NOSSO DEUS, NOSSA DÚVIDA - (Contra-contos #12)

NOSSO DEUS, NOSSA DÚVIDA.

Era o homem mais… mais o quê?

Estranho, sábio, excêntrico, singular, sincero, coerente, confundidor?

Pois bem, era o homem mais – um ou diversos desses adjetivos – que conheci. E não nego, o fato de tê-lo conhecido me modificou em todos os aspectos – ou isso já estava predeterminado?

Como o conheci? Quando menos esperava, de chofre ou supetão, sem o menor aviso ou preparativo – a não ser o sonho claro em noite anterior.

Eu trabalhava como vendedor de carnês de grande organização e bati-lhe à porta no descaramento próprio dos vendedores e devido ao fato de que o bom vendedor deve começar trabalhando com os mais próximos.

Eu mudara para o bairro poucos dias antes, durante férias tiradas no trabalho e ia recomeçar atividades procurando vender aos novos vizinhos – não havia meio melhor de conhecê-los e me tornar conhecido senão apresentar-me como vendedor e vizinho novo.

Quem muda para outro bairro é, de certo modo, encarado com reserva, medo ou mesmo susto pelos residentes.

Fácil compreender, no treinamento para vendas aprendemos a nos colocar no lugar do comprador, de modo a podermos demolir qualquer resistência que a compreensão da motivação e psicologia das pessoas nos leve a encontrar, vender até o que não querem comprar, um tanto de acordo com o figurino do melhor vendedor do mundo, vendeu geladeira a esquimó.

Visitando-os e me apresentando como vendedor e morador novo, o pior – devemos pensar no melhor, pelo menos eu agia assim – seria se escusarem e não comprarem mas aceitariam o vizinho com mais presteza.

Isso era importante, no bairro melhor que o anterior onde eu residira moravam pessoas bem situadas no mundo dos negócios, o que fomentaria minhas possibilidades de subir na companhia ou passar a outra, melhorar de vida, ainda que deixasse de lado a função.

Toquei a campainha; foi ele mesmo quem atendeu. Barbudo, roupa simples e não muito asseada, cabelos desgrenhados e inteiramente à vontade, notei na primeira fração de segundo.

Logo adotava a ‘abordagem’ mais indicada ao tipo doméstico à vontade e pela idade não devia ser de muita besteira. Quase certamente não compraria, talvez a nora e o filho se estivessem em casa. Os mais jovens são melhores compradores, gente mais fácil de influenciar.

--Muito bem, moço – foi logo dizendo, cortando-me as palavras nos lábios. -- Em que posso servi-lo?

--Sou o vizinho novo à sua esquerda – apresentei-me com cordial sorriso, dei tempo para compreender o fato e no átimo azado sapequei-lhe a continuação:

--Sou vendedor, também.

--Não veio me vender sua vizinhança nova – comentou, sorriso surgindo em meio à barba, excelente sinal. – Veio apresentar-se? Pensei que ninguém mais fazia isso.

Era voz pausada, eu não ia interromper por obediência ao mais elementar mandamento de tal abordagem. Aos mais idosos e conservadores cabia ouvir com paciência – houvesse tempo, na maioria dos casos!

--Bem, estou fazendo, e muito satisfeito a começar pelo amigo – expliquei. -- Aqui tem meu cartão, o endereço é antigo, os cartões novos não estão prontos. Mas o amigo fica sabendo onde moro! Bem ao lado.

Ele examinou o cartão e eu me aprestava a lhe apresentar os produtos e serviços da firma quando me transfixou com olhar jupiteriano, coisa como a fisionomia de Zeus Pater no Olimpo – sempre fui bom de mitologia.

--Que tipo de venda está querendo fazer?

Antecipava-se às minhas palavras, na ponta da língua e nas quais ofereceria meus serviços profissionais. Em poucas frases debuxei o quadro geral de nossas atividades e encerrei com aquela ‘cereja’, sempre em último lugar por seu impacto.

--E o amigo terá direito a concorrer a todos os sorteios que fazemos por mês, sem pagar mais coisa alguma.

O olhar jupiteriano de antes varava-me agora como inseto trespassado por alfinete e enfiado na parede. Não que doesse, mas varava.

