Adão estava com cento e trinta anos quando Eva engravidou novamente e deu à luz a um filho conforme sua semelhança e imagem. Assim se diz porque certamente Cain não o era, sabendo agora, como sabemos, que ele era filho de Samael, o Dragão, o anjo caído, e de certo não tinha imagem e semelhança com seus pais terrenos. Cain, na verdade, mesmo sem o saber era um nefilin, como tais eram chamados os filhos dos deuses com as mulheres da terra. Causa espécie, o que repetimos para destacar, o fato de o nosso pai Adão, com cento e trinta anos ainda tivesse força nos testículos para fazer um filho em Eva e que ela mesma pudesse engravidar com a idade provecta que certamente tinha, mas como o tempo, nessas velhas calendas não se conta pelas medidas de hoje, vamos considerar que tenha sido mesmo assim, porquanto, quando não se tem como afirmar nem infirmar uma narrativa, o que melhor se faz, nesse caso, é dar por procedente quando se fala com quem nela crê e por apócrifa quando se fala com quem não acredita. Até porque, nesses casos envolvendo crenças, para quem crê nada se precisa justificar e para quem não crê nenhuma explicação justifica.
A esse filho de Adão, que segundo se diz, foi dado por Deus ao casal humano para substituir Abel, a quem Caim havia matado, já sabemos que foi dado o nome de Seth. Talvez essa seja a explicação do fato de, numa idade assim tão avançada, Adão ter tido a capacidade de procriar e Eva de engravidar. Por que Seth foi dado a eles para substituir Abel, que o amaldiçoado Cain, filho bastardo do seu adversário engendrou. Deus, ele sim, pode fazer isso e ainda mais, porque segundo se informou, depois de Seth ele e sua esposa Eva tiveram outros filhos. E assim fica-se resolvida essa questão e não precisamos mais falar nisso. Até porque, se quisermos alongar essa discussão teremos que justificar também que Seth, com cento e cinco anos, igualmente teve um filho ao qual chamou de Enos, o qual, por sua vez, aos noventa, gerou Cainan, e este, para não desonrar seus prolíficos e vigorosos antepassados, também gerou um filho chamado Malalael nos seus provectos setenta anos. E Malalael, seguindo o exemplo do pai gerou Jared com sessenta e cinco anos e Jared, benza Deus, com cento e sessenta e cinco deu vida a Enoque, que com sessenta e cinco anos gerou o homem que, segundo essas calendas foi o que mais tempo viveu no mundo, o vetusto Matusalém. Talvez seja por conta dessa proeza que se diz que Enoque simplesmente desapareceu do mapa depois que Matusalém saiu dos seus testículos para morar durante o tempo da incubação no ventre da sua mãe, e depois foi levado vivo para o céu, ou para outra dimensão ou planeta qualquer, a gosto de quem quiser e imaginar, no vigor dos seus trezentos anos bem vividos. Continuando essa saga de varões prolíficos e extraordinariamente viris veremos o velho Matusalém gerando um filho chamado Lameque com cento e oitenta e sete anos de idade, e depois dele, seu filho Lameque, com cento e oitenta dois anos gerando o nosso velho conhecido Noé, a quem, segundo o que foi narrado, devemos a sorte de estar aqui hoje, porque, a se crer nessa narrativa, toda a vida na terra estaria extinta se ele não tivesse construído aquela barca para salvar a semente da humanidade malvada e pecadora que o seu adversário Samael havia contaminado com o mais perverso dos vícios: a luxúria.
Sim, pois foi a luxúria que levou Jeová a se aborrecer com toda a criação, porque ele, como se diz, sendo fiel, o que entende pelo fato de nunca ter se casado, não suportava que os anjos, seus filhos celestes, que eram portadores dos seus melhores atributos se amasiassem com as filhas dos homens e gerassem aquela nefasta raça dos nefilins, cuja civilização se tornava cada vez mais possante e desenvolvida, desafiando inclusive a sua majestade.
