A Tentação de Hieronymus Bosch

Alguém, no silêncio empedernido de um museu vazio, lança seu olhar para um quadro de sonho (ou seria de pesadelo? São da mesma substância. O que importa é o uso que dela se faz), contestando-se, em meio às chamas e aos monstros que surgem de repente, a respeito da verdade de sua vigília.

Um santo de cruz desembainhada e um demônio de cauda e pele de cobra postam-se nos cantos opostos, unindo-se em brasa ao centro e exalando o cheiro de queimado das máscaras que se acumulam na fogueira. A fuga não é a solução.

Santo Antão busca os céus, mas as mandíbulas da Serpente do Mundo não o soltam. O Adversário o persegue e, por mais que o santo homem voe alto, seus acólitos o alcançam. Antão, que pela renúncia ao mundo, o palco de ação de Satanás, procura desesperadamente por Deus, é a outra face do doutor Fausto, que do outro lado do espelho evoca o Demônio para gozar da totalidade da criação corrompida e obter o conhecimento absoluto a respeito do funcionamento do universo. De uma certa maneira, ambos ambicionam o imperecível, mas são atormentados pela sombra da transitoriedade: Fausto tem seu memento mori a cada vez que se recorda que, findo o prazo do pacto, Mefisto, o usurário do Inferno, virá buscá-lo. E a danação, esta sim, será eterna (não poderia prever a piedade de Goethe, para o qual o temporário é apenas metáfora e o eterno feminino nos conduz à glória). Antão sofre com as visões enviadas pelo Adversário, chamados à carne e aos instintos, âncoras que o mantém preso ao imenso rio lamacento do pecado. Antão, como Fausto e ao contrário de Cristo e Buda, é uma vítima que sofre diante da perspectiva da derrota para o seu oponente (tanto que as tentações o perseguem até sua morte), considerada quase inevitável (para Fausto realmente inevitável, a não ser segundo a versão goethiana; para Antão, a vitória deve chegar após a morte, graças à sua fé e à graça divina, que em Goethe se manifesta também para Fausto).

A Vida de Santo Antão, obra que inspirou Bosch, é de autor anônimo, apesar de tradicionalmente atribuída ao arcebispo de Alexandria, Atanásio. Estatuto do monasticismo cristão durante séculos, cujo objetivo era agir como um espelho de vida e moral para os anacoretas, tornou-se motivo para inúmeras obras literárias, teatro popular e pinturas. À primeira vista, a de Bosch não difere muito de outras representações da Tentação: o horizonte em chamas e o local pestilento povoado de monstros são clichês na iconografia desta lenda. As maiores distinções estão nos pequenos detalhes, que tornam A Tentação de Santo Antão única, perfeitamente distinguível das tentações de Grünewald e outros. A força de sua influência pode ser vista sobretudo nos pintores surrealistas do século XX, em especial em um, cujos bigodes peculiares se diz que Bosch vislumbrou uma vez, quando foi se olhar no espelho e se perguntou qual seria o futuro de sua arte e de seu estilo. Em sua época, parecia não haver chance de continuidade.

Na composição das figuras, provavelmente Bosch foi buscar inspiração nas máscaras usadas nas procissões e nos espetáculos populares, além, é claro, na materialização plástica dos medos e das fantasias mais aterrorizantes da alma humana.

Hieronymus viveu e trabalhou em Hertogenbosch, a pacata cidade holandesa da qual retirou seu nome artístico. Ao contrário de outros artistas do seu tempo, não deixou cartas ou diários. As poucas informações que existem sobre sua vida e sua atividade se encontram no arquivo da sua cidade, em especial nos livros de contas da Confraria de Nossa Senhora, com a qual sempre manteve contatos intensos. Contudo, estes documentos não nos dizem quase nada sobre sua pessoa, já que não consta sequer a data precisa do seu nascimento. Um retrato de Bosch, possivelmente um autorretrato, conhecido através de suas cópias posteriores, mostra-nos o artista numa idade já bastante avançada.

Abstraindo-se da experiência do cotidiano, Hieronymus parece dialogar com o mundo onírico do inconsciente individual e coletivo muito antes de Freud e Jung e antecipar os surrealistas em sua aplicação à arte. Claro que de maneira não intencional (mas inconscientemente, se queremos continuar usando o jargão psicanalítico), pois a psicanálise seria algo incompreensível e inaceitável para o espírito medieval.

Como membro da Confraria de Nossa Senhora, uma associação de clérigos e leigos dedicada ao culto da Virgem Maria, Bosch parece ter sido um cristão dos mais ortodoxos e, como tal, tencionava transmitir verdades morais e espirituais ao contemplador de suas obras. De acordo com algumas teses, pertenceu também à Congregação do Espírito Livre, um grupo herético que apregoava a promiscuidade sexual como meio para readquirir o estado de inocência que Adão possuía antes de sua queda e que, após seu primeiro surgimento no século XIII, existiu durante vários séculos por toda a Europa. Contudo, não há provas históricas que nos confirmem se nosso artista era realmente, como participante dessa seita, também um adepto do amor livre.

