1. UMA GUERRA NO CÉU

 

 

 “E houve batalha no céu: Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão; e batalhavam o dragão e os seus anjos,  mas não prevaleceram; nem mais o seu lugar se achou nos céus.  E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o diabo e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele.” Apocalipse, 12:7:12

 

 

Por fontes alternativas às crônicas oficiais ficamos sabendo que aconteceu uma guerra no céu envolvendo diferentes facções de seres celestes, que de ordinário não eram muito diferentes dos seres humanos nessas coisas de poder e ambição. Isso dá para acreditar porquanto todas as antigas tradições nos dão conta de que os deuses, nesses vetustos tempos, brigavam como cão e gato, não só pelo poder, mas também pela posse de suas fêmeas, justamente como sempre fazemos nós aqui na terra desde a aurora dos tempos.

Não sabemos dizer exatamente quando isso aconteceu, mas cuida-se que tenha sido vários lustros atrás, porquanto nessas coisas de tempo, nas dimensões celestes não são contadas da mesma forma como fazemos aqui na terra. Por inferência podemos imaginar que esse conflito tenha ocorrido por volta do quinto dia da criação, quando Deus estava começando a povoar a terra com as sementes da vida, mas ainda não havia feito o homem Adão. E como Tucídides, Homero e Heródoto só nasceriam muitos milênios depois, essa guerra não teve um cronista, ou quiçá um poeta para registrar as suas nuances, razão pela qual tudo que se sabe são informações colhidas aqui e ali, a maioria de fontes apócrifas que falam por ouvir dizer, mas o que se sabe, nesse caso, é que um arcanjo da classe dos elohins chamado Samael liderou uma rebelião contra o senhor supremo do céu, que agora já sabemos chamar-se Jeová, mas foi derrotado pelas hostes que ele convocou e pôs sob a liderança de outro elohim, chamado Miguel. Destarte, Jeová, que prefere ser chamado de Deus, e nessas coisas de política não é nada condescendente, nem se presta a acordos em nome da estabilidade institucional, depois de reprimir a rebelião resolveu castigar o elohim rebelde juntamente com os seus partidários. Como não podia condená-lo à morte, como faria um rei tirano no exercício da sua autoridade, porque Samael, como Miguel, o elohim general que liderou o seu exército contra as hostes de Samael, também era seu filho, e por isso não estava sujeito à morte, Jeová preferiu expulsá-lo das dimensões celestes. E como não tinha onde ir, Samael foi condenado a cumprir exílio cá na terra, juntamente com os seus comandados.

A terra, naqueles dias já era um lindo planeta azul, cheio de rios de águas cristalinas e sadias e florestas virgens que filtravam o seu ar tornando-o um local de clima ameno e agradável. Disso sabemos porquanto está escrito que no terceiro dia Deus havia coberto a terra com erva verde e árvores frutíferas, que davam semente segundo suas espécies e estas se multiplicavam pelo planeta todo, fazendo dele uma gigantesca esfera verde na sua superfície, girando dentro de uma nuvem azul-metileno que proporcionava uma magnífica visão para quem a observasse do lado de fora.

Supõe-se ― e essa suposição fazemos para dar a esta narrativa uma contribuição da nossa lavra― que esse conflito tenha acontecido naquele intervalo entre a criação das espécies animais e a do homem, Pois, ao que parece, foi nesse momento que Jeová percebeu que entre as espécies criadas não havia nenhuma com a necessária qualia que ele precisava para fazê-lo conhecido e adorado como o Senhor que ele era, Porquanto escrito está que Deus fez os animais selváticos, as aves do céu, os domésticos e os répteis, todos segundo a sua espécie e viu que tudo era muito bom, só que nenhum deles tinha aparelhos neurológicos preparados para saber que existia um Deus que os fizera. Por isso é que ele disse aos seus companheiros elohins “Façamos o homem à nossa imagem e semelhança para que presida toda a criação”, E assim ele fez o homem como está escrito que foi feito, varão e fêmea, e como cremos, com os sexos embutidos no mesmo corpo, em princípio, e só depois separados para que se tornassem um casal.

