HAVIA UM PORTAL LUMINOSO NAS BORDAS DO ARCO-ÍRIS

Tio Arcido foi o maior contador de causos que Urubici já conheceu. O homem entendia do riscado, contava histórias como ninguém. De uma feita Tio Arcido estava com um grupo selecionado de serranos, que trabalhavam cortando rebolos de pedra, aqueles de arenito mole. Lá estavam o Carocha, o João Grosso, o Isabelino, dois irmãos Feijó, o preto velho Tomásio, o Alemão, o Marcos. No grupo estava também o negro Setembrino; este já não usava mais pilcha todo santo dia; somente aos domingos, principalmente durante as carreiradas de cancha reta, aí o vivente se encilhava a capricho; agora, não andava mais pilchado, mas nunca largava o lenço colorado, que trazia no pescoço. No meio de toda a conversa mole do grupo, o costume de se vestir e de se pilchar do Setembrino gerou a curiosidade de um dos amigos.

– Porque o lenço vermelho, companheiro? – Indagou Carocha.

– Meu lenço? Ora, é vermelho porque eu sou maragato. – Respondeu Setembrino ao pé da letra, entre curioso e interessado na pergunta.

– Maragato, como assim, homem? – Retomou o Carocha.

O interesse de todos, logo demonstrado pelo assunto, era a deixa que o Tio Arcido esperava para se intrometer na conversa, e já saiu trovando, enquanto enrolava o palheiro.

– Maragato? Deixa que eu já lhe explico, pois gosto muito dessa prosa, e já vou aproveitando também para contar como foi que começou a história da nossa cidade de Urubici, porque, bem lá no comecinho, nós temos muito a ver com a história dos maragatos gaúchos.

– É, Tio Arcido? Conta aí pra nós. – Insistiu Carocha.

Tio Arcido, desafiado pelo olhar curioso do grupo, foi arregimentando as ideias e organizando na cabeça tudo o que gostaria de narrar. Suas memórias voltaram no tempo em que a região de Urubici era habitada, quase que exclusivamente, pelos índios xokleng e kaingang, descendentes do antigo povo Jê. Lembrou dos causos antigos, contados nas rodas de mate por viajantes, tropeiros e fazendeiros. Palheiro pronto, Tio Arcido, com a solenidade que lhe era peculiar, acendeu o pito, ajeitou as chinelas e, perscrutando, discretamente, à moda serrana, o olhar de interesse da peonada, começou a narrativa da nossa epopeia.

– Isso já faz muito tempo. Por aqui viviam muitos bugres, nas beiradas do rio Canoas. – Começou ele, bombeando pro chão, e pigarreando; e como bom contador de histórias, fazia umas pausas compridas, cutucando a expectativa dos ouvintes. Dava cuspidelas de lado, leves fungadas, ajeitava o chapéu, e continuava.

– No finzinho do século passado, lá por volta de 1893, um grupo de maragatos gaúchos, querendo espalhar os ideais federalistas pelo Brasil afora, passou aqui por Santa Catarina em direção ao Paraná.

– E vieram pra cá, assim, sem mais, nem menos? – indagou curioso o Isabelino.

– É… Bem, não foi assim, sem mais, nem menos. – Atalhou Tio Arcido, acrescentando:

– A coisa fedeu pro lado deles, lá no Rio Grande, e vieram bater aqui. Queriam espichar a revolução e levar a encrenca até o Rio de Janeiro, que era a capital do Brasil. Isto aconteceu durante a Revolução Federalista do Rio Grande do Sul. Essa peleia durou cinco anos, e matou muita gente, umas dez ou doze mil pessoas. Os maragatos eram do partido federalista, e eram reconhecidos pelo lenço vermelho que usavam no pescoço, que nem o Setembrino. Os adversários dos maragatos, os pica-paus, eram do partido republicano, e usavam um lenço branco, porque essas tropas não tinham uniformes que os identificasse. Conforme ia caminhando a guerra, duas colunas de maragatos, uma comandada por um sujeito chamado Gumercindo Saraiva, e, outra, por um tal de coronel Salgado, resolveram entrar por Santa Catarina e pelo Paraná. Foram bem longe…

– Foram até onde, Tio Arcido?

– Até, mais ou menos, por perto de Curitiba; aí, sem comida e sem munição, tiveram que voltar pro Rio Grande. Junto com os soldados, sempre vinham outras pessoas, que iam ficando pelos lugares por onde passavam; aproveitavam a carona… Numa dessas colunas estava um homem chamado Manoel Saturnino de Souza Oliveira, que era membro da Guarda Nacional, filho de um tal Antônio Saturnino de Souza e Oliveira, que morou em Lajes, e foi vereador por lá e, até deputado estadual. Gente grã-fina.

Tio Arcido desfiava com habilidade seus conhecimentos de história, sempre acrescentando um pontinho aqui, ou outro ali, quando necessário... Era o truque que usava para manter os ouvintes ligados na prosa.

– Mas e o tal Manoel Saturnino, Tio Arcido, o que senhor ia dizer sobre ele?

– Bueno, o tenente-coronel Manoel Saturnino era um maragato fervoroso; ele acreditava, de verdade, nos ideais federalistas. Ele foi casado com Dona Felicidade Ribeiro Borges de Bitencourt e tiveram oito filhos. Dona Felicidade havia herdado uma gleba de terra nos arredores da cidade de Tubarão, foi a herança que seu pai Domingos Borges de Bittencourt lhe deixou; eram terras que faziam parte das antigas concessões de sesmarias. Lá por 1885 Manoel Saturnino e dona Felicidade começaram a construir uma grande fazenda naquelas terras, na base do puxirum e, por fim, ali se fixaram com toda a familiagem, negros forros, indígenas, agregados, animais e todos os seus bens. Essa era uma marca do trabalho dos Saturnino, sempre gostavam de fazer as coisas em trabalhos coletivos, empreitadas nas quais todos ajudavam; assim eram as colheitas e as construções. No final, comemoravam com comidas e festas.

