UM BIGODE QUADRADO NO CORAÇÃO DO PARAÍSO
Anna Hitler Camargo nasceu numa pequena cidade da Áustria, Braunau, no longínquo ano de 1886. Era a filha mais velha do casal Alois e Klara. A família, um pouco mais tarde, foi morar em Leonding, também na Áustria. Em 1906, depois da morte dos pais, aos vinte anos de idade, Anna alistou-se num grupo de colonos que vinha para o Brasil. Abalou-se da Áustria para cá, sozinha, trazendo consigo somente a cara e a coragem. Vinha no bloco daqueles aliciados pela propaganda do governo brasileiro, ansioso para povoar o inabitado sul do país.
Depois de inimagináveis peripécias, acabou chegando a Urubici, na Serra Catarinense, junto com algumas famílias de letões. Ali conheceu Gustavo Camargo, com quem logo se casou, mais por conveniência, segurança e necessidade do que por algum motivo romântico. Seguindo a tradição das famílias letas, a quem Anna se afeiçoara, ela se casou, trajando um longo e bem bordado vestido preto. Gustavo era um peão grosseiro e sem qualquer instrução, criado no trabalho bruto das roças, serrarias e fazendas. Anna aprendeu o sofrível Português com o marido, e logo se acostumou às rotinas de trabalho e sofrimento da vida sem conforto, sem perspectivas e sem esperanças. Tinha saudades da família e da terra natal, e no seu caipirismo sofrido chorava em silêncio nas frias noites de solidão. Por motivos da própria natureza, o casal nunca teve a felicidade de ter filhos.
Na primavera de 1930 Anna resolveu escrever uma carta para o irmão Adolf, de quem guardava boas lembranças da infância. Gostaria de vê-lo, de convidá-lo a vir visitá-la. Nada mais soubera a seu respeito desde então. Mas, para onde endereçaria a carta? A única referência que ainda tinha era a antiga casa onde moravam quando crianças. Encheu-se de coragem, rabiscou a cartinha, endereçando para o seguinte endereço: Para Adolf Hitler, Ranshofner Strasse - Braunau am Imm – Áustria. Seja o que Deus quiser, pensou. Levou a missiva ao correio, sem muita convicção, porém, e, a bem da verdade, sem qualquer esperança de que um dia ela pudesse chegar ao seu destino.
Com efeito, o endereço indicado, há muito não tinha mais qualquer referência à família Hitler. Contudo, o funcionário dos correios, ao constatar a ausência de qualquer destinatário naquele endereço, logo se fixou no nome: “Adolf Hitler”. Opa! Este era um nome por demais conhecido, não somente na Áustria, como também em toda a Alemanha. A carta, enfim, chegou ao seu destinatário. Adolf, apesar de seu completo distanciamento de qualquer elemento familiar, sorriu ao recebê-la, guardando-a na gaveta dos particulares. Voltou a relê-la por várias vezes, ficando gravadas em sua mente algumas palavras muito estranhas: ‘Rio Urubici’, ‘estrada geral Rio Rufino’. Palavras que ele mal conseguia soletrar. Ficava imaginando onde poderiam ficar lugares tão esquisitos e com linguagem tão desconhecida... A carta de Anna acabou por se perder na voragem dos fatos, mudanças e reformas. Aquelas estranhas palavras, porém, nunca sumiram da vida e da mente de Adolf.
A guerra recrudescia, e os ataques à Alemanha ficavam cada vez mais próximos e fatais. Isto levou a cúpula nazista a tomar a decisão de colocar o Führer em segurança. Hitler, então, em 16 de janeiro de 1945 retirou-se para o Führerbunker, em Berlim, um lugar extremamente seguro e vigiado por tropas de elite do regime nazista, num subterrâneo a dezesseis metros de profundidade. Ali Hitler permaneceu recluso, juntamente com seu alto comando. Ali também prosperou a ideia de que Hitler deveria empreender a fuga para algum país da América do Sul, caso o Reich alemão fosse derrotado e destruído. Todo o plano de fuga foi, então, minuciosamente traçado, com alternativas de plano b, ou c. Mesmo com a derrota da Alemanha, o regime nazista deveria sobreviver; por isso era tão importante manter seu líder máximo vivo e com plenas possibilidades de reerguer o regime, a partir de algum lugar.
