Yatshariel
Aquele Que Abandonou a Glória por Amor
1° PARTE
Nos dias eternos, quando o cosmos mal se havia formado e a luz de Deus resplandecia imaculada, havia um anjo que servia diante do trono da Santíssima Trindade. Seu nome, sussurrado apenas nos recônditos do céu, era Yatshariel – "Aquele que abandonou a glória por amor". Yatshariel era um dos anjos que tinham o privilégio de estar em constante comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, contemplando a pureza e a infinita misericórdia que emanava de sua presença.
Enquanto a harmonia divina ecoava pelo Céu, Yatshariel observava o que acontecia na Terra. O pecado havia corroído a humanidade desde a queda, e o sofrimento dos homens aumentava a cada geração. O coração do anjo, acostumado à perfeição do Céu, começou a se quebrar ao testemunhar a dor da criação e a separação dos humanos de Deus. Ele viu como o pecado, como uma praga, destruía vidas, afastava as almas do Criador e gerava caos em um mundo que deveria ser de paz.
Yatshariel também via o pesar que atingia o coração da Santíssima Trindade. Embora Deus fosse onisciente, conhecendo o fim desde o início, e infinitamente amoroso, Yatshariel podia perceber uma tristeza profunda no Pai, no Filho e no Espírito Santo, que sofriam com a rejeição de sua criação e com as consequências do livre-arbítrio mal empregado. O Filho, especialmente, que já havia se preparado para descer à Terra e tomar sobre si os pecados da humanidade, emanava uma dor indescritível por saber o preço que pagaria.
A angústia de Yatshariel cresceu tanto que ele começou a se sentir impotente, perdido em seu serviço angelical. Ele amava a Deus com toda sua essência, mas não conseguia suportar ver o sofrimento na Terra sem agir. E assim, algo raro aconteceu entre os celestes: Yatshariel sentiu-se incapaz de permanecer no Céu. Era como se uma parte dele estivesse sendo atraída para o mundo terreno, para se aproximar daqueles que sofriam.
Em sua tristeza e confusão, Yatshariel afastou-se do Trono, algo que nunca havia feito antes. Ele voou para longe da glória divina, para um lugar onde os cânticos dos anjos já não ecoavam, onde o silêncio e a solidão o envolviam. Ali, ele tomou a mais difícil das decisões. "Eu devo descer", pensou, "não como anjo, mas como homem. Devo conhecer suas dores, suas lutas, e ajudar a quem puder com minhas próprias mãos."
Chegou aos portões celestiais, onde um imenso querubim fazia a guarda. O querubim, ao vê-lo, disse:
— O que faz aqui, irmão? Este não é o seu lugar. Você sabe que não pode estar aqui!
— Eu quero descer — respondeu ele. — Preciso ir à Terra para ajudar os homens!
— Que loucura! Não pode fazer isso sem que o nosso Pai o tenha designado! — retrucou o querubim.
Aproveitando que o querubim estava distraído com a conversa, ele, como um raio, atravessou o portão em direção à Terra, movendo-se acima da velocidade da luz. Caiu como um cometa em um lago, e, quando emergiu, já era um homem. Suas asas agora se transformaram em um manto que o envolvia.
O sacrifício de Yatshariel foi total. Ele, que havia vivido em perfeita unidade com o divino, abandonou sua natureza angelical, suas asas radiantes e seu conhecimento celestial. Em um ato que reverberou nos céus, ele desceu à Terra. Ao tocar o solo, sua forma mudou. Ele sentiu o peso da carne, a fragilidade do corpo humano e o vazio que o separava do Criador. Yatshariel agora era um homem, com todas as necessidades e limitações que isso acarretava.
Com um novo nome e identidade, ele passou a vagar pelas ruas do mundo, desconhecido por aqueles que o cercavam. A cada passo, ele se dedicava a ajudar quem estivesse em dor. Ele alimentava os famintos, curava os doentes, confortava os desesperados, mas sentia em seu coração uma luta constante. Embora seu desejo fosse imenso, suas forças humanas eram limitadas. Ele não podia alcançar todos, não podia livrar o mundo do sofrimento como sonhara.
Ainda assim, Yatshariel – agora conhecido entre os homens como Yared, que significava "descendente", aquele que desceu – prosseguia com sua missão. Ele sabia que havia renunciado à glória, mas nunca deixaria de lado o amor que o motivava.
Mas mesmo o mais puro dos sacrifícios não ficaria sem consequência. Seria possível, algum dia, Yatshariel retornar à glória de Deus? Ou ele estava destinado a viver como homem até seu último suspiro, completamente desconectado do Criador a quem servira?
2° PARTE
Yared, o nome humano que Yatshariel adotou, vivia de forma humilde e sem buscar reconhecimento. Ele se via apenas como um servo do bem, alguém que havia trocado o esplendor do Céu pela poeira das estradas. Sua única ambição era fazer o bem, ajudar aqueles que encontrava e, acima de tudo, apontar para Deus, o único digno de glória.