– Quando estourou a Revolução Federalista dos maragatos, a estância dos Saturnino em Tubarão já estava pronta e acabada, todos os filhos já haviam nascido, estando o mais velho deles, inclusive, com uns vinte e cinco anos de idade, e todos prontos para ajudar na estância, naquilo que fosse preciso. O tenente-coronel viajou, então, para o Rio Grande do Sul para ajudar os maragatos nas questões de estratégia militar, e foi lá que ele acabou se envolvendo na chamada Guerra da Degola. Foi uma coisa horrível...

– Guerra da Degola? Nossa, Tio Arcido, conta esse causo. – Solicitou o negro velho Tomásio.

– É, isso mesmo, Guerra da Degola. Olha, naquela Revolução Federalista aconteceu muita violência e muita desgraça. A vingança era coisa de todo dia. A crueldade era praticada pelos dois lados: maragatos e pica-paus degolavam seus prisioneiros, pois não tinham dinheiro, nem estrutura, para mantê-los presos. Simplesmente matavam, nem usavam armas de fogo, passavam todos no fio da adaga. Dizia-se que o inimigo “não valia o chumbo” que seria gasto para executá-lo. Os pica-paus chamavam a esse tipo de execução de “gravata colorada” ... Morreram deste jeito mais de dois mil homens.

– Cruz credo, homem do céu, que coisa! – Confirmou João Grosso com cara de assustado. Tio Arcido olhou de lado, lambeu os beiços e continuou.

– No Rio Grande aconteceram dois massacres medonhos e vergonhosos: um foi na cidade de Rio Negro, que hoje se chama Hulha Negra, e fica a uns quarenta quilômetros de Bagé, e o outro aconteceu no distrito de Boi Preto, numa localidade entre os municípios de Chapada e de Palmeira das Missões, lá pros lados de quem vai para Santa Rosa, ou Santo Ângelo. Pois bem, em Rio Negro, os maragatos federalistas, com cinco mil homens, cercaram e encurralaram mil e quinhentos republicanos pica-paus. Mesmo depois de rendidos e já as sem armas, eles foram manietados e presos numa mangueira de taipa; foram degolados ali uns quatrocentos homens. A mangueira ainda está lá, e é conhecida até hoje como “potreiro das almas”. Uma hecatombe vergonhosa, uma barbaridade. Os corpos foram jogados numa lagoa, que existia ali perto; até hoje, a lagoa maldita tem o nome de Lagoa da Música.

– Lagoa da Música? – Perguntou, interessado, o Alemão.

– Sim. Ficou com este nome porque o corneteiro do batalhão dos pica-paus, o último homem a ser executado naquela noite macabra, antes da degola, soprou seu clarim com o toque de “cessar fogo” e, mesmo ferido, com a garganta cortada, correu e se jogou na lagoa, segurando ainda a corneta, e desaparecendo para sempre nas águas escuras e sanguinolentas. A lagoa se tornou um lugar mal-assombrado. Nas noites de lua cheia podem ser ouvidos, ainda, os sons lúgubres de uma corneta militar, brotando de suas águas calmas. É quando o clarinista sai das águas e toca o fúnebre toque de cessar fogo. Outros miseráveis degolados também saem das águas, com suas gargantas cortadas, gemendo e brandindo suas facas bem chairadas, em busca de vingança.

– Que barbaridade, hem, Tio Arcido. Tudo isto aconteceu por pura vingança?

– É. Tudo por vingança dos maragatos em cima dos pica-paus, que também já haviam cometido atrocidades em outras ocasiões.

E, ante o pesado silêncio do grupo, Tio Arcido prosseguiu o causo, com ar grave e os olhos injetados:

– O outro massacre foi o da degola no capão do Boi Preto. Ali, também, mais de 370 maragatos foram mortos, em represália àquela degola do Rio Negro.

– E como é que foi isto? – Sussurrou o Alemão.

– Foi assim: o coronel maragato Ubaldino chegou à localidade de Boi Preto com cerca de quinhentos homens. O grupo se abrigou, então, num capão, entre duas coxilhas. Ali eles receberam a falsa notícia de que a guerra havia terminado, e de que havia sido assinado um tratado de paz. Festejaram e afrouxaram a segurança; nem sentinelas colocaram e, muito menos prestaram atenção aos gritos dos quero-queros. Carnearam uma rês e prepararam uma festa. O coronel comandante mandou, inclusive, um de seus homens até Palmeira das Missões, buscar algumas moças para um baile e churrasco. O soldado, porém, foi pego pelos pica-paus, e o obrigaram a contar onde estavam escondidos seus companheiros. Às cinco da manhã, mil e quinhentos pica-paus republicanos cercaram o acampamento de Ubaldino, renderam todos os maragatos, que foram amarrados e, ali mesmo, degolados sem piedade. Trezentos e setenta homens perderam a vida, deste modo infame. Os corpos foram jogados numa sanga, conhecida como Olho d’Água. O pequeno córrego ficou vermelho por semanas, o capão ensopado de sangue. O local é conhecido, até hoje, como Capão da Mortandade.

– Nossa, Tio Arcido, mas o que é que esse causo triste tem a ver com a história de Urubici, homem? – Indagou o maragato Setembrino, sentindo um arrepio nos pelos da nuca.