Hitler não mais apareceria em público a partir do dia 16 de janeiro de 1945, quando ingressou no bunker. Um mês antes da data programada para sua “morte”, ele já viajava para fora da Alemanha, incógnito e em plena segurança. Não quis trazer consigo para o Brasil outros líderes e comandantes nazistas. Um grande grupo de generais viajaria em naves à parte. Numa primeira etapa da fuga, não iria diretamente para a Argentina, como os demais generais; aportaria, inicialmente, no Brasil, de onde, algum tempo depois, iria se encontrar com os companheiros mais ao sul da América Latina.
Na data aprazada, 28 de março de 1945, às vésperas da conquista de Berlim pelo exército vermelho, Hitler saiu de Berlim, no avião de seu uso particular, pilotado por Hans Baur. Outro avião transportava grande grupo de comandantes. Segundo planos previamente traçados, os aviões seguiram em direção à cidade de Hamburgo, ao norte da Alemanha. Ali, Hitler deveria embarcar num navio da marinha mercante alemã, rumo ao Brasil, enquanto que os demais fugitivos iriam em outro navio. Poucos minutos, porém, após a decolagem das duas aeronaves, o Almirante Karl Dönitz expediu uma contraordem, determinando que os voos seguissem, direto, para Flensburg, um pouco mais ao norte, já na fronteira com a Dinamarca. Motivo: os navios previamente preparados para transportar o Führer e seus generais tiveram problemas com os despachos de carga, e iriam permanecer no porto de Hamburgo por mais uma semana. Hitler ouviu a mensagem e, visivelmente contrariado, exigiu explicações do Almirante.
- Meu Führer, continuamos com o plano b. No porto de Flensburg há dois submarinos perfeitamente prontos e aparelhados para zarpar. Sua partida será imediata. Não se preocupe.
Com efeito, naquele porto ficava fundeada importante parcela da Kriegsmarine, a esquadra nazista, comandada por Dönitz, e próximo dali, às margens do Elba, nos arredores de Hamburgo, ficava estacionada outra grande parte da esquadra alemã, na base militar de Osten. As naus comandadas por Dönitz estavam em alerta permanente, completamente abastecidas de suprimentos, armamentos e tripulação, prontas para qualquer ação de guerra.
O avião de Hans Baur aterrissou na base aérea de Flensburg, seguido pela segunda aeronave. Hitler e seus acompanhantes embarcaram, então, em veículos da marinha alemã e foram levados ao cais do porto, onde estavam dois dos maiores e mais potentes Unterseeboot da marinha nazista: o U-977 e o U-530. A ordem era para que zarpassem imediatamente. Após breve parada na costa brasileira, para o desembarque estratégico do Führer, as naves deveriam seguir para a Argentina.
Karl Dönitz havia sido nomeado Chefe de Estado, em testamento secreto de Hitler, como seu sucessor. O testamento foi aberto no mesmo dia em que Hitler viajou para Flensburg. Ainda naquele dia, dois corpos não identificados de um casal foram incinerados no pátio daquele local. Plano perfeito. Os russos acabaram por recolher aqueles restos, transportando-os para a Rússia como troféus de guerra, certos de que fossem de Hitler e de sua esposa.
Hitler, sua mulher Eva Braun, mais dois assessores e um cozinheiro, embarcaram no submarino U-977, comandado por Karl Schäffer; a tripulação da nave era composta por 46 homens. O submarino U-530, ancorado ao lado do U-977, transportava um grupo bem maior de comandantes nazistas em fuga para a América do Sul, com destino à Argentina. As duas naves viajaram com razoável proximidade uma da outra, mantendo-se em permanente contato via rádio.
O U-977 iniciou sua viagem em 28 de março de 1945, volteando a Dinamarca pelo Mar do Norte, seguindo pelo Canal da Mancha, ao sul do Reino Unido, depois descendo na direção sul, até alcançar o arquipélago de Cabo Verde, onde fez uma breve parada. Tripulantes e passageiros puderam então abrir as escotilhas e subir ao convés da nave. Em seguida, rumou em direção a Santos, no litoral paulista, onde chegou no início de julho. Foram sessenta e cinco dias no mar, percorrendo uma distância de cerca de dez mil e trezentos quilômetros. Viajavam no modo de submersão schnorchel, alternando subidas à superfície com trechos imersos, já que na superfície o submarino tem a possibilidade de ganhar maior velocidade.
À medida que a viagem se estendia, muitas tensões vinham à tona, principalmente pelo confinamento a que todos são submetidos nesses ambientes. Um fato, porém, deixou Adolf transtornado. Sua mulher caiu de cama, com febres altíssimas, fortes dores de cabeça, e episódios constantes de náuseas e vômitos. O médico de bordo, já suspeitando de algo grave, determinou o isolamento da paciente. Hitler exigiu explicações.
