pústula humana! -- ouviu ainda as palavras e não fez por menos, disparou em carreira desabalada.
Decididamente aquele não era dia para sair de casa, devia ter ido para um dos sítios comprados em cartório.
*******.
O pipoqueiro veio como sempre, empurrando o triciclo, dirigindo-se à escola onde o turno da manhã logo sairia.
Era homem singular, suavidade e doçura em pessoa, todos o amavam e respeitavam.
Em casa, quando chegava, até as galinhas vinham cocoricando e cercando-o, certas de ganharem as pipocas de resto.
Viu o Braguinha e parou a carroça, estendeu a mão, encheu o saco de pipocas e foi até lá, as pipocas oferecidas.
O rapaz ergueu o olhar, parecia extasiado.
--Como é possível, seu Astrolor? O senhor foi capaz de uma coisa dessas?
O pipoqueiro parou onde se achava, braço estendido na oferta de pipocas.
--Não paga nada -- explicou -- É presente, de graça.
Braguinha estendeu a mão também, recolheu o saco de pipocas, seu olhar verrumava o pipoqueiro.
--Nunca imaginei -- disse, parecia estar falando sozinho --Sua filha?
Astrolor lançou-lhe olhar estranho, voltou à carrocinha e seguiu a empurrá-la.
Não era possível que aquele moço... mas como?... segredo tão bem guardado...
--Para de pensar, que eu sei quais são seus pensamentos, homem! -- exclamou Braguinha -- Vá em paz, eu acho muito bonito. É isso que lhe dá forças para ser tão bom, tão prestativo, tão humano!
Seu Astrolor, o depressa que pôde, dobrou a esquina, havia montado no triciclo e pedalava com a força possível.
*******.
Em casa, quando Braguinha chegou, era hora de jantar e a mãe o esperava, impaciente.
Arrumou-lhe o prato e ficou à espera na mesa da cozinha.
Tinha novidades a contar.
Jaqueline foi levada às pressas para o hospital dizendo tudo quanto era besteira.
Não ia perder a ocasião de fazer ver ao filho que a moça não lhe servia, era uma espevitada metida a gostosa.
Braguinha olhou-a longamente.
--Já sei -- disse, afinal, dirigindo-se ao prato, sentia fome. -- Já sei de tudo. Ela não me serve, é uma espevitada metida a gostosa. Está de olho no dinheiro que vamos herdar. Se a gente se casasse ela ia me cornear com tudo que é homem, está de amores com Fenéias no consultório dele.
Mariquinha arregalava os olhos.
--Já sei que você quer meu namoro com a Bete. Pois fica sabendo que ela é piranha muito da descarada, quando vai a Coturbo cai na gandaia e está dando mais que chuchu na serra, enche a cara de droga e gosta mesmo é de mulher.
Mariquinha segurou-se à mesa.
--E fica sabendo que minha querida irmã Rose é a companheira favorita dela, piranha mais que a Bete, fez três abortos e está prenha outra vez.
Mariquinha debruçava-se à mesa, sem ar.
--E você mesma tem tido uns papos esquisitos com o Jordelino quando o papai sai de noite para jogar sueca. Isso não está direito, fique sabendo.
Mariquinha mal conseguia puxar a cadeira e sentar-se de qualquer jeito, ia desmaiar e esparramar-se pelo chão.
--E fica sabendo que quero comer sossegado e depois vou pegar umas coisas e sair desta cidade que me torra o saco.
*******.
Mala à mão, ele embarcou no ônibus das nove.
Era aquele mesmo, não outro.
Outro não servia.
Sentou-se onde servia, mergulhou em si, esquivando-se dos pensamentos presentes que vinham em tumulto.
Faltava pouco.
Onze minutos depois o ônibus bateu na Curva da Morte com o caminhão.
Não de frente, mas de lado.
Motorista escapou milagrosamente ileso, mas o passageiro sentado à janela do lado esquerdo, primeiro banco, ficou irreconhecível.
Terminara a guerra para Braguinha, que se tornara receptor de pensamentos alheios.
Outra se iniciava.
Na cidade, quatro pessoas respiraram de alívio ao saberem do desastre e sua única vítima, uma delas com piedade -- o pipoqueiro.
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Valpii 860430-810129
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FINDA A GUERRA
Forma parte da Coletânea
CONTRA-CONTOS, de Affonso Blacheyre, (1928-1997),
cuja biografia está publicada no RECANTO..
Trata-se do décimo sétimo dos contos da coletânea.
(editado por Gabriel Solis.)
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Affonso Blacheyre