A poucos passos de casa
Quando Lívia nasceu disseram que era perfeita. Como toda criança deveria ser. Era doce e meiga, mas tinha tendência ao choro livre e sentido. Chorava até cansar, assim que entardecia. Depois, quando as lágrimas pareciam ter secado, lentamente voltava a ser a criança de sempre.
Quando já conseguia traduzir em palavras o que sentia, não conseguia explicar a razão de seu pranto, só sabia que precisava chorar. E para não preocupar ainda mais os pais, aprendeu a se retirar para um lugar isolado e esperar a crise passar.
Na adolescência já controlava esse sentimento ao ponto de não ceder às lágrimas, mas não conseguia esconder a melancolia. E ainda não sabia identificar o motivo desse sentimento.
Sempre no mesmo horário, não importa onde se encontrava, ou o que estivesse fazendo, aquele sentimento se fazia presente. A palavra mais adequada para descrevê-lo seria saudade. Mesmo não sabendo de quem, ou de onde, ou do quê.
Era uma expectativa crescente por alguma coisa que não sabia “se ou quando” aconteceria. Era um sentimento confuso, mas real. Lembranças de um passado distante? Ou talvez de outra vida? Não sabia, mas parecia estar sempre prestes a descobrir. Sempre!
Separava aquele momento do dia para estar sozinha e não ter que explicar aos outros o que se passava dentro dela.
Mais tarde, se apaixonou por um colega de faculdade, que prestou atenção nela e entendeu sua peculiaridade e a protegia das indagações dos colegas nos episódios em que ela não conseguia ficar sozinha.
Descobriu que muitas pessoas tinham esse sentimento, mas em menor intensidade, muitas vezes uma leve sensação igualmente inexplicável. Não encontrou ninguém que sentisse tanto quanto ela. E isso a levou a crer que fosse de certa forma especial. Mas não sabia se isso viria a ser bom ou ruim.
Quando seus filhos nasceram, experimentou uma compreensão nebulosa e imprecisa do que sentia. Porque olhando para seus olhinhos que lutavam para se manter abertos, sabia que precisava tê-los, que sentia falta deles esse tempo todo, mesmo sem suspeitar.
Mas como sentir falta do que não se teve antes? Estariam nossos dias todos escritos e a alma teria de certa forma um conhecimento inconsciente sobre o assunto? Poderíamos sentir saudade do que nunca experimentamos, mas que um dia ainda iríamos experimentar?
Todas essas questões e muitas outras se formavam em sua mente e embora continuassem sem resposta, tinha certeza que um dia descobriria tudo.
Quando suas crianças já tinham idade para perceber o que se passava ao redor delas, descobriram que a mãe precisava de um consolo especial em determinada hora do dia.
— Fica quietinha que está chegando a hora da mamãe ficar triste.
O filho mais velho alertava a mais nova. E iam os dois e a abraçavam apertado até que a tristeza passasse.
Era lindo ver os dois, ainda mal saídos das fraldas, tentando aliviar um sentimento tão profundo e inexplicável.
Lívia já havia se consultado com psicólogos e psiquiatras que não conseguiram explicar e muito menos curar aquela condição. Todos eram unânimes de que se tratava de um caso atípico e muito severo de nostalgia, mas não conseguiam identificar a fonte, já que não era baseado em nada que ela já havia vivido.
Então, em um dia qualquer, daqueles que não guardamos lembrança nenhuma e que seriam completamente iguais aos outros, se não fosse por conterem em si o poder de mudar tudo, o enigma foi resolvido.
Perto da viração do dia, quando o plenilúnio se aproximava, amenizando o amarelo intenso do sol e purificando o azul do céu, Lívia sentiu aquela sensação de falta, um aperto no coração que chegou a trazer lágrimas aos olhos, parecia que precisava estar em outro lugar fazendo outra coisa. Mas o quê?
Fechou os olhos e respirou profundamente, sabia que iria passar. Era quase como uma dor física, intensa, mas passageira.
Mas daquela vez estava custando a passar. Justo quando estava na rua. Não havia conseguido voltar para casa a tempo. A reunião na escola das crianças demorou mais do que o previsto, e a fila do mercado estava gigantesca. Quando deu por si o dia estava no fim e a aflição começava a apertar seu coração.
Parou o carro. Não dava para dirigir naquele estado. A dor não passava, ao contrário, aumentava cada vez mais. Lágrimas escorriam livremente pelo seu rosto. Se concentrou na respiração longa e profunda.
Repetia para si mesma em voz alta:
— Está tudo bem! Você está bem!
Naquele momento prestou atenção ao ônibus do transporte escolar que estava parado mais a frente. As crianças felizes voltando para suas famílias, cantando uma canção que não conseguia ouvir, mas podia ver seus lábios se movendo sincronizados. A monitora fazia gestos com as mãos marcando a música.
Ouviu seu nome vindo do outro lado da rua. Virou a cabeça e procurou pela calçada deserta. Nada. Mas então viu o carro que descia a rua em alta velocidade, desgovernado. O motorista parecia desacordado, caído sobre o volante.
Então o tempo congelou.
E ela se viu em outro lugar, outra época.
Antes.
Muito antes.
Quando era ainda apenas a essência da vida, criada pelas mãos dele. Viu a vastidão do infinito cheio de cores brilhantes. Campinas e montanhas, mares e lagos, flores e frutos, animais e seres como ela. Tudo era tão brilhante, vívido e intenso. Foi então que o viu, ele que todos os dias, ao alvorecer, vinha pessoalmente conversar com ela.