– Bem, fui obrigado a contar tudo isto para chegar ao que nos interessa: a história do nosso Urubici, e dos pioneiros que vieram para cá.

Um certo ar de alívio pairou no ar, e alguns suspiros podiam ser ouvidos no meio do grupo, que se entreolhava constrangido. Tio Arcido arrematou:

– De tudo isto, o que nos interessa é o fato de que o senhor Manoel Saturnino de Souza Oliveira, que saiu de sua fazenda em Tubarão, estava lá, embretado no destacamento do coronel Ubaldino naquela noite terrível; como bom maragato, ele também usava o lenço vermelho. Manoel Saturnino era um dos oficiais do comandante Ubaldino; eles estavam comemorando aquela noitada, um tanto afastados da tropa barulhenta dos outros maragatos. Quando aconteceu o bloqueio dos pica-paus, Ubaldino e os oficiais, num jogo de muita sorte, conseguiram furar o cerco, montar em seus cavalos, e estufar a gandola; conseguiram fugir na escuridão da noite. Ninguém os perseguiu. Este pequeno grupo de fugitivos acabou se dispersando pela campanha; o tenente-coronel Manoel Saturnino, depois de muita peripécia, e viajando com mais dois companheiros, conseguiu voltar para casa e chegar à sua fazenda em Tubarão, no sul do Estado.

Saturnino, por sorte, havia ficado pouco tempo fora de casa; mais ou menos um ano. Em seu retorno, foi retomando o comando da estância e, como já era de se esperar, por ser um homem dotado de opiniões e vontades muito fortes, logo foi se envolvendo nas questões políticas da cidade. Ali também havia maragatos e pica-paus... As disputas e ameaças não tardaram a começar. As violentas rixas e peleias se agravaram de tal modo que Manoel Saturnino de Souza Oliveira resolveu sair de Tubarão e buscar local mais seguro, pois sua vida e de sua família corriam grande perigo. Havia sofrido uma emboscada, que quase o vitimou, quando voltava para casa a cavalo, já em noite escura. Não fosse a presteza do peão bugreiro que sempre o acompanhava armado, respondendo aos tiros, que partiam das moitas à beira da estrada, teria certamente sido morto.

– E o homem escapou dessa? E daí, o que fizeram, Tio Arcido? – Falou, arregalado, o Tião Feijó.

– Pois bem. Já no final daquele ano de 1894, Manoel Saturnino começou a organizar sua fuga da cidade de Tubarão. Preparou, na surdina, uma verdadeira operação de guerra, executada no mais absoluto segredo e planejada nos mínimos detalhes. Abandonaria toda a estrutura física da fazenda, deixando ali somente um capataz e um peão para cuidar de tudo, e partiria com sua gente em direção aos campos de cima da serra.

Toda a logística de deslocamento foi minuciosamente pensada, à moda militar. Alguns índios de guia, bugreiros e forros iam na frente, abrindo picadas a foice e a facão, aterrando caminhos, e preparando os locais de pouso, na direção da Serra do Engenheiro. Em seguida vinha o gado, tocado por homens a cavalo, um pequeno rebanho de vacas leiteiras e terneiros, os touros, a eguada e uma bem nutrida tropilha de baios. Logo atrás, o rebanho de ovelhas, e uma pequena vara de porcos. Na sequência, três carros de boi, transportando a mobília e a tarecama da família, e mais quatro carretas com mantimentos, comidas e sementes, gaiolas com galinhas, patos e marrecos. Carroças, galeotas e carriolas vinham abarrotadas. Atrás destes, a mulada com os cargueiros; a criançada nas bruacas, dependuradas nas cangalhas, em ruidosa alegria, no lombo das mulas mais mansas. Tudo em perfeita ordem. Por fim, vinha a gentarada, mais ou menos, cento e vinte pessoas. Quem podia caminhar, ia de a pé, outros iam de a cavalo. O cortejo saiu na escuridão da madrugada, guardando silêncio, ganhando a estrada, e sumindo do povoado, serra acima.

Na estância do Seu Manoel Saturnino viviam muitas pessoas, todas envolvidas numa grande gama de atividades. Oito famílias de indígenas, sendo seis caingangues e duas genericamente chamadas de carijós, mas que, na verdade, eram guaranis. Estes formavam um grupo específico, composto por cerca de trinta pessoas: homens, mulheres e crianças. Seus costumes e línguas maternas eram respeitados e mantidos. A maior parte dos homens índios trabalhava nas lides campeiras, especialmente na doma dos cavalos e muares, por serem hábeis cavaleiros; as mulheres ocupavam-se da horticultura, dos trabalhos de cozinha e limpeza de suas casas e da casa grande e arredores.

– Ora, Tio Arcido, mas eu nem sabia que moravam índios nas fazendas... – Comentou o João Grosso, coçando a cabeça. O Tio Arcido aproveitava essas brechas para retomar a conversa e ampliar o assunto.

– Bueno, os índios, de modo geral, eram atraídos para as fazendas de então, ora com o oferecimento de algum conforto, ora por puro aprisionamento. Não é de se esquecer que naquela época havia um claro interesse do invasor branco de, simplesmente, exterminar os povos indígenas que por aqui viviam, já que estes reagiam fortemente à invasão estrangeira. Quando não se conseguia o puro e simples extermínio, utilizavam-se técnicas diferenciadas como, por exemplo, a miscigenação, pelo casamento, às vezes forçado, com o homem branco. Era o que se chamava de branqueamento das etnias… Pra vocês verem… Desta maneira, o caldeamento se espalhou, de forma genérica, por todo o País, perpetuando uma abominável e disfarçada forma de racismo estrutural. O sul do Brasil, por adotar esse tipo de padronização social, negava, peremptoriamente, o racismo, afirmando-se, de modo aberto, a sua inexistência em terras sulinas.