- O quadro é de meningite, Senhor. Vamos tratá-la. – Informou secamente o médico.
O U-977 não tinha somente a missão de transportar em segurança o Führer para fora da Alemanha. Estava em permanente ação de guerra, onde estivesse. A cerca de oitocentos quilômetros da costa brasileira, nas proximidades do arquipélago de São Pedro e São Paulo, soou o alarme interno do submarino, denunciando a presença de navio na superfície, possivelmente inimigo. O comandante Schäffer comunicou o fato ao Führer.
- Vamos ver isto. – Vociferou irritado Adolf.
- Periscópio! – Ordenou Schäffer.
- Subir à superfície. - Replicou o ajudante de ordens.
Enquanto a nave emergia das profundezas, a tripulação tomava posições de ataque, conforme protocolos específicos da marinha de guerra.
- Periscópio a postos, Senhor! – Informou o capitão, convidando o Führer a olhar através dele, ao que Hitler acedeu, prontamente.
- Fogo neles, comandante! – Sentenciou Adolf.
A nave avançou um pouco mais, posicionou-se lateralmente e disparou. Dois torpedos gigantescos, sem deixar qualquer rastro na água, atingiram a popa do Cruzador Bahia. O navio adernou e afundou, sem chances, em menos de cinco minutos, matando mais de trezentos militares brasileiros. A ação do U-977 fazia parte da chamada guerra do Atlântico.
- Submergir! – Ordenou o comandante. Na rotina da guerra, todos silenciaram e a viagem prosseguiu na escuridão do oceano.
O estado de saúde de Eva Braun piorava a olhos vistos. Mais alguns dias, e o U-977 se aproximou tanto da costa brasileira, que já era possível vislumbrar seus contornos pelo periscópio. Estavam próximos à Ilha Pompeba, diante da costa do município paulista de Guarujá. Segundo técnicos da marinha nazista, este seria o melhor local para um desembarque seguro e sem alarde do Führer. O submarino emergiu, um bote inflável motorizado foi lançado; os cinco tripulantes embarcaram e se dirigiram para a praia. A noite caía sobre o mar. Um dos assessores de Hitler foi à cidade colher informações de hospedagem; em seu retorno, conduziu o grupo até uma pequena hospedaria. Eva Braun foi carregada, já em estado deplorável.
Na manhã seguinte, obtiveram orientações na própria pensão de como chegar ao hospital mais próximo. Adolf seguiu para o hospital com sua mulher em um carro de praça, onde ela foi internada, pois seu estado era extremamente grave. Passados dois dias, Eva faleceu. Tomados pelo desespero, os assessores e o cozinheiro de Hitler suplicaram para que os liberasse, pois iriam buscar a sobrevivência por conta própria. Adolf mergulhou em profunda depressão e, sem responder aos fiéis ajudantes, passava os dias trancado no quarto da pensão. Vendo a situação desesperadora de seu chefe, os três alemães decidiram abandoná-lo, tomando rumos desconhecidos.
Quando Hitler tomou pé da situação, percebeu que estava completamente só, numa terra estranha e desconhecida. Permaneceu na hospedaria por mais alguns dias, decidindo, por fim, buscar uma saída. Nesta busca desesperada vieram à sua mente as estranhas palavras extraídas da carta de sua irmã Anna: ‘Rio Urubici’, ‘estrada geral Rio Rufino’. Tentou descobrir algo sobre esses lugares, porém, ninguém por ali sabia sequer de sua existência. Decidiu então localizar esses nomes em algum mapa. Um velho Atlas na biblioteca mostrou-lhe um pequeno distrito com o nome de Urubici, pertencente ao município de São Joaquim, no estado de Santa Catarina, no sul do País. Adolf vibrou com a descoberta, e passou a fazer planos de como chegar a este lugar.
O plano de fuga de Hitler incluía o acompanhamento de membros do serviço secreto alemão, que tinham a missão de garantir o trajeto do Führer em total segurança. Com o sumiço dos assessores e a trágica morte da esposa, Hitler adotou caminhos completamente diferentes dos traçados pelo plano, desconsertando o grupo de tal forma que sua localização se tornou completamente impossível. Hitler estava só, viajava por sua conta e risco; começava ali sua lenta tortura.