--E eu sou homem de aceitar direitos que não conquistei? -- interpelou. -- Já vi que não conhece seus novos vizinhos, rapaz. Vá com mais calma ou acaba se desentendendo até com os cachorros daqui.

Foi o primeiro choque verdadeiro.

Até então jamais vira alguém recusando um direito, qualquer direito, se alguém oferecesse – e gratuitamente!

Pensei que estivesse brincando mas não era essa a ocasião nem ele parecia dar-se ao gênero.

Seria doido? Lunático?

As pessoas podiam não se interessar pelo plano de carnês, podiam aceitar a oferta de tal direito especial sem maior interesse – mas rejeitá-lo? Essa, não. E que papo era esse de conquistar direitos? Estaríamos de volta à revolução da independência nacional, expulsão dos colonizadores a tapa ou foiçada?

--O amigo não quer esse direito?

Ele cruzou os braços no peito, encarava-me como se encara a um débil mental, na melhor das hipóteses. Comecei a perceber; sabendo ou não sabendo, tocara fundo no cidadão.

--Os direitos que eu tenho ou tiver, tenho ou terei porque lutei, ou lutarei para conquistar, não para ganhar de alguém que mos oferecer assim, de mão beijada.

O ‘mos’ confundiu-me um pouco, desde muito não ouvia – nem lia – algo tão antigo, reservado aos puristas da língua.

Mas quem vai se desconcertar com tão pouco?

O pior era entender o que ele queria dizer pois se não entendesse passaria diploma de burro ou, pior ainda, seria capaz de convencê-lo da minha irremediável palermice. Que diabo queria dizer com tais palavras? Vasculhei o cérebro à busca de uma saída e finalmente achei a mais primária e eficaz delas todas: pedir-lhe esclarecimentos.

--Receio não ter entendido. Como foi mesmo?

Ele fez gesto de resignação.

--Já sei. Sempre a mesma coisa. Não, meu rapaz, não é culpa sua, esqueça essa bobajada de culpa. Venha cá, vamos tomar chá.

Sem esperar resposta, puxava-me pela manga, fazia-me entrar na sala, havíamos conversado à porta entreaberta.

À medida que me adentrava, uma palavra começava a bater na árvore central de minha mata mental como pica-pau desesperado – tugúrio, tugúrio, tugúrio…

Era mesmo um tugúrio.

Quem entrasse contando encontrar um habitat humano teria surpresa igual ou maior que a minha. Na maior desordem imaginável viam-se inimagináveis engenhos, objetos, dispositivos, engenhocas, mapas, livros, gráficos, papéis, máquinas de escrever, revistas, móveis dos mais estupidificantes.

A toca do cientista louco, ocorreu-me o pensamento alarmado.

Tugúrio de lunático! Voltava o pica-pau a escrever no tronco de minha árvore central – figura a que me afeiçoei, ainda mais por ser frutífera e dar frutos o ano todo.

--Venha, sente-se aqui. Eu tomava chá, você vai me acompanhar.

--Mas meu trabalho…

--Corta essa garotão. Você não está aqui a trabalho, pelo menos eu não vou deixar. Está como vizinho novo, se morarmos lado a lado é melhor nos conhecermos bem. De outro jeito pode dar o maior galho da paróquia – pois o sujeito não estava falando como jovem em plena onda prafrentex?

--Papo legal, o seu – comentei um tanto arrepiado e espantado, olhando um e outro lado enquanto sentava no banco apontado com o bico da barba.

--Mais legal é o rabo de tua mãe – retrucou, sentando-se também e passando ao chá sobre a mesinha. – Não venha com esse tipo de merda, não funciona. Tem muita coisa a aprender!… -- suspirou fundo, depois de imenso e ruidoso peido para o qual se inclinara um pouco ao lado.

A essa altura perdi o rebolado.

Que o cara estava em casa à vontade, vira logo – mas não imaginara ficar tão à vontade. Eu, ao menos, levantava e ia peidar no banheiro, em qualquer lugar onde o odor não ofendesse as marinas alheias.

Minha mulher devia ser isenta de eructações esfintéricas ou intestinais pois nunca percebera nela ruído característico ou odor. Notava que ia ao banheiro com certa frequência. Só podia ser doido, doidão, o coroa abstruso. Mas essa impressão se desmanchou em seguida quando apontou à estante enfrente e avisou:

--Tudo aquilo é livro que escrevi, nesta casa. Os outros, escritos antes, andam por aí.