Agora, como vimos, Samael e seus partidários, expulsos do céu, haviam se homiziado na terra. Pressupõe-se que isso também tenha ocorrido antes da criação do homus sapiens. Disso sabemos por fontes, ainda que não oficiais, que dão conta que os anjos são uma criação anterior aos homens e eles já estavam aqui antes do casal humano ter sido gerado pelos processos que já registramos. Em aqui chegando adotaram o nome esquisito de nefilins, porque Jeová os proibira de continuar usando o alcunha da Ordem dos elohins, que era privativo das hostes angélicas que permaneceram fiéis a ele. Isso nos mostra que esse negócio de direito de imagem e propriedade intelectual não é coisa nova nem invenção dos homens, pois da mesma forma que qualquer pessoa que não tenha obtido o título de médico, advogado, engenheiro ou que tais pode sair por aí se titulando como um deles, também um elohim, um querubim, um serafim, um aufanin, como tais se chamavam as diferentes classes de seres celestes, não podiam ter a sua titulação utilizada de forma clandestina por quem quer que fosse. Dai o fato de os elohins expulsos do céu terem adotado aqui na terra o nome de nefilins, E isso, como se prova, não é invenção nossa porquanto as próprias crônicas oficiais que deram notícia desse fato assim os chama, denunciando, ademais, que eles não eram lá muito sérios, porquanto ao chegarem na terra foram logo se amasiando com as fêmeas que aqui encontraram, o que constitui outra prova de que nesse tempo já tínhamos por aqui criaturas como nós, ou mesmo bastante parecida conosco, ainda que, por opiniões acadêmicas se possa imaginar que essas fêmeas pudessem ser um tanto simiescas e não tivessem a aparência que lhes foi dada nas crônicas oficiais, que as descreveram como sendo muito belas. Bem pode ser, porquanto é de conhecimento público que o conceito de beleza é coisa muito particular e o que um pode achar feio o outro pode achar bonito e vice versa. Nesse angu não poremos nossa colher para não criar mais polêmicas do que as que já existem nesse conto, e pelo qual já antevemos muitos rostos sisudos a tecer suas considerações de como mandar este escriba para o inferno.

Mas do que se informa nos cânones oficiais é que os nefilins as acharam formosas e com elas se amasiaram, gerando uma raça de gigantes, que ao que parece, ainda tinha descendentes muitos séculos depois vivendo na terra da Palestina, através da degenerada raça dos anaquins, que segundo se escreveu, faziam os bravos guerreiros de Josué parecerem como insetos aos seus olhos.

Essa informação nos leva a outra constatação: a de que Adão e Eva foram feitos por Jeová e seus partidários com o claro propósito de criar na terra uma família que pudesse se contrapor á que os elohins rebeldes haviam criado em sua incursão no planeta. Como isso se deu é o que se conta nas crônicas que deram origem a esse conto, E como se diz nos dias de hoje, essa narrativa viralizou tanto que é tomada como se fosse uma ata de cartório na qual se registra um fato incontestável.

E tanta é a força do conto que ele narra que muita gente já pagou com a vida por ter tentado desacreditar essa narrativa, Nós, que achamos ser esse um preço muito alto para sustentar uma mera vaidade intelectual ficamos com a opção do sofista que tem uma resposta diferente para cada pessoa que lhe faz a mesma pergunta, simplesmente porque cada uma quer crer na sua própria verdade e não na que os outros querem fazê-la acreditar. Isso dizemos porque, como informou um renomado filósofo, o mundo todo é um sofisma de composição, pois tudo nele é resultado de vontade e representação que a mente do homem constrói para preencher a sua própria realidade. E como diz outro não menos renomado pensador, nós somos uma espécie de ponte entre o ser e o nada, e tudo que fazemos na vida destina-se a preencher um vazio que sem a consciência humana jamais teria conteúdo.