Um mês havia se passado desde que desembarcara em terras brasileiras. Saiu de Guarujá em direção ao ponto em que faria a travessia por balsa para a cidade de Santos. Pouco mais de quatro quilômetros, que Adolf percorreu a pé, caminhando por cerca de uma hora. Tomou a balsa em Santa Rosa, e logo desembarcou no outro lado do canal, na Ponta da Praia. Adolf permaneceu por ali, perambulando sem destino. Aos poucos, porém, foi se convencendo de que deveria buscar no porto de Santos algum navio de cabotagem que o levasse mais para o sul do país, mais para perto de Florianópolis.
A procura terminou quando localizou no cais do porto, pronto para zarpar, o cargueiro de cabotagem Cruzeiro do Sul, que dali partiria com destino a Florianópolis. Apressou-se, procurou o agente de transporte marítimo e solicitou permissão para ir a bordo. O pedido foi de pronto negado. Adolf insistiu, arrastando um inglês quase ininteligível. Por fim, abriu a mochila e propôs um gordo pagamento em libras esterlinas.
- Um momento. – Solicitou o agente, já impressionado com a quantia oferecida.
- Vou falar com o capitão. – Retornou, momentos depois com a permissão de embarque.
- Veja bem, nosso navio transporta cargas, não pessoas. Não temos acomodações para pessoas.
Adolf gesticulando fez entender ao funcionário que não havia problemas. Acomodar-se-ia em qualquer lugar. Poucas horas depois estava a bordo do Cruzeiro do Sul, rumo a outro ponto desconhecido, talvez mais próximo do que poderia ser ‘Rio Urubici’. Estava disposto a tudo; não mais considerava imprevistos ou riscos. Mudara o penteado e raspara o bigode quadrado.
Dois dias após a partida de Santos, o navio aportava num pequeno trapiche, no extremo leste da Ilha de Florianópolis. Ali Adolf desembarcou e, novamente, se sentiu perdido e sem rumo. Sem falar uma palavra sequer em português, Adolf balbuciava de maneira confusa: turista, Florianópolis. Do norte da Ilha, Rio Vermelho, arranjou-se numa condução que o levaria mais para perto da grande Ponte.
Havia feito o câmbio das libras esterlinas que trouxera consigo, pela moeda brasileira, ainda na cidade de Santos. Fazia os pagamentos, contudo, sem avaliar o real custo das coisas. Hospedou-se num pequeno hotel na rua Quintino Bocaiuva, de onde passou a conjecturar uma forma de encontrar um transporte para o lugar de sua fantasia: ‘Rio Urubici’. Tentava conversar com outros hóspedes do hotel, gesticulando, balbuciando a palavra ‘Urubici’. Foi ante tanta insistência que o destino parece haver-se compadecido de Adolf, e lhe trouxe a informação de que havia caminhões com placas de Urubici estacionados em uma madeireira próxima dali. Adolf não contou tempo, localizou a empresa e se dirigiu para lá. Ali encontrou dois caminhões reboque. Na placa dianteira de um deles estava estampado o nome Urubici. Adolf não mais se separou dele, até que o proprietário se aproximasse perguntando:
- Buenas, quer comprar o caminhão? – Perguntou em tom de pilhéria. Adolf ficou sem entender a pergunta e soletrou:
- Mim, turista. Urubici.
- Quer uma passagem para Urubici?
- Sim, Urubici. – Falou em tom elevado, ao parecer que, finalmente, fora compreendido por alguém. Continuou:
- Eu ajuda, jawhol.
O dono do caminhão sorriu benevolente, olhando para o relógio que marcava cinco e meia da manhã e acrescentou:
– Vamos descarregar essa madeira e viajamos, em seguida. O senhor ajuda?
- Ja, ajuda.
Havia outros dois ajudantes na descarga do caminhão. Tudo terminado, o motorista tomou seu lugar, os dois ajudantes tomaram assento na cabine, e Adolf subiu na carroceria. A viagem começou aos solavancos pela estrada esburacada. O frio cortante do final do inverno catarinense zunia com o vento, e a intensa poeira da estrada ia cobrindo tudo de branco. Foram horas de duro enfrentamento a que o soldado Adolf Hitler ia sendo submetido naquele trecho de estrada poeirenta. A civilização parecia haver desaparecido em meio a tantos montes, tantas curvas, tanta mata. O cenário, porém, completamente novo para o infortunado turista, lhe trazia certo deleite.
Já no início da tarde, com o caminhão bufando serra acima, cruzaram pelo imponente maciço do Morro Bicudo, em plena Serra do Panelão, descendo em direção a Santa Clara e às curvas do Quebra Dentes. Uma freada brusca, e tudo foi tomado pelo poeirão. Do meio daquele caos uma voz:
- Chegamos, companheiro. Pode apear. Nós ficamos por aqui.