Levantei para examinar os livros e escapar ao odor tresandando de sua direção e procedência.

De fato os títulos anunciavam o mesmo nome do autor. Mas não podia ser aquele bode velho, com certeza fazia-se passar por escritor.

Tomei um, na capa traseira o comentário sobre o autor – e fotografia. Bem, bem… Se não era ele, devia ser sósia. E diziam, por coincidência e muitas referências, que ele morava… naquela cidade!

Ergui o olhar. Na parede a fotografia imensa o apresentava – ao lado do Presidente da República!

Acompanhando-me o olhar e esperando eu receber a xícara estendida, explicou:

--Tenho que deixar essa porcaria aí até ele ver se estou mesmo com o retrato dele na parede… ficou de passar por estes dias.

Lá fora uma buzina insistente, passos na calçada de cimento, batiam à porta como quem tem pressa.

--Já vou! Que dia movimentado! -- levantava-se, ia abrir. – Ah, é você, Excelência? Pode entrar.

Vinha da porta com criatura que … olhei de novo a fotografia, mas a estampa era conhecida. Não podia ser, mas – Sua Excelência o Presidente da República!

Fiquei parado, estatelando, engasgado e mudo. Os dois não me estavam dedicando atenção alguma, ao que reconstituí mais tarde, segundos mais tarde.

Abraçaram-se, o recém chegado Presidente da República, olhou-me então, pediu para ser apresentado:

--Não me apresenta mais às pessoas, só porque fui eleito, Artur?

O coroa puxou minha mão, a essa altura inteiramente gelada, eu hirto como manequim de loja de roupas, levou-a à mão que Sua Excelência estendia cordialmente, como se fosse um qualquer.

--Como vai o senhor?

--Huh, huh – fiz eu, laringe sumida, esfumara-se para dentro do vazio do corpo.

--O rapaz é tímido, sabe? Soltei um oprimido e ficou vermelho como camarão frito.

--Não repare nele – dizia-me Sua Excelência. – É assim mesmo mas sabe se comportar mais ou menos quando está fora de casa. Lá no Palácio me saiu com uma que quase botou tudo abaixo.

--E você acha que eu tinha que aturar aquele palhaço? Aquele lorpa não entende porra nenhuma do que fala. Como você foi chamar essa pústula para cargo público?

--Não fale assim, ele é bom sujeito, a política tem dessas coisas. Além disso você me diz quem ele é. Bem, só vim para lhe dar bom dia. Tenho que ir.

--Veio dar bom dia, é mesmo? Olha ali o que você veio ver, deixa de besteira!

--Apontava o retratão onde os dois apareciam juntos, cordialmente abraçados e sorridentes. Sua Excelência lançou olhar prolongado à foto enorme, voltou depois abraçá-lo, apertou de novo minha mão – teve que apanhá-la onde estava, na ponta de um braço inerte e pendido ao lado do corpo dormente – e se retirou.

--Vê se não aparece tão cedo! -- bradou-lhe meu visitado antes de fechar a porta e notei dois sujeitos de mala catadura e excelente físico, à espera de Sua Excelência no portão de entrada, riso amarelo e providenciando de imediato a cobertura de segurança do precioso encargo. Logo o carrão sumia na esquina.

--Eu… eu… -- ia conseguindo voltar à fala.

--Eu também – concordou ele, voltando a sentar-se. -- Venha tomar o chá antes de esfriar de todo.

Caminhei com passos maquinais, sentei-me com o maior respeito e veneração ao lado do vizinho novo que recebia assim o velho amigo, Presidente da República e o tratava de modo tão natural que me fazia pensar estar dormindo e sonhando, não acordado e ouvindo – agora ouvindo muito mais do que tentando falar.

--O negócio é o seguinte, meu rapaz. Deixa de lado todo quanto é besteira que aprendeu e presta atenção. Vou lhe dar um livrinho que escrevi, destinado a principiantes. Leia com atenção, vai entender muita coisa que não tenho tempo nem saco para explicar. Já expliquei demais a gente demais. Como é? Vai tomar essa porra de chá, ou não vai?

