A Profecia de Boitatá

 

1° PARTE

 

No final da tarde, enquanto o sol começava a se esconder atrás das colinas verdes da floresta tropical, a tribo Tupi-Guarani se reunia ao redor de uma grande fogueira. As chamas crepitavam e lançavam sombras dançantes sobre os rostos atentos dos membros da tribo, que se acomodavam em torno da fogueira, em um círculo respeitoso.

O pagé, com sua indumentária cerimonial adornada com penas e pinturas tradicionais, levantava a voz em um cântico profundo e ressonante. Suas palavras eram carregadas de sabedoria ancestral, transmitindo histórias sobre a criação do mundo e dos seres que habitavam a terra. Ele falava sobre Tupa, o deus criador, que moldou a terra e os céus, e sobre o espírito da floresta, que protegia os caminhos secretos e os segredos das árvores.

“Assim como Tupa fez o mundo surgir do vazio, Ele também criou a floresta, o rio e as criaturas que nela vivem,” dizia o pagé. “Os protetores da floresta, os espíritos ancestrais, caminham entre nós, guiando-nos e protegendo-nos.”

O pagé continuou, descrevendo como os primeiros homens e mulheres foram formados a partir do barro das margens dos rios e como, com o passar das gerações, foram ensinados a viver em harmonia com a natureza. Suas palavras eram como uma ponte entre o passado e o presente, mantendo viva a rica tapeçaria cultural de sua gente.

À medida que a noite avançava, o pagé mergulhou em um transe profundo, seus olhos se fechando enquanto entoava cânticos mais antigos e sagrados. O brilho das chamas refletia em seu rosto, e uma aura de mistério parecia envolver sua figura.

De repente, o ambiente ao redor da fogueira pareceu mudar. Um vento frio soprou através da clareira, e a chama da fogueira tremeluziu. O pagé começou a falar em um tom diferente, mais sombrio e urgente. Ele estava agora em comunicação com um espírito ancestral, cuja presença era sentida por todos, mesmo que invisível.

“Cuidado!” a voz do pagé ecoou, carregada de uma gravidade inusitada. “O Mal virá pelos mares!”

Aquelas palavras foram acompanhadas por uma sensação palpável de pavor. O pagé, após pronunciar a mensagem, desabou ao chão, inconsciente. Imediatamente, alguns dos membros mais próximos da tribo o levantaram e o levaram para sua oca, enquanto o resto da tribo observava, atônito e silencioso.

Aquela noite foi marcada por uma inquietação profunda. O som da floresta parecia mais ameaçador e as sombras das árvores, mais densas. Todos foram dormir com uma sensação de temor e apreensão. A mensagem do pagé, e o modo como ele havia desmaiado, pairavam no ar como uma nuvem pesada.

No dia seguinte, a tribo tentava retomar a normalidade. Os guerreiros preparavam-se para a caça, as mulheres realizavam suas tarefas diárias, e as crianças brincavam entre as árvores e ao redor da fogueira. Contudo, a inquietação da noite anterior ainda persistia. O pagé estava deitado em sua oca, sendo cuidado por alguns dos anciãos, mas a mensagem que ele havia recebido permanecia em seus pensamentos.

O cotidiano da tribo seguia seu curso, mas a sensação de que algo sinistro estava por vir nunca abandonou os pensamentos dos que estavam mais próximos do pagé. A semente do medo havia sido plantada, e as histórias antigas sobre ameaças vindas do mar começaram a ser sussurradas novamente.

 

2° PARTE

 

O sol já estava bem alto no céu quando os guerreiros da tribo retornaram da caça, carregando suas presas com orgulho. Eles trouxeram peixes frescos, com escamas brilhando sob a luz do sol, e uma grande anta, cujas pernas robustas balançavam ao ritmo de seus passos firmes. O cheiro da caça recém-capturada se espalhou pelo acampamento, misturando-se ao aroma da fogueira.

Enquanto os homens eram recebidos com gritos de alegria e congratulações, as mulheres se afaziam em suas tarefas. Com mãos ágeis e experientes, elas começaram a preparar uma variedade de alimentos típicos. A mandioca, base essencial da dieta, era cozida e transformada em um prato delicioso. Os preparos incluíam também frutas e raízes, que eram cuidadosamente temperados com ervas e especiarias locais.

As crianças, excitadas com a perspectiva de uma refeição abundante, corriam ao redor do acampamento, suas risadas ecoando entre as árvores. A alegria era palpável, e o temor da noite anterior parecia se dissipar conforme a energia positiva se espalhava. Elas se entrelaçavam em brincadeiras animadas, ansiosas pela comida que estava por vir.