Essa civilização, que havia sido trazida à terra pelo anjo caído, seu rival o Dragão Samael, que havia inclusive conspurcado a sua obra engravidando Eva para nela gerar o amaldiçoado Cain, era agora o calo no sapato de Jeová, se assim se pode dizer. O fato é que depois que Cain se amasiou com Lilith e gerou Enoque, e depois que teve acesso ao seu verdadeiro pai, Enki, o deus sumério, que era nada mais, nada menos que o próprio Samael, a estirpe de Cain se multiplicou país de Senaar e dali para o resto da terra, levando a ciência do conhecimento para todos os cantos do planeta. E junto com esse conhecimento, a liberdade de pensamento que os afastava cada vez mais dos desígnios que Deus havia prescrito para a humanidade.
Destarte, Jeová estava fulo da vida com a humanidade, que estava, a todo pano, seguindo o exemplo de Samael, ao seduzir e fazer sexo com Eva, e de Cain, que estava amasiado com Lilith. A verdade, que se afigurava aos olhos de Jeová, era que Samael estava ganhando aquela queda de braço que eles começaram quando o seu filho rebelde se voltou contra o pai. Claro está que Jeová deve ter se arrependido de deixar que ele se exilasse na terra e desvirtuasse a sua criação. Afinal, ele era Deus e Deus tudo pode, mas nessas coisas de política parece que ele se despe da sua sabedoria divina e age de forma tão incoerente quanto qualquer ser humano que se mete nessas lides. Pois se ele tivesse a clarividência que se lhe é atribuída pelo fato de ele ser Deus, certamente não teria tanto trabalho para, primeiro acabar com a geração pecadora e perversa que Samael e Cain espalharam pela terra, e depois, vendo que a nova geração que ele permitiu que florescesse a partir dos filhos de Noé, também se perdesse a ponto de necessitar mandar o seu filho Miguel, que cá entre nós foi chamado de Messias, Cristo, Salvador e outros epítetos, para ensinar a ela um caminho de volta para as boas graças de Jeová. E desse resultado há quem duvide, porquanto muito se especula se antes do sacrifício do Cristo, que por suposto foi a moeda com que essa humanidade pecadora e viciada comprou a sua redenção, os seres humanos não eram melhores do que são hoje. Vá lá se saber. O que acontece hoje nós vemos, sabemos e vivemos; o que aconteceu naqueles tempos só por ouvir dizer, e quando não se pode verificar se verdade o que se diz, qualquer um pode dizer o que quiser.
De qualquer modo, o que não é para desacreditar, porque tanto das fontes canônicas quanto das que se convencionou chamar de apócrifas, nos veio as informações de que a humanidade tinha se tornado tão depravada, que a vista e o cheiro dessas depravações chegavam aos sentidos de Jeová de uma forma tão insuportável que ele resolveu tomar uma providência. Segundo se registrou, ele disse, não se sabe a quem, mas seguramente deve ter havido um interlocutor para ouvir as suas palavras, senão ninguém as teria registrado, que o espírito dele não permaneceria entre os homens, pois eles haviam se tornado apenas carne. E teria dado apenas mais cento e vinte anos para ela, o que faz supor que ele, mesmo sendo Deus, havia que ter um tempo de preparação para a grande ação de eliminação daquele bando de tarados promíscuos em que a humanidade havia se tornado. Isso nos causa espécie porquanto Hitler, quando planejou a sua solução final contra o povo que escreveu essa história não precisou mais que dez anos para implementá-la, e quando o fez, foi com muito mais competência e menor custo do que o que Jeová teve que empenhar na sua. De qualquer modo, se computarmos as tantas quantas esquisitices que se atribuem à Jeová na confecção desse enredo, essa é apenas mais uma e não há porque dar tratos á bola por causa disso. O que se registrou, entretanto, e nisso concordam as fontes, é que os filhos dos homens haviam se tornado tão depravados que a sua existência se tornara um baita constrangimento para ele. Porque eles não só se tornaram devassos, sodomitas, assassinos, ladrões, vigaristas e tudo o mais, que nem mesmo Deus, depois do dilúvio, conseguiu eliminar do comportamento humano esses vícios, a se ver pelo que temos hoje. E ao que parece, eles também passaram a adorar outros deuses, porque escrito está que só após o nascimento de Enos, o neto de Adão, que o nome do Senhor começou a ser invocado. E temos para nós que foi mais esse fato que causou a gota d’água no copo da paciência de Jeová, porque, como sabemos, ele tudo pode perdoar, menos essa infidelidade de quem foi feito para dar testemunho da existência dele, e mais que isso, adorá-lo como a seu amo e senhor. E como dele disse Samael, e nisso não temos como contestá-lo, ainda que incorramos em grossa heresia, Jeová é um autocrata que não admite a menor contestação ao seu poder.