Sorvi tamanho gole que engasguei, impossível evitar a tempestade de chá que arremessei á frente, acertando-o em cheio. Recebeu aquilo como quem se conforma com qualquer coisa neste mundo. Apenas ficou de olhos fechados e ainda de olhos fechados indagou, afinal:

--Como é? Terminou de botar o chá pra fora? Estava tão ruim assim?

A essa altura dos acontecimentos faltava-me qualquer noção mínima de como me portar, o que fazer.

Todos os ensinamentos e macetes da comunicação, psicologia de vendas ou qualquer setor por mim estudado haviam solenemente sido sorvidos por um redemoinho levando a um senhor cano. Vasculhei em desespero a mitologia grega, onde costumava ser tão bom – nada encontrei. Pensei sair-me com um sufeca, colapso puro e simples, estatelar-me ali no banquinho – mas não pareceu bem.

--O chá estava... ótimo, senhor, quero dizer, doutor… ótimo, mesmo, desculpe, eu…

Ele se enxugava com um lenço trapo tirado do bolso das calças, enxugara antes algumas revistas colocadas sobre a mesinha. E prosseguia em bonachona capacidade de me trespassar corpo e alma, dizendo:

--Não é todos os dias que me dão um banho de chá. De outra vez vai sentar-se ao meu lado, assim ao menos cospe para a frente eu escapo.

Terminava a enxugação de uma revista estrangeira e completava:

--É só não ter muita coisa na frente.

Eu só pensava em levantar e sair correndo, nunca mais ver aquele homem diante de quem me portara como o maior dos imbecis desajeitados. Ah, se meu chefe soubesse!

Ao mesmo tempo a alma danada do vendedor entrevia possibilidades fantásticas. Aquele vizinho não era homem comum – ficara patenteado.

A lidar com ele eu não me devia portar como homem comum pois estaria relegado ao limbo dos inexistentes, dos seres fantásmicos, sem essência ou substância – e sem voz.

Acossava-me tremenda vontade de chorar e pedir ajuda de minha mãe, coisa que me ocorrera pela última vez quando tinha seis anos de idade e o moleque da vizinha me quebrara o velocípede e o pau do nariz com desempenho de luta livre surpreendentemente hábil, diante de minha recusa a deixá-lo dar uma voltinha no veículo, velocípede e veículo? Boa pergunta a uma hora daquelas! Vontade de chorar!

Ele se encostava na cadeira, cruzada as pernas e começava:

--Escute uma coisa, seu moço. Não vai ficar tão abafado assim porque apareceu o homem que chamam de presidente da República. Ele é velho amigo e espero que você tenha a capacidade de ser também, porque vamos estar tão perto, você morando na casa ao lado. A casa, aliás, é minha. Toda esta rua é minha, a administração está entregue a uma firma qualquer aí, eu não ia lidar com gente chegando e gente saindo, receber aluguéis e o mais.

Bonito! Além de vizinho e homem tão importante, era meu senhorio.

Eu quase afogara em chá o meu senhorio. Ia ter que começar a aprender tudo outra vez, desde o abc. Nisso ocorreu-me a saída que consertasse mais ou menos a situação desastrosa na qual me metera.

A expressão iídiche, como se dizia?

Ah, sim! Chutzpah – a audácia inacreditável do homem que, tendo estrangulado a mãe e estripado o pai, pede clemência aos jurados alegando ser um pobre órfão.

Por onde começar? Ele ofertara amizade, propusera sermos amigos mesmo depois de tanto fiasco de minha parte.

Não podia ser homem comum, devia ser tratado como se trata aquele cientista louco, absolutamente pirado, mas capaz de sair com máquinas, engenhos e coisas que funcionavam e mudavam a face do mundo.

Era preciso alçar-me a nova dimensão mental, nova dimensão de vida.

Ali podia estar mais que minha carreira profissional, podia estar minha vida nova – ou o fim da minha vida, se não correspondesse, não me portasse à altura.

--Descontraído, é? -- bradei, disposto a tentar ao menos igualá-lo em tanta naturalidade. – Pois espia só.

E plantei uma bananeira na parede em frente, derrubando meia dúzia de quadros pendurados quando os pés rasparam por ela. Após fazê-lo deixei-me cair de modo esmolambado, levantei-me de qualquer jeito e – milagre! – soltei o maior peido de meus últimos tempos. Essa contagem, ao menos, ficava igualada.

