O Espírito da Revolta

 

Reginaldo sempre teve uma ética de trabalho impecável, a melhor de sua turma, ou assim ele achava. Quando foi contratado pela empresa de recursos humanos de um renomado humanista, imaginou que seu esforço e dedicação seriam recompensados. Mas logo se viu enredado em uma realidade cruel e desumana, moldada pelo próprio chefe, Ricardo Alvarenga, apelidado pelos funcionários como " Xarope".

 

Ricardo era o epítome do humanismo radical, uma filosofia distorcida na qual o trabalho árduo não era apenas uma virtude, mas uma obrigação suprema. Ele acreditava que, ao impor a si mesmo e aos outros uma carga de trabalho extenuante, estava contribuindo para o bem da humanidade. Mas, para Reginaldo, sua filosofia era um fardo, um tormento disfarçado de dever. Reginaldo às vezes dizia a si mesmo: "Trabalho com a porcaria de um louco!"

 

Desde o início, Reginaldo foi sobrecarregado com tarefas que iam além das descritas em seu contrato. Ele passou a trabalhar não apenas em projetos complexos e intermináveis, mas também a fazer tarefas administrativas que não tinham relação com sua função, acompanhado de dores de cabeça constantes, fadigas, tonturas, ânsias de vômito, e começou a ter leves alucinações, sempre vendo um homem quase idoso passando no corredor à frente. O lugar emanava estresse, raiva, pesar. Ricardo, com sua filosofia de trabalho, ignorava os limites humanos, acreditando que todo esforço extra era um passo em direção à grandeza pessoal, profissional e ao que ele poderia até chamar de transcendental. Não sabia ele, que na verdade criou um atmosfera ruim no local, um pequenique para aqueles que desejavam esse tipo de energia e de alimento.

 

O ambiente na empresa, que deveria ser colaborativo e inspirador, tornou-se um caldeirão de tensão e frustração para Reginaldo e os demais funcionários. Não havia muita conversa e alegria ali, apenas tensão, muita tensão. Cada dia parecia uma tortura, com prazos impossíveis e demandas injustas. Uns diziam: "Aguenta! Falta pouco pra você se aposentar!" Outros: "E agora? Meu filho acabou de nascer!" O desprezo do chefe pelas necessidades e limites de seus funcionários só alimentava a indignação crescente de Reginaldo e dos demais.

 

Ricardo, certa vez, como que em um surto, tirou a vassoura de Amélia, auxiliar de serviços gerais, e entregou-a a Reginaldo, dizendo: "Prove que é humilde, prove que é humano, vá lavar o banheiro!" Reginaldo respondeu: "Como assim lavar o banheiro? Não fui contratado para isso. Você está ficando louco?" "Louco?" replicou Ricardo, espumando. "Eu comecei limpando chiqueiro de porcos, seu desgraçado! Eu comecei limpando granja, cocô de galinha!As vezes essa sujeira respingava nos meus braços e até na minha própria boca! Você acha que é mais digno do que eu e meus antepassados porque fez uma faculdade? Já provou cocô de porco e de galinha Reginaldo, já sentiu o sabor da realidade garotinho?

Hoje eu sou dono dessa empresa, sou o rei de vocês, sou Salomão aqui! Mas já fui um homem pacato do campo, comendo o que criava e colhendo o que plantava! Pegue logo essa vassoura antes que eu..."

"Antes que eu o quê?" perguntou Reginaldo. Ele até pensou em pegar aquela vassoura e dar uma vassourada no chefe, mas conseguiu se controlar ao ver aquela cabeça branca e o olhar de pânico entre os funcionários que ouviam do pequeno escritório toda aquela gritaria! Com receio de ser preso e piorar as coisas, engoliu a seco aquela afronta. Depois desse dia, nunca mais foi o mesmo! Toda humanidade e misericórdia que tinha acabou ali! Voltou a beber e fumar e já não dormia bem; passava as vezes madrugadas em claro, vendo tv e aplicativos de celular, indo trabalhar como um zumbi, cheio de ódio e malícia!

 

Então, chegou o dia fatídico. Durante um almoço corporativo, onde todos os funcionários estavam reunidos, Reginaldo à beira de um colapso nervoso. A pressão e o ressentimento haviam se acumulado ao longo de semanas, e sua paciência estava no limite, começou a ficar sem ar.

 

Com o refeitório cheio e as conversas animadas, Reginaldo se levantou abruptamente, sua expressão uma mistura de fúria e desespero. Seus olhos estavam escurecidos pela raiva, como se uma nuvem de ira descesse sobre ele. De repente, ele não apenas surta, mas começa a se contorcer de maneira estranha, chamando a atenção de todos no local, alguns de outras filiais que não o conheciam, gargalhavam, achando se tratar de uma pegadinha. Em um piscar de olhos, Reginaldo parece mudar, seus olhos ganham um brilho sobrenatural, ele apaga, e, de repente, ele incorpora um espírito.

 

O espírito, salta curvado, como um gato assustado e caindo na mesa, agarra Ricardo pelo pescoço com uma força inesperada. Ricardo, com o rosto pálido e o terror estampado, tenta se soltar, mas a entidade está determinada. "Por que você está tratando mal esse menino Ricardo, porque está sendo um homem tão malvadinho?" o espírito vocifera, sua voz ecoando com uma gravidade antiga e com tom de zombaria repetiu a frase de Ricardo: "Eu comecei minha vida limpando chiqueiros e granjas, comi fezes de porcos e galinhas. Seu caipira idiota! Você acha que pode tratar os outros como lixo?"

 

A cena era uma mistura absurda de terror e comédia. Ricardo, lutando para respirar, parece um marionete nas mãos do espírito. A plateia do almoço, entre sustos e risadas nervosas, observa o caos com olhos arregalados.

 

Enquanto isso, os seguranças da empresa, em um pânico desordenado, tentam conter Reginaldo. Com movimentos desajeitados, eles tentam se aproximar de Reginaldo, que anda curvado rindo e balançando os braços no chão, como se estivesse imerso em um ritual antigo. A cena só aumenta o pânico geral e a confusão na sala.

 

Finalmente, após uma série de tentativas e com um esforço coordenado, os seguranças conseguem conter Reginaldo. O espírito se desvanece, deixando a sala em um silêncio atônito. Ricardo, ainda tremendo e com a aparência de quem viu um fantasma, é resgatado e levado para fora aos berros, num surto psicótico.

 

O evento deixou uma marca indelével na empresa e na vida de Reginaldo. Ricardo, agora profundamente abalado, teve que reconsiderar suas práticas e filosofias e procurar tratamento psiquiátrico. Reginaldo, marcado pelo trauma e pela fúria, não se lembrava de nada, mas enfrentou as consequências de seu ato desesperado e foi despedido.

O chefe dizia: "Assassino aqui não, aqui não! Vai embora desgraçado!"

 

Reginaldo voltou a enviar currículos e, todo dia depois daquele fatídico almoço, nunca mais deixou uma vela apagar em sua casa!

DengosoRock
Enviado por DengosoRock em 04/09/2024
Reeditado em 04/09/2024
Código do texto: T8144330
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