Todavia, como Jeová havia prometido um intervalo de cento e vinte anos antes de tomar uma providência mais drástica contra essa população contaminada pelas malícias de Samael, ele quis fazer desse tempo uma oportunidade para, quem sabe, a humanidade se arrependesse. Para tanto ele fez com que a terra se esturricasse e sonegasse seus frutos mesmo que os homens plantassem e regassem suas hortas e plantações. E dizem até que em lugar das belas e nutritivas frutas e hortaliças que eles plantavam nasciam apenas espinhos, cardos e roseiras bravas, e naquelas terras onde o trigo, a cevada e a aveia deveriam medrar, nem a erva, ou joio cresciam. A terra se tornou estéril, como Deus havia prometido a Cain.
É claro que para Deus cento e vinte anos é como um dia, ou menos, porquanto ele não faz aniversários como nós, mas para as gentes na terra evidentemente, tantos anos de secas, provações e dificuldades não deve ter sido fácil de superar. Mas eles devem ter arranjado algum modo suportar todas essas agruras porquanto se sabe que a humanidade não se emendou nem confessou estar suficientemente castigada para mudar de comportamento, porque consta que por essa altura, vendo que nem o castigo da terra arrasada fazia aquela gente se arrepender e mudar de comportamento, Jeová chegou mesmo a se arrepender de ter feito o ser humano. E o que prova que ele não era tão insensível como dele se escreveu, e que até tinha um coração, pois consta que ele foi tomado por uma dor tão grande nele, que, talvez para não enfartar, disse, cremos, desta vez para si mesmo: vamos acabar com isso.
Mas ao que parece, Deus ainda quis esperar mais um pouco, talvez para dar mais uma chance para a humanidade se emendar, porque ele viu que havia na terra um sujeito chamado Cainan, que por sinal era tataraneto de Adão, cuja família já estava na quarta geração; e esse Cainan, que tinha lá as suas fontes, ficou sabendo que Jeová andava bravo com a humanidade e tinha planos para acabar com ela. Só não sabia quando isso seria, e que a mortandade seria tanta que não sobraria ninguém para contar a história. Por isso, para preservar para quem viesse depois, se por acaso Jeová quisesse começar tudo de novo, ele achou conveniente registrar os seus saberes, que eram muitos segundo se diz, em tabuinhas de barro que guardou numa espécie de biblioteca que ele mantinha oculta em uma caverna.
E foi exatamente nesse ponto da história que as coisas se embolaram de vez porque a geração de Cain, que avançava pelos lados da completa transgressão aos estatutos de Jeová acabou se miscigenando com a geração do seu irmão Seth e foi essa, cremos nós a verdadeira razão de Jeová achar que não devia mais continuar com aquela experiência genética que ele havia feito com a geração do ser humano. Está claro que essa informação não consta dos cânones oficiais, que preferiu construir ramos distintos para a família humana através de Seth, de um lado, o ramo piedoso e Cain, de outro, o ramo viciado, por que interessava a quem bolou esse enredo construir uma ponte futura para os seus próprios propósitos. Mas verifica-se nas entrelinhas desse enredo, que se não é verdade que o ramo perverso de Cain se misturou com o ramo virtuoso de Seth, então foi um descuido do redator listar entre esses ancestrais dois Enoques e dois Lameques, que suspeitamos nós, sejam as mesmas pessoas.
Isso porque os nomes das crianças de Cainan, segundo apuramos de outras fontes, foram três rapagões chamados Mahlallel, Enan e Mered, e duas guapas raparigas chamadas Adah e Zillah, as quais casaram-se com o inefável Lameque que, ao mesmo tempo, foi o assassino de Cain e pai de Noé, o que justifica a enigmática confissão que ele fez às suas duas esposas: matei um homem pela minha ferida e um jovem pela minha contusão. Se por Cain se tirará vingança por sete vezes, por Lameque será de setenta vezes sete.
(continua)