Hitler quedou-se sentado, sem entender exatamente o que acontecia.
- Hei, senhor... Desce! Vem! – redarguia o motorista gesticulando. Hitler desceu do veículo, esperando alguma orientação.
- “Rio Urubici” ... - Soletrou inseguro.
- Rio Urubici? É pra lá! – Respondeu o motorista, apontando a estrada vazia.
- Lá? – Balbuciou Adolf, olhando a estradinha que se perdia nos pinhais.
- Isso. Pra lá... – Finalizou o homem, virando as costas.
Adolf olhava perplexo para aqueles cenários novos e desafiadores. Árvores tão escuras, pinheiros gigantes... Começou a caminhar, indeciso. Carregava na bagagem muitas experiências bem mais terríveis que o desafio que tinha pela frente. Caminhava, carregando pesadas cargas na alma, gritos e gemidos dos milhares de fantasmas que povoavam sua mente conturbada e assassina.
Mesmo sem saber, corria já o mês de setembro. Sua fuga já durava longos cinco meses. Mais ou menos uma hora e meia de caminhada e chegava ao primeiro bairro da cidadezinha: a Esquina. Numa pequena bodega à beira da estrada tomou uma xícara de café quente, e tentou seu primeiro contato, com sotaque arrastado:
- Mim, turista... Rio Urubici...
- Rio Urubici? O senhor quer ir até o Rio Urubici?
- Jawohl, Rio Urubici. – Confirmou ele, balançando a cabeça. Virou-se então o caixeiro para outros homens, sextavados no velho balcão:
- Sabem onde é?
- É pra lá. – Respondeu alguém, numa cusparada de quem já entornara o terceiro liso.
- É... Lá pros lados do Fetti. Tem um pontilhão... Acho que é pela estrada geral do Rio Rufino...
- Por aqui, senhor. – Chamou o dono do bar, levando Adolf até à porta do estabelecimento e apontando para a estrada.
- O senhor segue por ali, até encontrar uma ponte. É meio longe... Ali passa o Rio Urubici. Certo?
Hitler saiu em silêncio, seguindo o caminho que lhe indicaram. Carregava numa maleta, alguns poucos pertences. O que mais lhe pesava na alma era o profundo silêncio daquelas paragens. Começava a sentir o peso dos remorsos que o assombravam, das almas penadas de tantas pessoas que condenara à morte. Seguia arrastando consigo seus pesadelos. Cada passo significava o abandono de tudo o que, até ali, fora em vida: poder, glória, comando...
Desde o momento em que apeara do caminhão, Adolf caminhou cerca de sete quilômetros. Ainda sentia as fortes dores de estômago em seu prolongado jejum, as crises gástricas que não o abandonavam; as lesões de pele, de tanto tempo, seguiam com ele; a pressão alta que o agoniava... Da mesma forma, o mal de Parkinson se pronunciava pelo cansaço, tudo acumulado com os velhos sintomas da sífilis.
Tantas vezes fora abertamente acusado de homossexualidade e esquizofrenia por seus inimigos, que aventavam estranhas hipóteses sobre sua genitália. Porque seus acusadores diziam que ele tinha somente um testículo, se ele tinha a certeza de possuir os dois? Inventaram essa história, dizendo que seu pênis havia ficado deformado e atrofiado, depois de haver sido mordido por um bode, ainda na infância... Enquanto mastigava lembranças assim amargas, Hitler caminhava, olhando para o chão, e relembrava as injeções de dextroses e vitaminas, que seu médico Morelli lhe aplicava, as ampolas de testosterona, extraídas das glândulas prostáticas de terneiros de raça, que obrigava Morelli a injetar-lhe no sangue.
O deslumbrante cenário que ia se descortinando perante ele, não lhe chamava a atenção, pois não tinha a menor noção de onde estava, de quanto caminho percorrera, de quanto faltava percorrer. Seguia. Quase sem perceber, numa curva da estrada, deparou-se com um pequeno córrego de águas escuras, limpas e fundas. Era o Rio Urubici... Ali, diante dele estava o pontilhão de madeira, conforme descrevera sua irmã Anna, há tantos anos atrás. Apressou o passo, cruzou a ponte e, de repente, estava diante de uma casa rústica de madeira, à beira da estrada. Ali, de pé, com os braços cruzados, em atitude de resignada espera, estava uma mulher. Mirava ao longe, sem qualquer perspectiva. Esperava.