Ele me fitava, ceticismo na expressão, cofiava a barba, de cara amarrada.

--Precisa treinar mais, a posição ioga não está boa. E ventosidade chula não veio sozinha, é melhor dar um pulo no banheiro.

Indicava com a esquerda a porta interna da sala, dizendo:

--Segunda à esquerda.

Como podia adivinhar tanto assim?

De fato eu sujara as cuecas. Na maior naturalidade e pernas mais abertas, à la cowboy, caminhei na direção indicada e tomei a segunda à esquerda, limpei-me o melhor possível, aproveitei para esvaziar mais.

Enquanto isso, pensava, furioso. Aquele bode velho não ia desmontar minha técnica de vendedor, mesmo porque se o fizesse que seria de mim? Nada restaria.

--Isso de ser vizinho pode dar certo. Você tem qualidades. Quanto ganha no emprego?

Eu voltara à sala, impávido, tinha uma sombra de começo de plano, mas o barbudo me cortou as palavras antes de enunciá-las.

Dei o total inflacionado e sem falar nos descontos e despesas por minha conta, que reduziam aquele total absurdo a menos de um terço. E imaginava que diabo de qualidades teria encontrado em mim.

--Se perder o emprego venha falar comigo. Pago o dobro para ser meu secretário. E não vai ficar feito um ioiô, indo e voltando do trabalho na cidade, todos os dias. É só atravessar a cerca, pode pular também.

Assim passei a ser o secretário do meu vizinho e senhorio.

E minha vida se transformou, coisa assim como da água para o vinho.

*******

Tempos depois ouvi a explicação que dava a um amigo, o Ministro do Exterior do Canadá, que viera visitá-lo em meio ao programa oficial de recepções do governo, referindo-se a mim e narrando por que me contratara como secretário à primeira vista e primeira visita como vendedor e vizinho novo, pensando em lhe vender carnês de poupança, com brindes e demais bonificações destinados a arrastar clientes.

--Minha carta (referia-se a previsões astrológico-biorrítmico-cósmicas que fazia para si mesmo mensalmente e com antecedência) dizia que se manhã naquele dia ia entrar por minha porta meu novo secretário e amigo. Não foi o Juracy (referia-se ao Presidente que o visitara) porque esse já estava previsto. Quem chegou de manhã foi esse aí – ainda não me chamava pelo nome. – O resto deu certo e conferiu. Jogou chá em minha cara, portou-se como o mais imbecil e cretino dos malucos que vi até hoje. Marcas inconfundíveis, assim como os doze sinais que marcam o futuro Dalai Lama.

Nada do que contava era surpresa para mim, no período inicial do emprego como secretário tivera que mergulhar no conhecimento da vida mais abstrusa, extraordinária e inacreditável – aos padrões comuns – com que deparara até então.

Meu chefe, patrão, vizinho, amigo, pai (assim o considerava agora) e irmão mais velho (idem) descobrira determinadas verdades e realidades que costumam passar despercebidas às pessoas, certos ritmos e fatos da vida permitindo prever com semi-exatidão a maioria dos acontecimentos aos quais dedicasse atenção.

Até então fora apenas um homem inteligente e observador, sem atuação em qualquer setor senão o de cuidar da vida. Desfizera-se da família, mulheres e filhos com três delas – por não poder dar-lhes a atenção que desejavam receber do marido e pai – e se dedicara a escrever cartas.

Sim, isso mesmo, escrever cartas.

Enviava carta a alguém de sua escolha, dizendo em linhas mestras o que aconteceria ao escolhido nos três meses seguintes. E esperava o resultado. Como o destinatário muitas vezes não recebia tais cartas, interceptadas por secretários, parentes, postalistas e o mais, alguns não haviam respondido.

Mas certo dia recebera à porta da casa modesta em subúrbio a visita de figurão do pais: um ministro, carta à mão, viera bater à porta cabisbaixo e desconfiadíssimo.

Zendavesta, o nome com que assinara a carta enviada ao cidadão ilustre, previra com exatidão mais do que suficiente os 90 dias seguintes na vida profissional da criatura, que por coincidência passara olhos divertidos pela carta vinda pelo correio, guardando-a por ser amistosa embora cheia de advertências de infortúnios e maus augúrios para sua pasta.