O pagé, embora ainda marcado pela estranha experiência da noite anterior, decidiu se entregar ao espírito da festa. Ele observava o movimento alegre ao redor da fogueira, sentindo o calor reconfortante das chamas e o cheiro das iguarias sendo preparadas. Embora o pensamento sobre a advertência do espírito ainda estivesse presente em sua mente, ele permitiu-se relaxar e se envolver na celebração.

Quando os alimentos estavam prontos, a tribo se reuniu em torno da grande fogueira para o almoço. A comida foi servida generosamente, e cada um se serviu com entusiasmo, saboreando os pratos tradicionais que encheriam seus estômagos e aqueceriam seus corações. A refeição foi um banquete farto, o suficiente para sustentar a tribo por três dias.

Após a refeição, a alegria e o regozijo continuaram. A fogueira, agora com as chamas dançantes, serviu como o palco para as danças tradicionais. Homens e mulheres, em trajes coloridos e adornos de penas, giravam e moviam-se ao ritmo dos tambores e cânticos. As crianças se juntavam, pulando e rindo, enquanto o som da música envolvia a clareira em um clima festivo e vibrante.

O pagé, agora mais relaxado, se levantou e se juntou às danças. Seus movimentos eram mais lentos e meditativos, mas ainda carregavam a energia ritualística que ele sempre imprimiu em suas tradições. A dança se tornou um meio de expressar a gratidão pela abundância e pela comunidade unida.

O sentimento de unidade e alegria preenchia o acampamento, e por um momento, a sombra da inquietação parecia ter sido afastada. A tribo dançava sob o céu estrelado, celebrando a vida e a harmonia com a natureza, imersos em um momento de paz e felicidade que equilibrava a ansiedade da noite anterior.

 

 

3° PARTE

 

 

O terceiro dia após a grande caça havia chegado ao fim. A tribo se reunia mais uma vez ao redor da fogueira, degustando os restos da refeição que ainda se estendia. A noite estava calma, e a luz da fogueira fornecia uma iluminação calorosa e tranquilizadora, lançando sombras dançantes sobre os rostos dos membros da tribo e parte da floresta ao redor.

O calor da fogueira era acolhedor, e o ambiente estava preenchido com a sensação de satisfação e segurança. No entanto, a calma foi abruptamente interrompida quando, sem aviso, a fogueira começou a se apagar de maneira inesperada. As chamas se extinguiram repentinamente, sem qualquer vestígio de fumaça. O que antes era um brilho constante e animador agora era um manto de escuridão.

O pagé, que havia se embriagado um pouco durante a noite, estava deitado em sua rede, e o apagão da fogueira o fez cair no chão com um grito de surpresa. A tribo se levantou em um misto de espanto e confusão, tentando entender o que estava acontecendo. O silêncio na clareira parecia carregado de tensão.

De repente, a fogueira reacendeu-se com uma intensidade ainda maior. As chamas voltaram a brilhar, mas agora algo extraordinário estava acontecendo. As chamas não eram mais simples e comuns; elas pareciam se transformar, moldando-se e se estendendo. O fogo começou a saltar para fora da fogueira, e as chamas se reuniram e tomaram a forma de uma gigantesca cobra flamejante. O Boitatá, um espírito serpentino e protetor das matas e das terras, manifestou-se na forma de fogo.

O Boitatá se ergueu em sua forma imponente, e sua voz ecoou com um tom grave e ameaçador: “Cuidado! O mal vem pelos mares!”

Após a advertência, o Boitatá, com uma explosão de chamas, saltou de volta para dentro da fogueira, que imediatamente retornou ao seu estado normal, como se nada tivesse acontecido. A cobra de fogo desapareceu, deixando atrás de si apenas a fogueira comum, com suas chamas dançantes e calorosas.

O espanto tomou conta dos indígenas. Mesmo acostumados com o sobrenatural e com as manifestações dos deuses, o que acabara de ocorrer era além do que poderiam imaginar. O pagé, agora completamente desorientado e ainda embriagado, foi rapidamente ajudado pelos outros membros da tribo. Seus gritos de medo e pânico se misturaram aos gritos de apreensão dos índios.

Os membros da tribo, aterrorizados, correram para suas ocas, trancando-se rapidamente e garantindo a segurança de seus lares. A noite que deveria ter sido de paz e celebração tornou-se um período de medo e confusão. O pagé, incapaz de se mover sozinho, foi levado para sua oca e trancado nela. Seu medo era palpável, e ele gritava desesperado: “Não me deixem aqui sozinho!”