Adolf sentiu um leve frêmito no peito, e viu nascer dentro de si uma pequena esperança.
- Ela? Será que é ela? – Aproximou-se lentamente.
- Anna? Anna Hitler? – Balbuciou com marcado sotaque austríaco.
A mulher voltou o rosto, sem expressão ou emoção. Aquele chamado, porém, evocou em sua alma um som familiar, apesar de longínquo.
- Jawohl, Anna Hitler Camargo...
- Anna?
- Sim, Anna...
- Adolf! Meine Schwester, Anna? – Apressou o passo em direção à mulher e a apertou num demorado abraço.
- Adolf, você? Como chegou até aqui? – Esfregava, nervosamente, as mãos no avental, enxugando as lágrimas que a surpresa lhe provocara.
– Vem, vamos entrar!
O Português mal falado, misturado a frases em alemão, risos nervosos, lágrimas. Adolf Hitler o tenebroso personagem que assombrara a Europa e o mundo, incrivelmente, estava em Urubici, incógnito e desesperado, em pleno paraíso. A pequena e humilde casa de sua irmã mais velha, iria lhe servir de esconderijo pelos próximos anos.
À noitinha, Gustavo Camargo, marido de Anna, retornou para casa, após extenuante jornada no trabalho bruto da serraria. Anna se apressou em lhe explicar a presença do irmão. Hitler, que estava sentado a um canto, junto ao fogão de lenha, se levantou ao ver o homem, e assim permaneceu, imóvel e mudo. O peão Gustavo, sem nenhum gesto de aproximação, rosnou:
- Irmão? De onde? Vocês são de onde? Eu nem sei...
- Meu irmão Adolf, da Alemanha. Visita... – Explicava Anna.
Gustavo sacou a camisa e começou a se lavar no coxo de madeira. Nada mais falou. Sentou-se à mesa, enquanto Anna lhe servia a sopa.
- Senta, home, senta aí... – Disse finalmente o peão, num meneio de cabeça.
- Vem, Adolf. Senta aqui. – Confirmou a irmã, colocando um prato fundo à sua frente.
Adolf, apesar dos disfarces e da roupa simples que usava, mal conseguia esconder a fineza de gestos e hábitos, que a riqueza e o poder lhe haviam sempre garantido. Os modos grã-finos do europeu, o jeito rebuscado de se assentar, chamavam a atenção do casal. Gustavo sorvia ruidosamente a sopa e olhava agora o cunhado, de soslaio. O lampião de querosene desenhava nas paredes as sombras bruxuleantes do pequeno grupo, que comia em acabrunhado silêncio.
Hitler passou a conviver com o casal; trabalhava nos pequenos roçados, cuidava das vacas, dos porcos, galinhas e ovelhas. Sua convivência com os animais, porém, não era nada pacífica; gritava e batia nas criações. Os animais com os quais Hitler mais conflitava eram as ovelhas; uma delas o irritava, particularmente. Falava com elas em alemão, discursava, como se fossem membros do partido nazista.
Numa manhã de inverno, Adolf foi surpreendido no curral por uma voz esganiçada que vinha do meio do pequeno rebanho de ovelhas. Por mais que tentasse manter a calma, foi tomado de certo pavor ao constatar que uma das ovelhas estava lhe falando coisas, olhava desafiadoramente para ele, batia com as patas no chão e o ameaçava com palavras de baixo calão. Mesmo sem admitir o que ouvia, por puro temor de estar completamente louco, Adolf Hitler passou a responder aos xingamentos da maldita ovelha falante, e esta não lhe poupava ofensas, xingava e ameaçava denunciá-lo ao cunhado, criticava abertamente o modo como ele tratava os outros animais do sítio, atacava a falta de sentimentos de Adolf e, por fim, mudando um pouco o tom, passou a lhe dar conselhos, dizendo-lhe que voltasse ao país de onde viera. Hitler ouvia a ovelha, argumentava, sem nunca, porém, fixá-la nos olhos, por medo de admitir sua loucura. Sempre que podia, tentava se afastar da odiosa ovelha, porém, ela o seguia, implacavelmente, e, entre um balido e outro, o enfrentava, e se postava como seu cruel acusador. Hitler, por fim, já não mais sabia se o que ouvia era mesmo a voz daquele animal peludo, ou o som desafinado de sua pesada consciência.