O fazendeiro, e patrão branco, em todo o sul brasileiro colonial e imperial, enfrentava dificuldades na obtenção e compra de escravos. Diante desse fato adotava padrões de comportamento e de tratamento mais afáveis com seus escravizados, tentando conquistá-los, concedendo-lhes, por exemplo, certas regalias e, até mesmo, certos direitos, sequer imagináveis no restante do Brasil. Em grande parte do Sul os escravos moravam em imóveis privados, com suas famílias, ao invés da convivência promíscua das senzalas convencionais, adotadas em outras partes do território nacional.

Manoel Saturnino de Souza Oliveira era um abolicionista convicto e praticava em suas terras todas as formas de oferecimento de bem-estar aos seus colaboradores, fossem índios, negros, agregados, capatazes, ou peões assalariados. Fazia um grande esforço de aproximação de seu pessoal, começando pela apresentação e formato da casa grande, desprovida de ostentações e confortos exagerados. Seus filhos, assim que se casavam, ou manifestassem o desejo de terem suas próprias casas, eram, imediatamente, alocados em residências próprias, liberando os aposentos ocupados na casa dos pais.

– E os negros, Tio Arcido? – Perguntou interessado o Tomásio.

– Pois olhe, os negros da estância Saturnino estavam agrupados em doze famílias, compondo um importante conjunto de cerca de cinquenta pessoas, entre homens, mulheres e crianças. Habitavam em casas próprias, e tinham respeitados seus costumes e crenças. Boa parte dos homens se ocupava com a lida do gado, tanto nas invernadas, quanto nos criatórios dos galpões e mangueiras de taipa. Outros grupos se dedicavam aos trabalhos nas grandes lavouras de milho, de cana de açúcar, e mandioca. Havia oleiros, fabricando tijolos e telhas, e moleiros nos moinhos de farinha de milho, de trigo e mandioca, ou dedicados à moagem da cana e fabricação do melado e do açúcar grosso. A estância dispunha também de um sapateiro, um negro especializado na confecção das botas e chinelas. Já havia alguns anos, mesmo antes da abolição oficial da escravatura, que o tenente-coronel dera carta de alforria a todos os seus escravos, e os mantinha consigo, garantindo-lhes abrigo, trabalho e sustento.

Normalmente, os escravos, aqui no Brasil, não tinham sobrenome; somente o primeiro nome, ou um apelido. Na hora de fazer a carta de alforria, o Seu Manoel Saturnino registrou essa gente com nome e sobrenome. Alguns deles adotaram o sobrenome do patrão, ficando com nomes como José de Souza, João Oliveira, ou pegando o sobrenome de um conhecido, ou homenageando algum santo da Igreja, cumprindo alguma promessa, ou uma demonstração de fé; o sobrenome não precisava ser o mesmo do pai. A dona Josefa Maria de Jesus, por exemplo, era filha legítima do Seu Ronaldo Pereira de Araújo e de dona Maria José Batista. Era bem comum inclusive os casos de irmãos com sobrenomes diferentes e, quase todos, de origem portuguesa; a escolha do sobrenome era livre.

– Ah, então é por isso que, às vezes, fica difícil descobrir os parentes da família mais antigos! – Falou, sorrindo, um dos Feijó.

– É verdade. – Confirmou Tio Arcido. – E tem mais uma coisa, em Rio Rufino, aqui pertinho de Urubici, existe, até hoje, uma localidade chamada Divino Espírito Santo, que é habitada, quase que exclusivamente, por famílias afrodescendentes. Elas formam um quilombo, e este núcleo começou com a chegada de muitos negros escravos, que fugiam de fazendas vizinhas e se juntavam ali. Eles ainda precisam ser reconhecidos como quilombolas, para receberem os benefícios e a proteção do estado.

– É verdade, eu já andei por lá. – Confirmou Tomásio.

– Dentre seus ajustados, dois homens eram mantidos um tanto à parte dos demais. Eram os bugreiros. Homens rudes, violentos e temíveis assassinos que, em outros tempos, e em outras fazendas, eram utilizados, principalmente, na captura de crianças indígenas e entrega das mesmas, para adoção, a famílias não indígenas. Manoel Saturnino os mantinha e utilizava para ocasiões excepcionais, que exigissem alguma forma de emprego da força, ou situações de emergência. Andavam armados, e faziam a guarda da fazenda.

De todo o pessoal empregado nos trabalhos da estância, oito peões eram assalariados, caboclos rudes, que se dedicavam, com exclusividade, às atividades campeiras e à lida com o gado. Também estes moravam em casas particulares, com suas respectivas famílias. Havia mulheres bordadeiras e costureiras, inclusive uma senhora que dominava os bilros.

Além deste quadro geral de pessoal, quatro capatazes faziam a chefia e coordenação dos mais diversos serviços, garantindo que tudo fluísse da melhor forma possível.

– E a filharada, Tio Arcido?

– Os seis filhos homens de Manoel Saturnino, já em idade de assumir responsabilidades, e portadores de habilidades específicas, cuidavam, cada um deles, de uma parte dos afazeres da fazenda: cercas e taipas, manutenção e construção de casas e galpões, trato dos ovinos, cavalos, bovinos, açougue, leite e derivados.

– A filha Cândida Saturnino de Souza Oliveira era professora, e se ocupava das crianças da fazenda, entretendo-as, e ensinando-lhes as primeiras letras e os rudimentos da aritmética.