Assim é que, quando o elohim  rebelde chamado Samael —— que depois disso passou a ser conhecido também pelos nomes de Lúcifer, Satan, Satanás, Ariman, Belzebú, Enki, Baal, Diabo, Dragão e outros epítetos que lhe foram dados só para fazer frente ao seu oponente Jeová, que se ufanava de ter mais de dez bilhões de nomes, mas só gostava mesmo de ser chamado de Deus ― percebeu que só conseguiria aborrecê-lo se conseguisse estragar parte da sua obra, a primeira coisa que fez foi descer ao jardim onde morava o casal que Deus fizera, e começar um trabalho de intriga e maledicência para fazer a cabeça do casal contra Jeová.

E como era mestre nessas artes de transformismo, trucagens que muitos atores iriam imitar depois, ele travestiu-se na pele de uma serpente, que segundo se sabe, nessas remotas eras era o rei dos répteis que serpeavam pelas florestas que Jeová plantara na terra no terceiro dia da criação. Para fazer esse papel, Samael, dizíamos, assumiu a figura de uma vistosa serpente falante. Se o imaginarmos na compostura dos seus quatro metros de comprimento e as belas escamas que cobrem seu corpo com uma coloração variada de pintas que vão do cinza-claro ao marrom escuro, ele não deixa de ser uma visão interessante, pois ele é uma espécie de cobra que não só respira como um lança-chamas, soltando fogo pelas ventas, mas também fala. Enrodilhado  em volta de uma árvore carregada de frutos que parecem maçãs, que como as outras que Jeová fez brotar da terra, eram abundantes naquele jardim, Samael está ali, sabe-se lá há quantos anos, ou séculos, esperando pelo momento em que vai vingar-se do monarca que o expulsou do céu e o arrojou na terra, quiçá para cumprir uma sentença de exílio numa terra inóspita e deserta, mas que ele, com a sua esperteza de general que fora, acabara transformando num reino tão próspero e poderoso que já começava a causar preocupação em Jeová.

Samael, ele mesmo um ex-elohim, astuto e bem informado como era, sabia muito bem que Jeová e seus partidários tinham feito aquele casal de humanos para contrastar com as próprias crias que ele e seus companheiros exilados haviam produzido e estavam prosperando na planície de Senaar. E os tinha criado isolados naquele jardim que ele plantara entre os dois grandes rios da região, distante de todas as gentes que habitavam fora dele porque não queria que eles se contaminassem com os vícios e comportamentos que o povo criado pelos nefilins haviam desenvolvido.

Essa era a razão de Jeová ter plantado aquele jardim e posto lá os seres que ele e seus partidários modificaram genéticamente para dar como resultado o casal humano. Ali eles viveriam ausentes de problemas de qualquer ordem, sem precisar trabalhar nem enfrentar nenhum dos constrangimentos que o ser humano comum suporta no seu dia a dia.

Tudo quanto era fruto ali havia e outras fontes de alimentação também, de sorte que Adão e sua companheira Eva nada precisavam fazer para ganhar a vida. Só haviam dois tipos de fruto que Jeová proibira o casal humano de colher: um era o fruto da árvore do conhecimento e o outro o fruto da árvore da vida.

Frutos, como tais conhecemos essas prodigalidades apetitosas que a natureza nos oferece, certamente que não o eram os tais rebentos das árvores do conhecimento e da vida. Na verdade, se quisermos ser explícitos e desvelar o segredo dessa metáfora diremos que tal jardim das delícias, onde o casal humano foi posto para viver era os próprios corpos deles, E o fruto do conhecimento, que Jeová os havia proibido de comer, na verdade era o sexo com o prazer com que ele provoca, Pois com ele vem a luxúria e a promiscuidade que muitas vezes contamina os sentidos com o veneno do vício e da malícia, Na mesma esteira de entendimento, diríamos que o fruto da vida era a imortalidade, que aos seres humanos devia ser vedada por conta da própria função que a eles fora delegada, qual seja, a de encher a terra com seus descendentes, e à cada geração ir melhorando a sua cepa até chegar numa etapa de perfeição que agradasse os olhos e o gosto exigente de Jeová.