Por onde ele passava, a bondade e a compaixão o seguiam como uma brisa suave. Ele nunca buscava notoriedade, nem falava de si. Sempre que curava um doente, alimentava um faminto ou oferecia abrigo a um desamparado, sua resposta era a mesma: "Agradeça a Deus. Louve ao Senhor pelos benefícios. Não sou nada mais que um viajante." Ele deixava para trás apenas gratidão e fé renovada nas pessoas que tocava.
Mas mesmo os mais simples gestos de bondade podem se tornar lendas quando o poder divino se manifesta. Aos poucos, as histórias de um andarilho milagroso começaram a se espalhar. Aqueles que haviam sido curados falavam de um homem que, sem pedir nada em troca, oferecia cura para doenças incuráveis. A fama do "andarilho de Deus" crescia a cada vila, cidade e aldeia por onde ele passava.
Havia histórias de cegos que voltaram a ver, de paralíticos que caminharam, de crianças à beira da morte que se levantaram saudáveis. Mas Yared jamais reivindicava o crédito. Cada milagre, cada cura, era sempre atribuído ao amor de Deus. E, embora sua vontade fosse permanecer nas sombras, a lenda sobre ele florescia sem que ele pudesse evitar. Homens e mulheres contavam suas histórias ao redor de fogueiras e em praças públicas, alimentando a narrativa de que havia um enviado de Deus caminhando entre eles.
Aqueles que conheciam sua verdadeira face – os anjos ainda no Céu – observavam a jornada de Yatshariel com um misto de assombro e tristeza. Eles sabiam o sacrifício que ele havia feito ao abandonar sua natureza celestial e assumir um corpo mortal. Seu amor pela humanidade havia se tornado sua cruz, pois ele sofria como os homens, enfrentava o cansaço, a fome, a solidão e o medo, tudo por um propósito maior. Porém, mesmo assim, a Trindade não o havia abandonado, e embora ele não ouvisse diretamente a voz do Pai como antes, Yatshariel sabia que seu caminho era abençoado.
Em pouco tempo, Yared passou a ser conhecido como o Errante Milagroso, um nome que as pessoas sussurravam com reverência. Em muitas aldeias, ele era esperado como uma visita divina. As pessoas preparavam-se para recebê-lo, esperando que, com sua presença, seus problemas fossem resolvidos. Isso causava um profundo desconforto a Yared, que nunca desejou ser visto como alguém especial. Ele procurava seguir adiante, sem deixar rastros, mas o amor e a bondade que emanavam de suas ações tornavam-no uma figura inesquecível.
Em um certo dia, enquanto descansava à sombra de uma grande árvore em uma pequena vila, um homem aproximou-se dele. Era um idoso de andar frágil, porém seus olhos brilhavam com um fervor que Yared logo reconheceu como sendo de fé. Ele se ajoelhou diante de Yared e, com lágrimas nos olhos, disse:
— Grande servo de Deus, eu te busquei por meses. Ouvi falar dos teus feitos, do bem que espalhas por onde vais. Minha filha está morrendo, e eu não tenho mais forças. Por favor, salva-a!
Yared sentiu o peso da expectativa sobre seus ombros. Ele não era mais um anjo, não era mais dotado do poder que uma vez fluiu naturalmente de sua essência celestial. Agora, tudo que ele fazia dependia da vontade de Deus, e ele, como todos os homens, se via limitado.
Com humildade, ele colocou a mão sobre o ombro do homem e disse:
— Não sou eu quem pode curá-la, mas o Senhor, o Criador de todas as coisas. Louve a Ele, pois toda cura vem de Suas mãos.
Yared seguiu o homem até sua casa. Lá, em um pequeno leito, sua filha, uma jovem de olhos febris e respiração entrecortada, mal se mexia. Ele ajoelhou-se ao lado dela, sentindo uma profunda compaixão. Seus pensamentos estavam longe, nas memórias do Céu que agora pareciam tão distantes. Com uma oração silenciosa, ele pediu a Deus que tivesse misericórdia.
Quando a jovem abriu os olhos, sua febre havia desaparecido. Ela respirava com facilidade, e, com um olhar confuso, levantou-se. O pai, extasiado, caiu em lágrimas, abraçando a filha, enquanto repetia em voz alta: "Bendito seja o Senhor! Louvado seja Deus!"
Yared, como sempre, pediu que ninguém mencionasse seu nome. Ele desejava apenas seguir seu caminho, ajudando quem precisasse e apontando o louvor para Deus. Porém, a cura milagrosa espalhou-se como fogo. Em breve, multidões começaram a seguir os passos de Yared, procurando nele um salvador terreno.
Mas ele sabia que, enquanto o amor de Deus fluía através dele, algo maior estava por vir. Seu sacrifício ainda não estava completo, e os caminhos de Deus eram misteriosos. Assim, ele seguiu adiante, sempre em movimento, uma alma em paz com seu destino, mas ciente de que a jornada ainda não chegara ao fim.
A lenda do andarilho errante milagroso de Deus crescia, mesmo que ele, em seu coração, soubesse que sua missão era muito mais profunda do que os homens podiam compreender.