Havia, como se pode ver, e conforme ia contando o Tio Arcido, um minucioso cuidado no aproveitamento de toda a mão de obra disponível na estância, de tal modo que todos estivessem ocupados e produtivos, vivendo em clima harmonioso e humanizado.

– No dia da partida… – Retomou Tio Arcido, logo interrompido por um curioso do grupo. – Isso… Queremos saber essa parte da história!

– Bem, no dia da partida, saíram em direção à localidade de Braço do Norte; dali em diante, cambando mais à esquerda, seguiram para o oeste, passando pelas localidades de Barracão, Brusque do Sul e Curral Falso. Os guias procuravam velhas trilhas tropeiras, seguindo, o mais possível, pelos vales e cursos de rios. Dali em diante, porém, o primeiro grande desafio foi enfrentar os cânions e paredões da Serra do Imaruí, o que os obrigou a seguir por caminhos íngremes, ladeados por peraus sem fim, até as paragens de Santa Bárbara.

Os trechos da Serra Geral por onde passaram, se estendem por centenas de quilômetros, e se levantam em forma de gigantescos e quase intransponíveis paredões. Quem se aventura a subir por ali, do litoral para o planalto, tem que galgar, a duras penas, os instáveis penhascos da Serra Geral. O intrépido grupo de Manoel Saturnino percorria essas paragens por trilhas que, até então, eram conhecidas somente por alguns poucos tropeiros e índios da região. A Serra Geral e seus contrafortes, em toda a sua extensão, abriga a maior concentração de cânions do mundo, são mais de duzentos, alguns com profundidades acima dos setecentos metros. Os terrenos, extremamente acidentados exigiam muito trabalho na condução de tanta gente, carretas, animais, mobílias e mantimentos.

À medida, porém, em que venciam os soberbos paredões de basalto e se aproximavam dos tão sonhados campos de cima da serra, a araucarilândia, crescia nas almas dos valentes caminhantes um forte sentimento de libertação e de conquista. Por fim, já alcançando partes do altiplano catarinense, olhavam para trás e viam, de longe, as colinas arredondadas da baixada litorânea. Saíam das pequenas altitudes de cem metros acima do nível do mar, e começavam a enfrentar os estonteantes cenários acima dos mil metros, por trilhas tropeiras, abismos verticais, peraus e sumidouros.

Nem as tormentas, porém, nem a cara feia da natureza bruta, o frio medonho, a cerração, ou o cansaço os faziam parar. Contornando os paredões e pontões rochosos, desnudos e verticalmente inclinados, agarrando-se às poucas e retorcidas árvores, duramente fustigados pela ventania, ou mergulhando por baixo das imensas folhas das guneras, o grupo avançava em direção à sonhada terra prometida, cruzando infinitos fios d’água e se encantando com as flores simples e delicadas que alegram aquelas rochas.

Após dias de sacrificosa caminhada, passando ao largo de um antigo campo santo mal-assombrado, cercado de taipas e túmulos abandonados, decidiram parar e estabelecer por ali o acampamento definitivo. Cruzaram o rio Pelotas e se arrancharam a uns trinta quilômetros, nos fundos da Estância Vó Ana, entre o Pericó e Vacas Gordas, organizando a parada naquele lugar.

Já quase ao fim da tarde daquele dia, os pioneiros da estância Saturnino foram surpreendidos por um estranho fenômeno, uma visão medonha, que os apavorou a todos. Um estrondo de trovão, uma forte ventania que se originou pro lado oeste, onde o sol ia se pondo; e, de repente, um imenso tapete dourado se projetou no chão da serra, estendendo-se entre eles e um gigantesco portal luminoso, que se abriu contra o céu escuro; um imenso círculo, cercado por espessas nuvens e assustadoras ondas de um mar bravio, encimado por um brilhante arco-íris. O portal parecia ser guardado por seres fabulosos, semelhantes a estranhos animais. Todo o cenário estava envolto em mística e sombria floresta de pinheiros, que contrastava com as luzes coloridas do arco-íris. Através dele se podiam ver extensas cadeias de montanhas cobertas de neve, lagos azuis e rios cristalinos, tudo cercado por rendas de intensa luz azulada. Em meio à correria geral, Manoel Saturnino tentava manter a calma de seu pessoal.

– Calma, meu povo, vamos ver o que é isto! – Gritava o militar, enquanto reunia o grupo ao redor de si. – Calma!

Todo o contexto sugeria uma passagem para outra dimensão. Foi quando o grupo maravilhado e assombrado, viu a imagem serena de uma mão que se estendia do céu, como que apontando, convidativamente, um caminho, e infundindo em todos um forte sentimento de acolhida, serenidade, fé e esperança.

Dona Felicidade comandava as mulheres, reunindo a criançada ao seu redor. – Por aqui, gente, venham por aqui!

Ainda embevecidos com tanta luz e beleza, os pioneiros viram surgir a figura de um imenso ser alado, vestido com brilhante armadura. Com os braços levantados indicava sua missão de proteção e salvaguarda daquele espaço, mantendo o divino equilíbrio entre o céu e a terra.

– Meu Deus do céu, o que é isto? – Gritavam todos, em confuso alarido. Passaram a sentir, porém, que se lhes estava sendo concedida a possibilidade de acessar um lugar de luz serena, silenciosa, tranquila e calma. O imenso portal luminoso parecia extinguir toda energia negativa que por ali transitasse; dali para fora ficariam o orgulho, a lamúria, o medo e as visões turvas do passado. Abria-se, diante de todos, um portal mágico, rumo à serenidade de um novo ciclo de felicidade e abundância. Os campos de cima da serra lhes davam as boas-vindas.