— Eu preciso mesmo ir embora, pai? — Disse, flutuando ao redor dele.
— Precisa sim, minha filha! Por enquanto você está incompleta. É só um espírito, precisa que eu te dê uma alma e um corpo, só assim estará pronta para voltar definitivamente para casa. Mas não se preocupe, sua passagem pela terra será breve.
A voz dele era grave e profunda, como uma cachoeira batendo sobre as pedras, mas ao mesmo tempo suave como a brisa.
— Mas e se eu me esquecer daqui… e de você?
Seus olhos brilhavam de expectativa. Amava seu lar, sua família, seu pai. Não queria ir embora, mas era necessário. Todo ser criado precisava passar por essa experiência.
— Você não vai se esquecer, confie em mim. A eternidade está dentro de você. Não se esquece de onde você pertence.
— E você vai estar lá?
Seu maior medo era ficar longe dele. Como poderia sobreviver? Ele era a razão do seu existir. Literalmente.
— Claro que sim, mas não como você me vê agora… vou estar diferente.
— Mas então como vou te reconhecer?
Seu sorriso iluminava o universo inteiro.
— Você vai, não se preocupe com isso! Está preparada?
Então ele soprou em sua direção e uma luz suave saiu de sua boca e entrou pelo nariz dela e se acomodou em seu peito.
Lívia via o carro desgovernado vindo na direção do ônibus escolar em câmera lenta. As duas realidades se misturando. Ainda sentia o sopro dele dentro de si. E era ele que agora a chamava de volta.
Será que todos quando percebem que estão diante da morte tem aquele vislumbre de onde vieram e para onde estão prestes a voltar, ou isso só acontece com alguns, talvez aqueles que foram mais conscientes de sua origem,
ou aqueles que eram mais apegados ao pai?
Naquele segundo sabia o que devia fazer. Havia chegado a hora. A espera havia enfim terminado.
Era hora de voltar para casa definitivamente.
Pensou em sua família, seu marido, tão carinhoso, seus filhos, ainda tão pequenos. Eles precisavam dela! O medo paralisou seu coração por uma fração de segundos.
Mas ela sabia que sua passagem por esse mundo seria breve, seu pai havia lhe contado. E tinha certeza de que se ele a chamava de volta, é porque cuidaria muito bem deles. Ela confiava inteiramente nisso.
Ligou o carro e pisou no acelerador com toda a força, ficando entre o ônibus escolar e o carro desgovernado. Prendeu a respiração e esperou pelo que viria.
Dizem que a vida toda passa diante dos olhos no último segundo, mas não disseram que a alma se lembraria de onde veio e para onde deveria voltar. Talvez isso só acontecesse com aqueles que estão definitivamente destinados a partir e quando nada mais poderia trazê-los de volta.
Assim que sentiu o impacto, e os metais começaram a prensar o seu corpo, o sopro que o pai havia colocado nela brilhava como nunca, à medida que a vida se esvaía o brilho aumentava, até que, quando expirou, tornou-se apenas luz.
E como luz, viajou pelo tempo assistindo tudo que houvera antes dela e tudo o que viria depois.
Até que se deparou com uma porta de madeira, estreita e simples. Estendeu a mão e tocou-a. Reconhecia aquela porta, sabia agora que estivera o tempo todo apoiada nela, a poucos passos de casa. Segurou a maçaneta, empurrou bem devagar e a porta se abriu.
A primeira coisa que viu foi o jardim, bem cuidado, multicolorido e cheiroso. Logo em seguida surgiu um caminho de pedras lavradas.
Fechou a porta atrás de si e seguiu pelo caminho. Olhando ao redor, se espantava de reconhecer cada coisa, ainda que parecesse tudo recém criado.
Avistou sua casa ladeada pelo jardim, uma casa de pedra e madeira, com uma varanda na frente. As janelas estavam iluminadas e uma fumacinha branca escapava da chaminé.
Aquela sensação de aperto no coração e saudade, escorria pelos seus olhos, agora sim explicada. Havia voltado para casa.
Correu até a porta e abriu. Porque não se bate na porta da própria casa. E lá estava ele, de costas para a entrada, de frente para o fogo da lareira.
— Pai? — sua voz saiu tremida pela emoção.
Sua vontade era correr e se jogar em seus braços, mas diante dele suas pernas amoleceram e vacilaram.
Ele se virou para ela e abriu aquele sorriso que conseguiria facilmente descongelar os pólos da terra.
— Enfim está de volta, minha filha! — Abriu os braços para ela.
Seu coração descontrolado impulsionou suas pernas e ela conseguiu correr até ele e abraçá-lo.
— Que saudade eu senti do senhor.
Ele acariciou seus cabelos e beijou sua testa.
— Eu sei, eu estava lá e vi tudo! Você foi muito corajosa, estou orgulhoso de você.
Agora estava completa e em casa. Nada poderia ser mais perfeito.
— E meu marido… meus filhos?
Mesmo que parecesse que estavam em um passado distante, ainda se sentia ligada a eles.
— Logo estarão aqui, cada um no seu tempo. Não serão mais seu marido e seus filhos, porque todos são meus filhos, mas você os reconhecerá e o amor que sente por eles será ainda maior e mais puro. Agora, aproveite a eternidade!