Uma história (ou estória? Isso não vem ao caso agora) diz que encontrou a morte na figura de Serpelina, uma italiana de olhos verdes dissimulados e sorriso oportunista, devota da Congregação do Espírito Livre, que o levou para a cama quando o grande artista tinha uma idade considerável, mas não fôlego de menos. Fecharam-se num quarto e divertiram-se por seis dias e seis noites, com intervalos apenas para comer e dormir.

Ao final do sexto dia, Bosch percebeu que a pele de Serpelina assumia uma tonalidade esverdeada e ficava mais áspera. No final do sétimo, em êxtase e ebriedade, já não via mais o corpo da amante, apenas uma serpente que se enrolava em sua cama e o fitava com seus olhos espiralados. A cobra mostraria os dentes, avançaria no pênis do gênio e devorá-lo-ia a partir dali, cobrindo-o com vagareza: de medo no início, de prazer no meio, de dores lacerantes no fim.

Na representação de Bosch da visão de Antão, o céu aparenta uma clara divisão entre o celeste e o vermelho de pinceladas abrasadoras. Contudo, na metade cerúlea, o que parece ser uma barca voadora pegando fogo faz com que sua fumaça preanuncie o incêndio do lado oposto, sugerindo que nem a mente mais pura está livre do fogo do pecado.

É provável que não tenha sido da maneira narrada no parágrafo anterior que o pintor tenha morrido, mas decerto teria sido o modo como ele teria gostado de morrer, nos braços de uma mulher e do pecado, sacrificado pelo pecado, sacrificando seus pecados, para enfim ultrapassar os portões que antecedem o Jardim e enxergar acima um celeste absoluto, inconteste. De que importa a história se a face de Tiradentes não era a do Cristo? De que importa à História se a face de Cristo não era a de Cristo? À história só importa o porquê Cristo morreu na Cruz.

Ao se abrirem os olhos do santo, pelo rio da Tentação, vagam barcos e barqueiros de feições assustadoras, entre os quais um barco de feições humanas, e povoam o cenário monstros temíveis, demônios e orgias pavorosas.

Uma tradição afirma que Antão viu no deserto, entre os monstros, uma criança, que de tão velha possuía os cabelos brancos, e não simplesmente brancos, também ressecados, e tinha a pele quase coriácea de tão enrugada, como se acumulasse mais de duzentos anos.

Diante daquilo, só restou ao homem santo se curvar à potência de Deus e rezar, de olhos fechados.

Ao reabri-los, a figura não desaparecia, e grudou nele seus olhos arregalados, de grandes olheiras sangrentas. Nunca mais se veria livre daquela presença. Toda vez que abria os olhos, em qualquer lugar, Antão se deparava com aquele ser: aquela criança velha e ferida. E o olhar era sempre o mesmo: a agonia da expressão, do silêncio e do corpo era eterna.

Santo Antão é tentado pela luxúria e pela morte, Eros e Thanatos. Algo de muito semelhante nesse sentido, mais do que nas experiências de Cristo no deserto ou de Fausto, pode ser encontrado em uma lenda longínqua geográfica e cronologicamente: a da tentação de Buda por parte de Kama (o desejo sensual na cultura indiana, o equivalente de Eros) e Mara (a morte na cultura indiana, o equivalente de Thanatos), tendo o primeiro se apresentado como um príncipe portando um arco florido e acompanhado pelas suas voluptuosas filhas (Luxúria, Prazer e Anseio) e pelos seus três filhos encantadores (Loucura, Folia e Orgulho) e o segundo, após o fracasso do primeiro diante da abnegação do iluminado Sidarta, como um marajá de demônios, montado em um elefante guerreiro e seguido por um exército de monstros. Não existe uma moeda com uma só face: a morte e o sexo só podem ser transcendidos juntos, pois são duas faces da mesma moeda; e só é possível carregá-la tranquilamente caso não represente uma ameaça e não adquira valor excessivo. O medo e o desejo são dois irmãos terríveis, dos quais somos os únicos pais e responsáveis.

A diferença entre Buda e Antão é que Buda, assim como o Cristo, não precisou aguardar pela morte para transcender seu Tentador (no caso do budismo uma imagem mais simbólica e interiorizada do que no contexto cristão). Já Santo Antão conviveu com as tentações até o fim da vida, o que o tornou num certo sentido mais humano, mais faustiano (a presença do Adversário, tanto para ele quanto para Fausto, era constante em sua consciência) e portanto mais trágico.

Contudo, enquanto Fausto foi imortalizado através das palavras, Santo Antão, apesar do grande Flaubert, teve ainda melhor sorte nas artes sórdidas, com Bosch sendo seu Goethe.

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Marcello Salvaggio
Enviado por Marcello Salvaggio em 27/07/2024
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