E ao sucederem os fatos previstos, mais e mais se lembrara da carta, voltara a consultá-la, teimara em não atender aos conselhos ali contidos – e cada vez mais se encalacrara.

Vinha como humilde cidadão, criança repreendida e advertida, verificar que tipo de criatura pudera escrever-lhe em tão boa vontade dizendo o que lhe aconteceria profissional e pessoalmente.

E Zendavesta o recebera com a maior naturalidade, galardoara-o com chá especial por ser o primeiro a aparecer depois de mais dez cartas enviadas e sem resposta, desatendidas ou nem mesmo lidas pelos destinatários.

Encontrara seu nome e fotografia, cortada de revista, em ficha aberta no fichário verde – assinalando quando aparecera para consultar o previsor.

Saíra dali com outra relação de 90 dias, orientações seguidas à risca e se recuperara, consolidara-se no posto e pessoalmente estava agora felicíssimo. Tornara-se Presidente da República, eu o (re) conhecera em casa de meu (então) ignorado senhorio, na foto e logo em pessoa…

A repercussão do fenômeno, após o primeiro destinatário ter surgido, espalhou-se sigilosamente pelo país. Zendavesta escrevia a outros, sugeria consultarem a primeira Previsão em caráter sigiloso e pessoal, logo suas cartas eram lidas com respeito, interesse e seriedade.

Assim se formara reputação que lhe trazia à porta figuras do país e logo do exterior, com dia e hora marcados – e permaneciam por instantes, saíam com folhetos explicativos e tremenda amizade por aquela criatura espantosa que lhes modificara a vida.

Não eram horóscopos, mas previsões dando ao destinatário a clareza das opções reais que teria. Tomado outro, tudo marchava para o maior dos prejuízos e o menor dos proveitos.

Para os não iniciados as visitas de pessoas importantes tinham a ver com o fato de o Previsor (gostava de chamar-se e ser chamado assim) ser afamado escritor de obras semissérias (ou pareciam) e eles apenas leitores e amigos que o vinham cumprimentar.

Para quem sabia mais e melhor, ali se encontrava o posicionamento claro das situações e pessoas nas questões com que teriam que lidar em suas vidas pessoais e profissionais; ele extraía de seus dados pessoais (aqui entravam os dados de astrologia e a necessidade de comparecerem pessoalmente para mais esclarecimentos) conjugados a uma série de tabelas, quadros e preceitos condificados por ele em obras especiais os fatos ocultos vislumbrados.

Desnecessário dizer que, sem pessoa alguma o perceber, sua morada – e logo se mudara para outro bairro do qual gradualmente se tornava o dono, os inquilinos verificados sem saberem disso – era garantida por tal mecanismo de segurança como poucos no mundo o tinham, e muitíssimo bem encoberta pela aparência (e mesmo realidade) de uma fachada perfeita, suburbana porém em nível bom.

Continuava trabalhando em tais conjuntos, para tanto utilizava em casa os mais variados recursos e outros a lhe entulharem o quintal.

A instâncias minhas; que viera alugar-lhe a casa ao lado e assim me tornara novo vizinho, passou a estender suas experiências e observações no terreno de ‘minha’ casa, pois o espaço do quintal da sua se achava reduzido.

Eu já morava praticamente em casa dele, onde passava o dia ajudando nas experiências e entendendo cada vez mais o que fazia, começando a perceber todo um Universo novo e diferente daquele no qual nascera e ao qual me habituara – ou julgara ter habituado.

Fiquei sabendo que estava talhado para substituí-lo após ajudá-lo, caso falhasse sua sequência, isto é, caso partisse desta para melhor, o que era perfeitamente possível a qualquer pessoa – e algo que não sabia prever, isso lhe fora vedado pela Ordem Maior (como a chamava).

Seu modo espaventado e primitivo de ser e lidar com as pessoas constituía parte importante de todo o esquema, por ser natural nele e igualmente criar na atmosfera a que os clientes compareciam em pessoa um tom que as punha desarmadas, sem máscaras e recursos, permitindo maior acerto nas previsões.