3° PARTE
Os dias passaram, e o poder que antes fluía das mãos de Yatshariel, agora Yared, começou a se esvair. Curas que antes aconteciam com um simples toque começaram a exigir mais esforço, e, em pouco tempo, ele se viu impotente diante das dores e sofrimentos do povo que tanto desejava ajudar. Os doentes que antes se levantavam curados, agora permaneciam acamados. Yared sentia o peso da sua limitação humana e do fardo de estar desconectado da sua antiga glória.
Um sentimento de fracasso e desespero tomou conta de seu coração. Ele havia abandonado o Céu para trazer consolo à humanidade, mas agora parecia tão frágil quanto qualquer outro homem. O mundo continuava a afundar no sofrimento, e ele não conseguia mais mudar isso. A tristeza que já o acompanhava tornou-se insuportável.
Cansado e sentindo-se vazio, Yared decidiu se isolar, afastando-se das cidades e vilas onde sua lenda havia crescido. Ele caminhou por longas semanas até encontrar a mais alta montanha do país. Lá, na solidão, ele se propôs a orar, buscando novamente o contato com Deus, o Criador de todas as coisas.
Subiu até o topo da montanha, enfrentando ventos gelados e terrenos íngremes. Suas forças estavam no limite, mas sua determinação de falar com o Pai era maior do que qualquer cansaço físico. Ao chegar ao cume, com o horizonte se abrindo diante de seus olhos, ele se ajoelhou e levantou suas mãos ao céu. Lágrimas escorriam de seu rosto enquanto ele começava a clamar:
— Senhor, meu Deus, Criador de tudo, como posso continuar a ver tanto sofrimento sem fazer nada? Eu desci à Terra porque não suportava ver a dor e o pecado devastando aqueles que Tu amas. Mas agora, meu poder se foi, e eu não posso mais ajudar. Eu quero fazer mais, quero aliviar as dores desse mundo... Por favor, Senhor, dá-me uma resposta! — disse Yared, a voz embargada pelo choro.
Ele continuou orando por horas, talvez dias. Suas lágrimas molharam o chão da montanha, e a dor em seu peito parecia insuportável. O peso do mundo estava sobre ele. Exausto de tanto clamar, Yared desfaleceu no solo frio e rochoso, sentindo que suas forças e sua alma estavam se esvaindo.
Quando abriu os olhos novamente, algo estava diferente. Não havia mais o vento cortante nem o solo duro da montanha. Ele estava envolto em uma luz brilhante e acolhedora, e o ar era doce e puro. Ao seu redor, anjos que ele conhecia desde tempos imemoriais o olhavam com alegria, mas também com tristeza. Todos sorriam, mas em seus olhos havia um brilho de compreensão e compaixão.
Yared estava de volta ao Céu.
De repente, uma presença inconfundível se manifestou. A Santíssima Trindade estava diante dele, e o Pai, em Sua glória, dirigiu-se a ele com uma voz que era ao mesmo tempo firme e cheia de amor:
— Meu filho, Yatshariel, não faça mais isso — disse Deus, com uma tristeza suave em Sua voz. — Tudo está debaixo do meu domínio e controle. Eu vejo e conheço cada dor, cada lágrima derramada. Tu desceste à Terra por amor, mas o caminho da salvação não está em tuas mãos.
Yatshariel, ainda comovido, tentou falar, mas as palavras pareciam presas em sua garganta. Ele sabia que o que Deus falava era verdade, mas o peso de sua compaixão pela humanidade era grande demais para ser silenciado facilmente.
O Pai continuou:
— Em breve, levarei a eles a salvação que tanto precisam. Tudo tem um tempo, e minha misericórdia não falha. O que tu fizeste foi nobre, mas o sofrimento do mundo faz parte do plano maior. Há redenção a caminho, e essa redenção virá por meio de meu próprio Filho, que em breve será enviado para trazer a verdadeira cura, não apenas para o corpo, mas para a alma de toda a humanidade.
Yatshariel caiu de joelhos diante do trono de Deus, sentindo o alívio das palavras divinas, mas ainda com a dor de ter testemunhado tanto sofrimento. Ele entendeu que, embora seus esforços na Terra tivessem sido importantes, havia um propósito maior que ele, em sua forma mortal, não podia compreender completamente.
Deus, em Sua bondade, estendeu a mão para ele:
— Descansa agora, meu filho. Tu fizeste o que o teu coração ditou, e foi movido por amor. Mas o destino da humanidade não está sobre teus ombros. Em breve, eles receberão a salvação que tanto precisam, e o mundo será restaurado.
Com essas palavras, Yatshariel foi envolvido em um profundo sentimento de paz. Ele sabia que o plano divino estava em andamento, e que a humanidade não estava sozinha. Enquanto olhava ao redor, vendo a beleza indescritível do Céu e sentindo novamente o conforto de estar na presença de Deus, ele sentiu o peso do fardo humano sendo tirado de seu coração.
Finalmente, Yatshariel sorriu, sabendo que havia cumprido sua parte. E, com isso, aceitou que a salvação que ele tanto desejava para o mundo estava nas mãos perfeitas de Deus.
E assim, o anjo que havia abandonado a glória por amor, encontrou descanso e compreensão no plano eterno do Criador.