A gente de Saturnino ficou paralisada ante os anéis brilhantes, as luzes e faíscas, o fabuloso túnel colorido que se formou em redemoinhos de bordas cintilantes e, somente acordou do transe, quando a noite fria já caía sobre suas cabeças, e todo o espectro luminoso foi esmaecendo até sumir na escuridão. O pavor sumiu e o coração de todos foi inundado de repentina paz e felicidade.

O silêncio da noite e o impacto da visão coletiva impunham a todos a consciência de que haviam chegado a um lugar especial, que os recebia e encaminhava. Na quietude do pouso, nenhuma palavra mais, ou som, se ouvia. Haviam entendido a mensagem da terra, e se dispunham a habitá-la e cultivá-la.

Na manhã seguinte, ainda de madrugadinha, Manoel Saturnino deu início à construção da nova estância, liderando a família e seus fiéis ajudantes, indígenas, forros, peonada e capatazes. O local escolhido parecia seguro, e o militar não descurou nenhum aspecto da segurança; o terreno estava protegido pelo rio à frente, por montanhas na retaguarda e por campo aberto nas laterais, onde colocou, preventivamente, sentinelas avançadas. Com o passar do tempo, belas moradias foram surgindo, e amplos galpões foram sendo erguidos e melhorados, Manoel, contudo, não se sentia satisfeito. Uma das primeiras medidas que tomou foi requerer, junto ao poder público, uma concessão de terras na região. Deu entrada no pedido e todo o encaminhamento foi providenciado. Ao cabo de um ano e tanto entrava na posse de mais de cem milhões de metros quadrados de terra, o que equivalia a cerca de dez mil hectares, ou cem quilômetros quadrados, em todas as direções, inclusive boa parte do que é hoje o município de Urubici; uma vasta área, que logo passou a percorrer e a conhecer. Em suas andanças conheceu também vizinhos de estâncias distantes, alguns, inclusive, simpáticos aos ideais maragatos.

– Que gente valente! – Comemorou João Grosso, batendo com a mãos.

– É verdade. – Completou Tio Arcido. – Gente muito valente. Caminharam mais de um mês, desde que saíram do litoral, até atingirem os altos do planalto.

– E ficaram ali pra sempre, Tio Arcido? – Quis saber, enfim, o Carocha.

– Não. Dois anos depois que chegaram ao lugar do portal, Manoel Saturnino, chamou os dois filhos mais velhos, Leonel e Manoel Saturnino Souza e Oliveira Júnior para uma prosa.

– Este homem, não é pai do Seu Quinca Major? – Perguntou o preto velho Tomásio, reconhecendo o pioneiro pelo nome.

– Isso mesmo. – Confirmou Tio Arcido.

Naquela conversa, o tenente-coronel Manoel Saturnino mandou que seus dois filhos explorassem a região, em busca de locais de melhor moradia e mais segurança. O que o levou a tomar essa decisão foi o fato de haver passado por suas terras um piquete armado de pica-paus, sete homens, vindos de serra abaixo. Manoel, avisado por suas sentinelas, permaneceu escondido durante todo o tempo em que aqueles homens estiveram por perto; seu filho Policarpo os atendia e controlava suas conversas, averiguando suas reais intenções; os bugreiros permaneciam em total prontidão. A sensação de insegurança, porém, aumentou, quando o chefe dos estranhos visitantes informou que procurava por “um tal de Manoel”, maragato, que sumira, misteriosamente, de Tubarão. O assunto foi habilmente desviado pelo filho de Saturnino e, por fim, acompanhados de perto pelos dois bugreiros, os perigosos perseguidores foram afastados dali. Este dia, porém, não mais saiu das preocupações da família Saturnino. A busca por local mais seguro era urgente e necessária.

Por fim, os dois filhos de Manoel Saturnino e seus dois capatazes seguiram viagem, conforme determinação do pai, costeando o rio Lava Tudo, em direção à localidade de Vacas Gordas. Dali em diante, cruzando campos e estâncias, alcançaram Mundo Novo e, com três dias, passaram pela Cascata do Avencal. Aí, não é preciso dizer mais nada, a paisagem que se descortinou diante deles falava por si mesma: um extenso vale verdejante e desabitado, cercado por malhas infindas de pinheirais, que emolduravam toda a paisagem em tons de verde-escuro, profundo. Tomados pelo entusiasmo, desceram correndo a encosta íngreme, até chegarem às margens do rio Urubici, atravessaram a vau as águas geladas, puxando os cavalos e mulas de cargueiro. De tanta felicidade, quase se torna possível ouvir, até hoje, suas risadas e gritos de alegria. À sua frente um pasto natural intocado.

– Apeamos aqui, disse com entusiasmo Leonel, o filho mais velho.

Apearam, montaram as tendas e o fogo de chão. Soltaram os animais, que pastaram a se fartar. Por ali ficaram, fizeram incursões por toda parte, descobrindo as nuances do paraíso. Na primavera limparam um eito de chão e fizeram as primeiras plantações; haviam trazido consigo sementes de milho, moranga, mogango e de algumas leguminosas. A terra era, mesmo, da promissão; tudo brotava com facilidade e vigor. Construíram as moradias com sapatas de pedra e madeirame de pinheiro falquejado. Por ali permaneceram por dois anos, até que resolveram voltar para a fazenda dos pais, e narrar as maravilhas que encontraram.

Manoel Saturnino não pestanejou, preparou os trens para a viagem e abalou-se, novamente, com a família, rumo à terra prometida. Chegando ao acampamento dos filhos, o regozijo foi contagiante; abraços e vivas. Estavam estabelecendo ali as origens de um povoado chamado Urubici. No local onde hoje está a Escola de Educação Básica Araújo Figueiredo, Manoel Saturnino mandou fincar uma grande cruz de madeira, marcando a conquista de um solo cristão.