E eu, sempre muito descarado, viria a ser seu sucessor ainda mais primitivo em modos, natural em maneiras, chegado o momento.

Meu casamento, bastante abalado desde antes, ficou entregue ao relento do abandono e logo a mulher se divorciava, coberta de razão. De fato não consegui ver as relações matrimoniais e a vida familiar que levávamos, sem filhos, como algo cada vez mais sabendo a família.

O olhar de Stella, na última vez que nos vimos em casa, era da mais total e desesperançada fúria.

--Vá-se amigar com o velho! -- bramia. – Veja se ele lhe dá os filhos que quer! Eu não sirvo para você, nunca servi!

Eu baixara a cabeça e saíra, porque o alívio do desfecho se mostrava grande demais.

Fizera todo o possível para darmos certo mas a esterilidade irremediável de Stella comprometia tudo, não de minha parte porém da sua. Se a mulher, Stella, qualquer mulher, precisa ter filhos, eu não sentia a necessidade de ser pai.

Era o fim.

De nosso malogrado casamento, que por isso fizera de mim um dínamo no setor de vendas da antiga firma – ficava em casa apenas o necessário para não ser incriminado de abandono de lar – nada restava. O mais era trabalhar, trabalhar, trabalhar…

Continuei a ocupar a casa da qual ela se retirou porque minha incorporação ao esquema do Previsor aguardava meu comparecimento a fim de ampliar arquivos, fichários, outras instalações e isso requeria mais espaço – que foi a casa ao lado, ocupada por mim e pela qual não mais pagava aluguel.

Por um ano, aproximadamente, trabalhei, isto é, aprendi a trabalhar com ele e mais ainda, a pesquisar os dados por ele descobertos. Comecei a abrir asas, executar por mim mesmo, entender o que se passava por baixo da superfície da Terra e também por cima e ele assistia com a mais deslavada satisfação – encontrara ajudante agora, sucessor se faltasse.

Nossa atividade de correspondência era feita não por escrito mas em resumos crípticos que os destinatários – e consulentes – entendiam e ninguém mais entendia.

Todos os surgidos sem serem chamados eram submetidos a prova simples e julgada infalível por meu mestre.

Se não era para receberem orientação, por motivos ligados à Ordem Maior (como dizia e eu passava também a dizer) dávamos-lhes resumos inócuos e vazios, servindo magnificamente ao propósito de levá-los a nos desmoralizar junto a todos como charlatães; isso permitia seguir agindo junto aos que deviam receber tal esquematização das opções.

Assim se formava a minoría a se guiar (se quisesse) pelos esquemas, a maioria a rir do trabalho e de nós.

Só que os primeiros sabiam e sabiam ser preciso haver essa fama de charlatanismo, único meio de encobrir o trabalho e permitir sua continuação.

Não esqueço as primeiras explicações que me deu sobre a questão. Tomávamos chá na mesma sala onde eu plantara bananeira, cuspira-o quase todo com o conteúdo da xícara (agora sabia ter sido o sinal confirmando minha chegada), soltara o mais ruidoso dos peidos e sujara as cuecas.

--A Ordem não se pode manifestar neste mundo como oráculo grego respeitado por todos porque isto seria invadido, assaltado, tomado. É preciso que os homens indicados recebam orientação, ao menos por determinados períodos e a imensa maioria tenha a mais gritante certeza de que nosso trabalho é tolice e charlatanismo. De outra forma não conseguiríamos fazer coisa alguma.

--Mas o homem sempre esteve ‘livre’ – eu usava a palavra com as reservas estipuladas e esclarecidas entre nós – antes. Por que motivo a Ordem começa agora a intervir?

Coçou a cabeça, parecia hesitar em esclarecer a questão.

--Bem, digamos que nossos Maiores estão pensando em voltar – principiou. – E não querem a estupidez do homem destruindo o planeta. Para evitar, alguns homens, em posições especiais, recebem o Esquema para agir conforme um Plano Maior fora de nosso alcance. Basta a obra deles para evitar a Destruição.

Eu entendia perfeitamente, mesmo que se tudo fosse apresentado em linhas bem amplas e muitos setores fora de nossa compreensão.

--E se o Previsto (o indivíduo que recebia o esquema) não atender, resolver agir por conta própria e contrariar o esquema?