Não era o caso de que Adão e Eva fossem assexuados. Se o fossem seria mais uma incoerência posta no plano divino pois o que ele queria era que o casal humano enchesse a terra com uma população descontaminada dos vícios que a civilização dos nefilins estava desenvolvendo. Disso sabemos porque antes da transformação do homus erectus no homus sapiens ― os primeiros chamados neandertais e os segundos de cro-magnons pelos acadêmicos ― o casal humano não tinha vergonha de andar nu, como de resto o fazem todos os seus primos da espécie simiesca. Nem o chipanzé, o mais inteligente dos macacos, se constrange com isso, e anda pelado pelas florestas mostrando o falo para quem quiser e é capaz até de masturbar-se com a maior cara de pau frente às pessoas que o provo-cam, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo.

Por isso Samael, o anjo caído, a serpente astuta, que também é conhecido como o Dragão Maldito, sabia que dos frutos de todas aquelas árvores o casal humano podia comer ―o que se entende que todos os demais sentidos e prazeres eles podiam experimentar ― menos dessa, e da outra que, ao parece, Jeová também plantara ali com um propósito que até hoje não se descobriu, porquanto ainda são tantas as conjeturas que se fazem a respeito e muitas as narrativas que se criaram em torno desse assunto. Mas de Jeová sabemos que ele tem razões que a nossa razão desconhece e não podemos ficar a interpelá-lo e constrangê-lo a dizer mais do que ele mesmo queira informar, o que entendemos bem, já que, se ele assim resolver fazer, deixará de ser o mistério que ele sempre quis ser e mistério resolvido perde o interesse, coisa que não seria de muito proveito para o seu propósito.

Samael também sabia disso porque ele próprio conviveu com Jeová em tempos que as calendas humanas não tem como registrar, já que o próprio tempo, tal qual o conhecemos e medimos ainda não existia, E Samael, que por sinal, era o que podemos chamar de filho de Jeová, que então ainda não tinha esse nome, mas que  era apenas o Inominado, o Sem Rosto, o Ancião dos Dias e o Grande Semblante, tinha com ele relações tão próximas de parentesco e amizade, que o próprio Samael acabou acreditando ter privilégios maiores do que todos os outros e que podia, ele mesmo, considerar-se igual ao pai. E foi quando ele apresentou a Jeová essa reivindicação que a coisa azedou lá no céu e aconteceu a cisão que ficou conhecida como a Rebelião de Lúcifer.

Jeová não gostou nada da pretensão de Samael e, astuto como deve ser um rei do seu porte, logo viu que essa ambição do seu filho luminoso poderia degenerar em uma rebelião incontrolável. Até porque Samael já havia arrebanhado um séquito de seguidores dispostos a aceitar sua liderança e organizar um reino próprio, no qual pudessem fazer suas próprias leis e viver uma existência da forma como gostariam de viver. Cioso da sua autoridade e ciumento como era do mundo que ele criara, Jeová jamais admitiria um poder paralelo na dimensão em que ele mesmo vivia.

Num acesso de ira, natural em qualquer monarca que vê, de repente, seu poder sendo contrastado e seu governo contestado, Jeová arrojou para fora do seu reino a horda rebelde, E por razões que não vêm ao caso, pois essa é outra das suas ações que ele não viu necessidade de explicar, deu como lugar de exílio para os revoltosos justamente a terra que ele havia acabado de fazer para alojar as criaturas mais importantes da sua criação, que eram os seres viventes.

Destarte, Samael sabia o que Jeová pretendia com a criação do casal humano; que ele se reproduzisse o suficiente para encher a terra de rebentos da sua lavra, O que, para tanto, proveu os testículos de Adão com sementes de sua espécie, diluídas numa goma líquida branca e pegajosa, que seria expelida por um falo que se destacava no meio das pernas dele,  no ventre da mulher que ele havia feito para ele a partir de uma célula tirada da sua costela, E no útero de Eva, que assim foi chamada a mulher que ele fez nessa verdadeira operação cirúrgica, digna dos melhores especialistas nessas ciências de reprodução humana, ele colocou todos os ingredientes necessários para dar formação aos novos seres que ele queria que povoassem a terra.

 

(continua)