– Nossa, Tio Arcido, que história bonita! – Comemoraram alguns dos ouvintes, se levantando e cumprimentando Tio Arcido.

– É… Obrigado, gente. Isto se deu no finalzito do século dezenove, e algum tempo depois, a notícia já foi se espalhando, e muitos outros começaram a chegar. Alguns nomes de pessoas e famílias de que me lembro, foram de Hipólito da Silva Matos, José Gaspar Fernandes, Manoel Silveira de Azevedo e tantos outros. Logo surgiram as olarias, atafonas e moinhos d’água.

– E a sua gente, Tio Arcido, quando é que veio pra cá? – Questionou o Marcos.

– Bem, um ramo dos meus antepassados veio pra cá, mais ou menos, por volta de 1920. Eram da família Nunes, e também moravam lá pros lados de Tubarão, como os Saturnino. João Manoel Nunes, que os netos passaram a chamar de Dinho, casado com dona Joana Anna de Jesus, a Dinha, veio de Orleans para Urubici, trazendo consigo toda a família, seis filhos pequenos: Manoel, com 13 anos de idade, já ajudava os pais pelos caminhos da mata, serra acima. Lídia, com 10 anos, também cuidava dos pequenos; Abílio, tinha 8 anos de idade, e conduzia pelo cabresto uma das mulas que transportava nas bruacas de taquara outros três irmãos menores: Hercílio, com 6 anos, Izaura com 4 e Lauro, mal aprendendo a andar, com apenas 2 aninhos. Maria e Jaci nasceram depois, em Urubici, nos anos de 1923 e 1926.

– Saíram de lá, com essa coragem toda? - Comentou intrigado o Feijó.

– Sim. Foi com muita coragem, porque a viagem pela mata e pelas montanhas não foi nada fácil. – Confirmou Tio Arcido, balouçando afirmativamente a cabeça.

– Pois, olha, saíram de Orleans de madrugadita, e pegaram a estrada. O Dinho havia ajustado um caboclo da região, Hermenegildo, para ajudar como guia serra acima. Tudo foi arranjado no dia anterior, as roupas, as comidas, as encilhas. A mula mais mansa foi a escolhida para levar as crianças menores, outras duas levavam os trens da família nos cargueiros, e uma terceira ia de reserva, com pouca muambagem, pronta pra qualquer necessidade. Carregavam o mínimo possível. De a pé, na frente, ia o Dinho, sério e atento aos perigos da subida, seguindo o guia, e puxando um cavalinho encilhado, que servia de montaria à piazada, nos momentos de cansaço. A Dinha, também, seguia de a pé, ora carregando um dos pequenos no colo, ora oferecendo um naco de pão, ora uma fruta; coordenava os cuidados com a criançada. Caminhavam sempre durante todo o dia, com pequena pausa para um rápido almoço e, ao final da jornada, armavam o acampamento sob uma lona. Todos ali se acomodavam, faziam as orações de guarda e, agasalhados do frio intenso, vencidos pelo cansaço, adormeciam feito pedras. O casal aproveitava, então, os poucos momentos de paz para comentar acontecimentos, ou planejar alguma saída para os desafios que iam, diariamente, sendo apresentados pela mãe natureza.

A viagem transcorria modorrenta em alguns trechos, movimentada pela algazarra e barulheira dos piás, em outros. Viajavam já havia quatro dias, quando uma surpresa assustou a todos. Manuel, um rapazinho espigado e esperto, puxava uma das mulas de carga, quando seus pés pisaram com força uma gigantesca jararaca, aninhada na macega. O menino saltou de lado, jogando-se na capoeira. Os gritos de alarme chamaram a atenção do Dinho e do guia Hermenegildo.

– Uma cobra, pai! – Gritava Manoel.

– Corre, guri! Onde? – Acudia pressuroso o Dinho João.

– Ali, meu Deus do céu! Vai morder a mula! – Gritava, chorando o menino.

A cena se desenrolava em segundos. A imensa jararaca, pisoteada pela mula, atacou sem piedade, ferrando as presas peçonhentas na barriga do animal. Um relincho de desespero, e um pulo em direção ao abismo, selaram a sorte da pobre alimária. Jogou-se, de costas e, sob o peso da carga, foi arrastada perau abaixo. Todos estacaram em apavorado silêncio, enquanto ouviam o estalar do taquaral, estourando na ribanceira e os berros do infeliz animal, que rolava com estrondo pela insana escarpa.

– Corre, Hermenegildo, vamos lá embaixo ver! – Gritou o Dinho.

– Cuidado, Seu João! – Insistia o guia.

Desceram às pressas pelos paredões, facões em punho, saltando obstáculos. Lá, no fundo do grotão jazia a pobre mula, tinha o pescoço quebrado, dobrado sob o corpo. Seu João e o peão se aproximaram cautelosos e penalizados.

– Que judiaria... – Lamentou o Dinho, tirando o chapéu.

Foi nesse instante que ambos perceberam que algo se movia na macega amassada sob o corpo da mula e, sem acreditar em seus olhos, viram arrastar-se por baixo dela a enorme jararaca. A serpente, ainda em atitude de defesa, levantou-se ameaçadora perante os homens. João Manoel Nunes, armado de toda a ira que possuía, sacou do facão e desferiu tamanho golpe, que atorou a cobra ao meio.

– Morre, desgraçada! – Gritou, com fúria o velho João.