Os guaipecas da casa também o odiavam, e rosnavam, arreganhando os dentes, para ele, quando passava, vendo nele uma figura tétrica e ameaçadora. Hitler nunca conseguiu tirar o leite das vacas, suas mãos tremiam, os animais escoiceavam e se debatiam, mesmo sendo extremamente mansos. Era como se as mãos de Adolf tivessem espinhos, ou se um demônio arranhasse seus úberes. O velho cavalo do sítio também não lhe permitia que se aproximasse. Adolf nunca conseguiu montá-lo ou, sequer, encilhá-lo.
A pequena casa onde moravam, à beira do Rio Urubici, cercada de vimes e de velhos salseiros chorões, assistia às solitárias idas e vindas de Hitler. A irmã Anna pouco falava com ele, sentindo-se estranhamente afetada em sua presença. Hitler costumava sentar-se no barranco, à beira d’água, e ali ficava por horas a fio, contando as bolotas vermelhas que passavam boiando na correnteza. Num desses dias, correu assustado, pois vira sua imagem refletida nas águas do rio.
– Um monstro, pensou... - Voltou para casa, sentou-se no chão, aos pés da cadeira onde Anna bordava e, nervosamente, lhe contou ter visto um peixe horrível, um gigantesco jundiá, que tentou devorá-lo.
Os anos passaram, e Adolf Hitler viveu incógnito em pleno paraíso; ninguém nunca soube seu verdadeiro nome, o que fizera antes de ali chegar, de onde viera. Usava botas, porém, reclamava dos torturantes pregos que lhe furavam os pés; por um tempo usou bombachas largas, abotoadas nos tornozelos, adornadas com favos, numa tentativa de buscar alguma identificação com o meio onde vivia. Nada, porém, o libertava dos fantasmas que o perseguiam, dia e noite.
No inverno de 1948, morreu o cunhado Gustavo, aos sessenta anos de idade, vítima de apoplexia fatal; caiu fulminado, enquanto trabalhava; o corpo foi levado na carroceria do caminhão da serraria e enterrado pela própria prefeitura. A convivência de Gustavo com o cunhado Adolf sempre fora extremamente penosa. Brigavam muito, a ponto de, certa vez, Gustavo haver batido em Adolf com um relho trançado, deixando-o prostrado no chão, por ele haver chutado as galinhas. Não fosse a intervenção da irmã, talvez Hitler não tivesse sobrevivido àquela pancadaria. Depois da surra, Adolf sumiu, embrenhou-se no mato por quatro longos dias.
A irmã mais velha de Hitler passou os anos de viuvez cuidando do irmão e da pequena propriedade. O tempo impiedoso, porém, a foi prostrando, até que, em 1956, aos 70 anos de idade a derrubou de vez. Ficou caída na escadinha do alpendre, no lado de fora da casa. Um passante que a viu assim, avisou a polícia. O corpo foi levado. Adolf, tomado de enorme desespero, novamente se escondeu na mata. Não foi ao enterro da irmã.
Desse dia em diante, Adolf Hitler passou a ser agredido com mais veemência, por milhões de fantasmas e demônios, que não lhe davam um instante sequer de sossego. Depois da morte da irmã, sua solidão e abandono aumentaram muito. Hitler passava a maior parte do tempo fora da casa, no campo, pois a balbúrdia dos fantasmas o deixava em pânico. Ao anoitecer, sem outra alternativa, voltava para dentro da casa, pesaroso e amedrontado; a custo adormecia, se debatendo, torturado por medonhos pesadelos.
Poucas semanas nesta situação, e Hitler não aguentou. Fugiu de casa. Todo o seu tormento, mesmo sem qualquer testemunha, se tornara insuportável. Fugiu. Saiu, sem destino, sem olhar para trás. A multidão infernal de fantasmas, porém, seguia com ele, atormentando, gritando, gemendo.
Assim que Hitler abandonou a casa, um fato tenebroso aconteceu: a edificação inteira desapareceu, misteriosamente. Tudo virou pó, num segundo. O sítio ruiu, e foi imediatamente tomado pelo mato; o terreno quedou vazio, como se nunca ninguém o tivesse habitado. As cercas ruíram, os animais desapareceram. Adolf expurgado, fora forçado a sair. A casa havia sido, literalmente, tomada por uma chusma de espíritos malignos e barulhentos, que não o deixavam dormir. Havia cadáveres por todos os cômodos da casa, magros, esqueléticos, vestidos com pijamas listados.
