SALVAÇÃO!

SALVAÇÃO!

A vida seguia tranquilamente para todas as pessoas daquela família feliz, ou melhor, para quase todos, se não houvesse um que estava na mais completa amargura, amuado num canto, apenas observando, na total depressão que já se possa ter visto na vida.

Seu estado era desesperador. Ao olhar para o rosto magro, descarnado, demonstrando que há muito tempo vinha se ressentindo com alguma coisa, mas nada dele saía a esse respeito. Apenas trancava-se num mutismo enlouquecedor para todos que se preocupavam com ele – o que eram poucos, pois sua presença ali apenas significava mais um a presenciar cenas maravilhosas de encantos e desencantos que daquela gente saía aos borbotões, por estarem e serem todos felizes, menos ele.

Sua brancura era transparente, parecia um boneco de cera, sem a mínima expressão de alívio no rosto parecendo mais um cadáver do que mesmo um ser humano a ver, pensar, rir, chorar, viver, e mais ainda, para ele, seria morrer.

Era dia de festa para todos. Aniversário da caçulinha da casa, faria naquele dia UM aninho e tudo era motivo de festa e sorrisos, mas ele nada fazia e nem nada dizia se dignava a apenas sorrir quando raramente lhe dirigiam a palavra e seus pensamentos se perdiam na imensidão torpe da outra vida que nada pertencia à que estava naquele corpo pertencendo fisicamente àquela família aparentemente tão feliz e mesquinha.

A pessoa que menos era ouvida e menos falada era a aniversariante que simplesmente dormia tranquilamente longe daquelas brincadeiras hediondas que lhe preparavam, mesmo sendo a personagem principal dos festejos, mas quem menos se importava era ela, seguindo alheia a tudo que acontecia, dormindo seu soninho reparador.

Seus olhos perdiam-se nos cantos do enorme salão onde podiam-se ver muitas samambaias e através dela havia uma imensa janela que dava para olhar-se a rua por onde viv’alma passava e, portanto, tudo era monotonia naquele ambiente onde as pessoas sorriam, mas para ele, elas simplesmente choravam lágrimas transparentes, de sangue, frio e branco disfarçados por aqueles sorrisos falsos de falsa felicidade.

Assim iam-se passando as horas e a criança dormindo tranquilamente, até que ele resolveu ir ao seu quarto para olhá-la. Ficou observando o quanto de pueril havia num espectro tão pequeno e o quanto iria sofrer quando crescesse. Até agora não sabia de nada, nem mesmo falar, que de um certo modo , seria até ótimo, pois asneiras não sairiam de sua boca pequenina e rosada, além de seus olhos não crispariam ondas de ódio por palavras que ouvisse e compreendesse.

Pegou-a mesmo dormindo e a ergueu para o teto do quarto e a lançou aos ares mas não a segurou novamente, deixando-a cair brutalmente, mas lentamente conforme seus pensamentos e seus olhos percebiam e concebiam, no chão duro. Das têmporas da criança saiam veios de um líquido vermelho, um sangue novo, sem maldade alguma, mas que nunca teria, pois não mais existiria aquele corpo para sobreviver e ouvir asneiras e mais asneiras dos lábios das pessoas idiotas que ali estavam e de um mundo que teria de enfrentar à medida que fosse crescendo.

Como num passe de mágica suas mãos crisparam-se indo em direção a seu próprio pescoço que devido à falta de fôlego foi fazendo com que seu corpo fosse desmoronando, até cair por completo ao lado da criança que jazia infantilmente, mas sem nenhum arrependimento, ambos sem vida, pois assim ele queria que fosse.

Passaram-se alguns instantes até que vieram acordar a criança para cantar-lhe os parabéns e que iniciasse a comemoração do seu aniversário que tanta expectativa estava dando a todos os convidados que ali já haviam chegado. Então a dramaticidade tomou conta de todos e assim sucederam-se gritos e choros, convulsivos e incrédulos com o que viam.

O que eles viam e presenciavam era algo inexplicável: a criança aniversariante e seu tio ao lado, inertes, sem respiração – assim constataram após feito teste de respiração – ambos estavam mortos. Inexplicavelmente mortos. Inconformadamente mortos. Mas, salvos.

(texto escrito em 27/10/1980)