O ofídio media cerca de um metro e meio de comprimento, contorceu-se e, de dentro de seu ventre foram expulsos, ainda, os embriões e ovos que nele carregava.

– Era uma fêmea, Seu João! – Comentou Hermenegildo com os olhos esbugalhados.

– É… E era das perigosas. A coitada da mula não tinha chance, mesmo. – Concluiu o Dinho.

Enquanto aliviavam o animal dos cargueiros que levava, juntando o correame e o material espalhado, Seu João e Hermenegildo agradeciam a Deus pelo fato de a cobra não haver picado o menino Manoel. Lamentando a perda do animal, foram subindo os barrancos e arrastando as bruacas para cima, onde toda a piazada, chorosa, agarrada às pernas da Dinha, esperava pelo pai. Tudo foi arranjado no lombo da mula que vinha como reserva, e a viagem prosseguiu em silêncio.

Sustos e alarmes se sucediam, forjando o grupo na dor e na surpresa, tornando a todos cada vez mais respeitosos perante as exigências da mãe natureza, que os acolhia e educava. Tombos, escorregões, espinhos nos pés descalços, queimaduras de urtigas e marandovás.

A penosa e pioneira viagem da família Nunes em direção aos campos de cima da serra durou cerca de vinte dias. Já havia trechos de picadas abertos na mata, porém, em algumas partes se fazia necessário abrir a passagem a facão. Seguiam um traçado um pouco diferente do que fizera, anteriormente, a gente de Manoel Saturnino. Iam por trilhas tropeiras daquilo que, uns trinta anos depois, em 1950, passaria a ser a Serra do Rio do Rastro.

– E qual foi o trajeto deles, Tio Arcido?

– Bem, ainda no litoral, saíram de Orleans, seguindo pelas margens o rio Hipólito, depois, por trechos das barrancas do Laranjeiras. Caminhavam sempre buscando os vales e contornando os paredões, até chegarem na tal de Barra do Cafundó. Dali, ao atingirem os primeiros contrafortes e chapadas do planalto, descambaram um pouco mais à direita, indo na direção do escabroso Cânion do Funil. Neste ponto, seguiram, na mata fechada, pela trilha aberta no mais profundo do vale, que leva, em constante subida, aos estreitos cumes do Cânion. Num último grande e ingente esforço, alcançaram o topo do planalto, mergulhando em infindos campos ressecados pela geada e pelos ventos. Ao olhar pra tudo aquilo, o respeitoso silêncio de adultos e crianças tinha o peso dos pontões de rocha e dos abismos sem fim, postos diante deles. Que mundo é este? Que grandeza é esta? De onde vêm tantas alturas, tantas matas, tanto abismo… Até onde vai o insondável de tão tenebrosas profundezas? Ante a carga e a voragem dos despenhadeiros, ante o excesso de tanto precipício, nada mais lhes restava que calar.

A experiência do caboclo que os guiava, contudo, os fez evitar aproximações demasiadas dos terríveis contrafortes do medonho Cânion das Laranjeiras. Viajaram a altitudes aproximadas de oitocentos metros, enfrentando um longo e cansativo trecho de cerca de vinte e cinco quilômetros, na direção de Bom Jardim da Serra. A desafiadora rota, exigia esforços sobre-humanos, numa caminhada contínua, de quase dez horas. Nada os detinha, porém, pois o sonho de alcançar um bom lugar para viver era muito mais forte que o cansaço ou o desânimo. Agora, já podiam avistar as falésias pontiagudas do temível Cânion do Funil, que se esticavam para o céu, a quase mil e seiscentos metros acima do nível do mar.

Uma vez vencido o desafiador Funil, cruzaram o lúgubre e sombrio Campo Santo das taipas, de algum valor histórico, arrepiados com o zumbido fantasmagórico do vento nas pedras. Dali, passaram pelos campos de Santa Bárbara, e descambaram para os descampados cerros do Pericó, atingindo os mil e trezentos metros de altitude naquele ponto. O clima frio e a ventania foram seus imediatos anfitriões. A Dinha, solícita, se preocupava em agasalhar melhor as crianças, preparando café quente com mistura, e tudo o mais, para enfrentar tão insólita e dura situação. Ali acamparam, e dali seguiram, adiante, pisando geada fria, na direção de Vacas Gordas, descendo, depois, para a vila de Urubici.

João Manoel Nunes e sua esposa Joana Anna de Jesus eram caboclos valentes e resolvidos. Decidiram subir a serra, em busca de melhores dias e de melhores locais, onde pudessem criar os filhos com liberdade e saúde. Ele era ferreiro, e conhecia como ninguém as técnicas e manhas de um bom metalúrgico, inclusive da esmaltagem dos metais, e se tornou um dos mais hábeis fabricantes de fogões a lenha da região. Não queria, simplesmente, deixar os filhos com a única opção de trabalhar nas minas de carvão do litoral, buscava algo melhor.

A partir da década de 20 se intensificou a chegada de pessoas a Urubici. Imigrantes vieram em busca dos solos férteis das margens do rio Canoas. Logo a agricultura, especialmente a horticultura, e a pecuária se tornaram as principais atividades econômicas do lugar.

– Grande, Tio Arcido! Que histórias, hem? – Todos se levantaram batendo palmas.

Tio Arcido sorria satisfeito. Havia resgatado os capítulos mais importantes e emocionantes da história do povoamento inicial de Urubici. Havia conseguido fazer com que os pioneiros cruzassem os limites do portal luminoso, em direção aos encantos do arco-íris.

Jonas Tadeu Nunes
Enviado por Jonas Tadeu Nunes em 23/07/2024
Reeditado em 28/07/2024
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