Em sua fuga, sozinho e abandonado, Adolf Hitler perambulou por caminhos escuros e pedregosos. A invernia de junho o arrastava pelas encostas e banhados. A geada se apresentava mais cruel que nunca. Urubici assumia, por fim, o papel feroz de vingador e de algoz, o paraíso se converteu em inferno, impingindo a quem sempre fora desalmado e assassino, o merecido castigo, cheio de dor e repulsa.
A figura do soberbo e altivo Adolf Hitler, o ditador e genocida que apavorou o mundo, estava reduzida a pó. Um molambo ambulante. Um ancião impotente, desdentado, de cabelos brancos e desgrenhados, rosto barbado e pés descalços. Nas costas, uma pequena matula.
Andou e parou em frente à porteira de uma roça de tomates. Dois bondosos senhores que ali trabalhavam se aproximaram. Hitler gesticulou, demonstrando sua fome. Manoel e Lauro se condoeram e se apressaram em colher uns punhados da fruta, que ele engoliu com voracidade. Sentou-se por ali e, já no final da tarde, deu a entender que gostaria de trabalhar naquela lavoura, limpando, colhendo, montando as caixas. Manoel e Lauro se entreolharam e acabaram por ceder o galpão das ferramentas para que Adolf ali passasse a noite. No dia seguinte permitiram que ele fizesse alguns pequenos serviços. Não tinha forças, porém, nem disposição para o trabalho, mesmo assim, foi ficando.
Trabalhou na plantação de tomates durante todo o mês de junho. Dormia no galpão de ferramentas, em meio aos sacos de sulfato de cobre e de cal virgem. Na verga da porta do galpão pichou com carvão a frase: “Arbeit macht frei” (o trabalho liberta).
Não tardou, porém, a que sua loucura o precipitasse em novo abismo. Na escuridão das noites, passou a comer punhados de sulfato de cobre. Seus benfeitores o encontraram, numa manhã, desacordado, caído sobre uma possa de vômito, coalhado de sangue. A boca vazia e sem dentes estava feericamente azulada.
Adolf foi colocado num jipe e levado ao Hospital São José. O médico que o atendeu diagnosticou rapidamente: intoxicação por cobre, acompanhada de forte hemorragia no aparelho digestivo superior. Ficou internado por duas semanas e, em seguida, reencaminhado ao seu abrigo, na roça de tomates.
No dia seguinte ao seu retorno, Adolf Hitler caminhou sozinho em direção à mata de pinheiros, seguindo para o alto da morraria. Uma forte tontura o golpeou, suas vistas escureceram, uma golfada de sangue lhe encheu a boca. Caiu em meio à macega, para nunca mais dali se levantar. Morreu sozinho e sem alento. O frio inverno de julho de 1958 foi a única testemunha de sua queda. Tinha sessenta e nove anos de idade, e o mundo, mesmo sem tomar conhecimento, se via livre de um dos maiores monstros já gerados pela humanidade.
O local onde Hitler caiu, logo se tornou assombrado e povoado por todos os espíritos raivosos, que não puderam ir com ele, em direção aos infernos. Uma profunda fenda se abriu no chão, por onde exalava um forte e nauseante cheiro de carnes podres e de enxofre. Ali, onde caiu o nazista, abriu-se uma passagem para inferno. Dante Alighieri, o autor da Divina Comédia, assegura que a gravidade dos pecados cometidos aumenta, conforme os círculos se tornam mais profundos. Hitler foi jogado para o sétimo círculo dos infernos; é para lá que vão as almas dos violentos e insensíveis. Naquele lugar de tormentos, os que praticaram a violência contra o próximo, os assassinos de toda ordem, ficam mergulhados no lago de sangue fervente das vítimas que oprimiram. Quanto maior a violência praticada, maior a parte imersa. Na entrada desse círculo fica uma cachoeira de sangue fervente e fétido, onde estão amontoados os violentos, batendo-se e torturando-se numa raiva sem fim. No fundo do lago de sangue fervente ficam os ditadores e genocidas, os que ordenaram os massacres mais violentos, estes não podem subir à superfície, ficam atolados na lama imunda do fundo do lago, soltando as bolhas que podem ser vistas na superfície. Que o tormento deles dure para sempre!
Uma ossada foi encontrada por caçadores, anos mais tarde. Por baixo dos ossos havia uma pequena mochila, com restos de papel, uma espécie de diário, escrito em alemão; junto aos restos, uma cópia do livro Mein Kampf, registrando ideias antissemitas, antimarxistas, anticomunistas, racialistas e nacionalistas de extrema direita. Os ossos foram jogados no ossuário público, levados num saco preto de lixo. Junto com eles, o livro e o diário.