--Dará com os burros n’água e não durará muito tempo no lugar. Outro o substituirá, os erros e buracos serão tapados, os erros reparados, os males desfeitos.

--E no aspecto pessoal? Os Previstos vão querer receber orientação por toda a vida depois de largarem os postos importantes?

--Pelo fato de tomarem o rumo mais conveniente eles próprios se educam e se põem de tal modo esclarecidos que dali em diante saberão por si mesmos se governar. Não precisarão mais do esquema.

--Entendo. Basta uma lufada de ‘oxigênio’ e o cidadão não fará mais besteiras?

--Mais ou menos. E se algum resolver arregalar os olhos e quiser tirar vantagens pessoais do Esquema Previsto que recebeu antes, consegue antagonizar-se com todos e acaba mal. Já aconteceu com alguns…

--Mestre, temos ou não liberdade, livre arbítrio e essa coisa toda? ­-- perguntava eu, sabendo que a questão era bem outra.

--Você já sabe mas vou dizer. Está dito em meus livros, na boca de um ou outro personagem, nesta ou naquela situação. O fato de que essa ideia de ‘liberdade’ e ‘livre arbítrio’ serve muitos propósitos e o maior deles e fazer as crianças se sentirem felizes, andando em velocípedes novos… sentem-se donos do mundo. Sentem-se mesmo se não o forem.

--Não existe liberdade nem mesmo para os adultos? -- arrisquei.

--Existe. A Ordem respeita certas escolhas e decisões, mas apenas as fundamentais, não as secundárias. A criatura quer morrer e está disposta a acabar com a vida, eis decisão fundamental. Mas a escolha do meio pelo qual vai fazê-lo, jogar-se debaixo de trem, pular da ponte, enfrentar um leão bravo, isso é determinado pela Ordem. Não conviria ficar entregue ao acaso.

--E Deus, mestre? Existe, afinal?

--Você perguntar é sinal de que ainda não chegou lá. Mas não tenho pressa; há muito não tenho pressa. Faço o que é para fazer, exerço a liberdade de não me apavorar diante da aparente ‘falta de liberdade’ e de ‘determinismo’ no qual fui criado até bezerrão grande. Deus pode existir, não seria impossível, de um modo fora do alcance de compreensão até da Ordem. E pode não existir, não passar de suposição que dá ânimo, graça ou apenas nome a algo que contamos ou não contamos existir. Existe Deus? Não se sabe. Existe a dúvida? Provavelmente…

Era quando o via mais sério e compenetrado. E humilde.

--Talvez você, neste plano, mundo, dimensão em que estamos, possa ir além do que fui – prosseguia e libertava um oprimido – Veja, até nisso a Dúvida impera. Você talvez consiga ir além…

Pensei, disse o que estava ao meu alcance.

--Vou tentar, mestre. Acho que vou.

Jamais alcançara tamanho pináculo de dúvida, coragem, humildade, atrevimento, tudo ao mesmo tempo, compondo realidade interna que só naquele momento se formara, mesmo por instantes.

Mas era desses instantes, dessas conjunções raras que se fazia a Vida.

Naqueles momentos eu sabia, eu era e por isso mesmo ‘nós’ éramos e sabíamos.

Descartes daria pulos na cova ao perceber – se pudesse – que ‘sei, logo existo’ tinha muito mais realidade e substância que ‘penso, logo existo’.

Mas não era, ainda, a Realidade Total. Apenas uma Realidade Maior.

E ele, emborcando a xícara de chá, engasgou, cuspiu-me uma boa parte do conteúdo.

Rimos tanto que foi preciso correr ao banheiro, esbarramos a caminho do mesmo, fizemos mesuras oferecendo a vez ao outro e finalmente solucionamos o impasse, um no banheiro principal o outro no de empregada.

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Valpii 860509-790715

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NOSSO DEUS, NOSSA DÚVIDA

Forma parte da Coletânea

CONTRA-CONTOS, de Affonso Blacheyre, (1928-1997),

cuja biografia está publicada no RECANTO..

Trata-se do décimo segundo dos contos da coletânea.

(editado por Gabriel Solis.)

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Affonso Blacheyre

Affonso Blacheyre
Enviado por Gabriel Solís em 19/10/2024
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