Dentro de sua oca, a tribo se reunia em um murmúrio coletivo de preocupação e medo. “Cale-se, pai, vai dormir!” gritavam os mais jovens, tentando acalmá-lo enquanto a realidade do aviso do Boitatá ainda pairava sobre todos.

Aquela noite, marcada pelo medo e pela incerteza, os membros da tribo se preparavam para o que poderia vir a seguir, imersos em uma escuridão que parecia refletir a inquietante advertência recebida. O sentimento de insegurança e ansiedade pairava como uma sombra, prenunciando que os desafios e perigos anunciados poderiam estar muito mais próximos do que esperavam.

 

 

4° PARTE

 

 

Enquanto os guerreiros da tribo caçavam na floresta, os europeus, com suas armas de fogo e hastes adornadas com bandeiras e cruzes cristãs, chegaram à aldeia indígena. Com uma força esmagadora, capturaram todos os membros da tribo e os conduziram para seus navios. Os gritos e lamentos dos cativos ecoavam pela floresta enquanto eram levados para o mar, e a aldeia ficou em silêncio, deserta e vazia.

Quando os guerreiros retornaram à aldeia, encontraram apenas um vazio desolador. As casas estavam abandonadas, e a fogueira, agora apagada, era o único sinal de que havia uma vez ali uma comunidade vibrante. A confusão tomou conta dos guerreiros. Eles correram pelas matas e florestas em busca de respostas e, ao encontrar uma tribo vizinha, gritaram desesperados: “Cadê a nossa família, nossos filhos e o nosso pagé?”

O líder da tribo vizinha, ao ouvir o desespero dos guerreiros, aproximou-se com um olhar de preocupação. “Por que procuram aqui sua tribo? Não somos responsáveis pelo seu desaparecimento! Conte-nos o que houve.”

Os guerreiros relataram o que aconteceu: a estranha manifestação da noite anterior, a advertência do Boitatá sobre o mal vindo pelos mares, e o desaparecimento de sua tribo. O pagé da tribo vizinha escutou atentamente e, com uma expressão grave, disse: “Então já começou. Também fomos avisados.”

Imediatamente, uma reunião de urgência foi convocada entre as duas tribos. Os guerreiros e os membros da tribo vizinha decidiram se dirigir ao mar para investigar. O que viram os deixou horrorizados. Os grandes navios europeus estavam ancorados na costa, e do convés dos navios vinham gritos e choros de seus parentes. A visão dos navios, com suas velas e estruturas imensas, parecia quase divina e aterrorizante ao mesmo tempo.

Com a noite se aproximando, os índios decidiram esperar a escuridão para lançar seu ataque. Silenciosos como sombras, entraram na água, utilizando canoas e jangadas para se aproximar dos navios. Quando chegaram, se infiltraram nas embarcações, matando os invasores um por um com precisão letal. O caos tomou conta dos navios enquanto os índios lutavam ferozmente para libertar seus cativos.

Finalmente, após uma batalha intensa, conseguiram resgatar todos os membros de sua tribo e atear fogo aos navios. As chamas iluminaram o céu noturno, refletindo nas águas e revelando a intensidade da destruição. Ao chegarem na areia, o sol estava começando a nascer, e todos assistiram com um sentimento de triunfo e alívio enquanto os navios afundavam, consumidos pelas chamas e pela água.

De repente, um cervo branco surgiu na praia, correndo com uma graça etérea. A visão do cervo era um sinal poderoso, e todos se ajoelharam em respeito. O cervo, com uma voz que parecia ecoar das profundezas da floresta, disse: “Cuidado! O mal vem pelos mares!”

O impacto das palavras fez o pânico se espalhar entre os índios. Eles compreenderam que a batalha vencida não era o fim, mas apenas o início de algo muito maior e mais sinistro. O aviso do cervo branco era uma confirmação de que o perigo ainda estava por vir.

Com a determinação renovada e um senso de urgência, os líderes das tribos decidiram se afastar do litoral o mais rápido possível. Eles começaram a marchar em direção às montanhas, em busca de segurança e de um refúgio longe do mar. O medo e a incerteza os acompanhavam, enquanto se preparavam para enfrentar o que mais o destino lhes reservava, guiados pela esperança de encontrar um lugar seguro longe do alcance do mal iminente.

 

DengosoRock
Enviado por DengosoRock em 14/09/2024
Reeditado em 14/09/2024
Código do texto: T8151677
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