Sra. Cardoso
De todos os destinos que Sra. Cardoso poderia percorrer, o que tomou foi sem dúvidas o mais singular, ou seja, não apenas um caminho, mas uma aventura pessoal.
Uma profissional excelente, sempre trabalhando mente e corpo visando uma vida mais saudável. Sempre passou por diversas áreas do conhecimento, gostava de dizer que só se é possível revolucionar uma área quando se aprende tudo a seu respeito.
O que acha de uma mulher que seja do contra? Alguém que gosta de aprender sobre algo só para saber como contornar sua natureza. Bom, talvez não goste desse tipo de gente, mas nossa senhorinha aqui possui a proteção natural contra todo e qualquer desafeto.
De qualquer forma, ela optou por uma vida edílica após 75 anos de muito trabalho dedicados para a construção de sua casa dos sonhos. Ela sonhou com seu jardim e o obteve, era composto por uma estufa, por um belo gramado, uma macieira e diversos vegetais repletos de flores. Ela sonhou com uma sala e a obteve, repleta de quadros, móveis, estátuas e tapeçarias. Ela sonhou com uma sala de artes e a obteve, lá poderia dançar, pintar, cantar e dar asas à imaginação! Sonhou com um belo porão e o obteve, mas deste não falamos. Sonhou com uma biblioteca repleta de livros e eles são, decerto, sua melhor companhia. Ela sonhou então com um belo quarto e o obteve, a cama possuía um dossel maravilhoso de causar inveja. Sonhou com vários outros cômodos específicos, mas um de seus prediletos era a cozinha.
Na cozinha é onde ela cozinha, não é surpresa para ninguém. De lá saem deliciosas guloseimas maravilhosas que encantam seus convidados. Todos que vão em sua casa elogiam sua comida, sempre dizem que não é excepcional, mas que não é ruim, ela é o que é: feita corretamente.
Neste ambiente de intensa emoção em usar as mãos para proporcionar prazer a diversas pessoas, ela sua e fica ofegante. Seus dedos firmes apertam, giram, amassam, massageiam, expõem, selecionam, acariciam e cortam tudo o que tocam. O resultado com certeza a satisfaz, pois ama observar os olhos de seus convivas se revirando enquanto enchem a boca daquilo que a Sra. Cardoso oferece com tanta paixão. Mas no final, ela só seguiu a receita. Medíocre? Creio que não. Ela sempre dizia que cozinhar era como viver, bastava seguir a receita e, segundo a própria, aprendera tudo o que podia e não podia sobre essas instruções culinárias.
Sra. Cardoso certamente não se importa com o que pensam dela, não se preocupe. Ela se interessa mais em viver sua vida plena e tranquila, suspirando pelos corredores de seu lar, construído pouco a pouco e sempre buscando evitar o porão, mesmo que às vezes seja necessário ir lá quando algo trágico acontece com terceiros, ou a si própria.
Uma coisa interessante sobre essa mulher tão viva é o quanto ela gosta de seres vivos. Os passarinhos que pousam em seu quintal, por exemplo, sempre joga alpiste ou semente de girassol e olha no fundo de seus olhos para lhes impor um nome, todos ficam profundamente agradecidos. Os bichinhos que encontra atropelados na estrada, nossa, nem queira saber o quanto aquele coração idoso se parte ao observar a cena, o que não a impede de os levar para casa.
Uma vez, a gata do vizinho pulou em seu terreno. Sra. Cardoso achou aquilo extremamente curioso e quem não acharia? Uma visita surpresa sempre traz bons momentos, ainda mais quando é um animal tão simpático e fofo.
A senhora a atraiu para dentro de casa e ficaram brincando. A gata era de uma pessoa conhecida, então não deveria ter o que temer, assim criou-se uma bela amizade. Todos os dias a felina orgulhosa pulava num galho baixo da macieira e dele para o gramado, sempre a espera dos quitutes de sua amiga humana e idosa.
Muitas vezes a gatinha acompanhava a distinta dama pelas suas salas, a de estudos, a de artes, a de observação, o laboratório, o açougue, o crematório, a sala do poço, a câmara fria, a sala de ginástica e até a da piscina. Inclusive, uma vez as duas pularam na água, cada uma em uma raia, e nadaram como se estivessem competindo após terem combinado sem dizer uma única palavra. Não é surpresa para ninguém que, ao ganhar, Sra. Cardoso tenha cedido a medalha para o animal.
O dono da gata e sua esposa já foram muitas vezes na casa da anciã para saudar àquela amizade tão bonita. Os 4 jantam várias vezes juntos, sempre os mais diversos pratos. Pasta era o nome da gatinha, não preciso dizer que é porque gostava de comer macarrão, que sua amiga lhe fazia com muito carinho, mesmo sabendo fazer mal.
Infelizmente, Pasta morreu no colo de quem mais tinha apreço depois de seus donos. Porém, Sra. Cardoso não chorou, apenas a levou para o porão. No terceiro dia, os tutores de Pasta se preocuparam com seu atraso, mas ficaram contentes quando ela voltou a tempo de todos se prepararem para a viagem do dia seguinte. Pela manhã, os três se despediram da vizinha e partiram para a praia.
Alguns sabem como viver, mas a Sra. Cardoso tem seu próprio caminho.