Samael está deitado em baixo de uma Árvore de frutos dourados que exala um aroma de maçãs azuis, iguais às que nascem nas alturas geladas do Tibete. Ele está pensando e seus pensamentos não são nada consentâneos com sua origem angélica. Para começar, não gosta nem um pouco do aspecto que está ostentando naquele momento, mas sabe que é necessário assumir essa forma para realizar os propósitos pelos quais ele está ali agora. Ele, que era um esbelto arcanjo, cujas faces brilhavam como a luz do sol, agora se apresenta  como um réptil rastejante e asqueroso, que se arrasta sobre o próprio ventre, deixando escamas por onde passa e como voz só consegue emitir um sibilo horrível que parece um assobio de vento passando por um canudo de junco. Pudera: sua língua agora é uma lâmina fendida em duas falanges que lhe escapam, sibilinas, pela horrível bocarra, junto com uma gosma esverdeada que escorre pelo par de pontiagudas presas.

Nem sempre foi assim. Houve um tempo (que para Samael conta como alguns dias, mas no entanto, sabe que nesse tempo a terra já dera milhões de voltas em torno do sol) em que ele era uma das mais belas criaturas que o Senhor dos Céus, também conhecido como Deus, havia feito. Seu status era bastante respeitado entre as entidades que o Ser Supremo havia criado na segunda etapa da sua Obra. Ele e o seu companheiro Miguel eram os dois Primeiros Tenentes das hostes angélicas que o Senhor havia criado, e a eles havia sido dada a função de atuar como polos positivo e negativo da Criação. Eram ambos necessários para que a corrente energética que Deus espalhara pelo vazio cósmico, em forma de Luz, para gerar todas as realidades daquilo que viria a ser o universo conhecido, pudesse circular.

Samael sabia que Deus criara o mundo em dez etapas de manifestação da sua Potência e essa obra durara sete dias, que correspondia a quinze milhões de anos terrestres. E ele, juntamente com Miguel fora um dos primeiros arcontes que saíra da Garganta de Deus quando emitiu o o primeiro dos sons com os quais construía o mundo material.

Ele era um arcanjo pertencente à Ordem dos Serafins enquanto Miguel fazia parte da Ordens dos Malaquins. Ambos haviam surgido na etapa conhecida como Mundo Criativo, momentos depois que Deus deu o grande grito “Eu Sou” que libertou a energia que saiu do exíguo espaço onde estava concentrada, para gerar, primeiro o tempo e o espaço e depois as leis e as combinações energéticas necessárias para que o universo material passasse a existir.

Sim, Samael também lembrava-se do imenso calor que aquela explosão de energia provocada pelo grito do Senhor emitiu.  E como aos poucos esse calor foi se resfriando e a luz  se condensando em minúsculos blocos de energia que foram adquirindo massa e forma. Pois foi assim que Deus deu início ao mundo material e ele estava nesse início. Porque ele mesmo, como todos os seus confrades das demais Ordens angélicas, tais como os Aufanins, Aralins, Malaquins, Elhoins e Querubins, eram partículas da imensa energia que Ele emitira quando dera o grande grito de manifestação para sair da sua Existência Negativa para se tornar uma Existência Positiva. E ele, como todos os seres angélicos viajavam pelo espaço cósmico a uma extraordinária velocidade, combinando-se com os outros para formatar a realidade universal. Eles eram os atributos do Ser Supremo que se espalhavam pela Criação, dando-lhe forma e identidade.

Samael e Miguel correspondiam aos dois mais importantes atributos do Ser Supremo, que eram a Misericórdia e a Justiça, qualias segundo as quais Deus iria ancorar a parte mais importante da Criação, que seria manifestada no sexto dia da sua Obra, condensada no ser humano. Por isso Deus dera a ele, Samael, a incumbência de guardar a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, na qual se estribaria a consciência que deveria guiar o ser vivente de quem o Senhor pretendia fazer a coroa sua Criação. 

Tudo teria dado certo se o próprio Ser Supremo não tivesse, Ele mesmo, modificado os propósitos da sua própria Obra. Pois a Samael foi dada a incumbência de mediar entre o certo e o errado no mundo, desenvolvendo na Criação os atributos da consciência em sua dimensão material; e Miguel seria o patrono da parte espiritual dele evitando que ser humano se afastasse da sua origem celestial. Ambos deveriam trabalhar em perfeita sintonia para que matéria e espírito constituíssem um caminho harmonioso pelo qual a corrente de energia despendida pelo Criador na sua ação criativa se distribuísse e proporcionasse o fenômeno da Criação da forma pela qual o Senhor a havia projetado. 

Por isso é que Deus fizera o homem. Para que ele refletisse na terra os seus atributos e com isso Ele fosse conhecido e honrado em toda sua glória. Porque na sua Existência Negativa ninguém sabia da sua existência. O ser humano seria, no mundo da sua Existência Positiva o seu reflexo, o polo positivo por onde sua Energia circularia e daria, em resultado, um mundo justo e perfeito. Samael se encarregaria dessa tarefa, como guarda da consciência humana, da mesma forma que Miguel se encarregaria de manter o elo de ligação do homem com a sua origem divina. Mas ao escolher Miguel como seu favorito, o Ser Supremo provocara um descontentamento no Céu, que se alastrou entre os membros da Ordem dos serafins, que ele, Samael, presidia. Seus comandados não gostaram nada dessa escolha feita pelo Senhor, pois ela colocava os comandados de Miguel acima das demais hostes angélicas, numa relação de subalternidade que de maneira nenhuma lhes fazia justiça, até porque todos eram feitos de partículas da Energia do Criador e possuíam, de origem, a mesma importância no processo criativo do universo.

Agora, se ele, Samael, correspondia à Justiça, e esse era um dos principais atributos do Criador, não lhe parecia nada justo o que o Ser Supremo fizera, dando a Miguel, que simbolizava o atributo Misericórdia, maior importância no catálogo de atributos que o Criador pretendia refletir na sua Criação e com quais esperava se tornar conhecido. Samael procurou lembrar ao Senhor que fora exatamente para se fazer conhecido que Ele concentrara a sua Potência num minúsculo espaço que não excedia mais de três milímetros de diâmetro formando uma espécie de ovo cósmico, que em dado momento se rompeu, lançando no espaço miríades incontáveis de centelhas de energia em forma de Luz. E nessa Luz esplendorosa, todos os germes do mundo que iria ser formado, acompanhado dos atributos arquetípicos de Deus, que seriam chamados de Justiça, Bondade, Coragem, Tolerância, Sabedoria, Compreensão, Misericórdia, Severidade Beleza, Vitória, Esplendor, Fundamento, Compassividade, Amor, enfim todas as qualidades que Ele pretendia distribuir ao homem, como reflexo da sua própria imagem positivada.  

Assim, Samael deveria espalhar pela Criação os atributos vinculados à condição humana da Criação e Miguel os do espírito. E ambos compareceriam em pé de igualdade perante o Ser Supremo. Afinal, o que seria mais importante para o erguimento do edifício universal do que a Justiça? Pensaria o Ser Supremo que os atributos do espírito seriam mais importantes do que os da matéria? O mundo seria melhor se a espiritualidade fosse posta num altar mais alto do que a matéria? Não era a matéria espirito que se transmutava de sua condição sutil para um estado mais grosseiro? E a matéria, quanto mais complexa se tornava em sua estrutura não se transformava, por sua vez, em espírito, já que tanto uma como outro, matéria e espírito, ambos eram feitos de energia que sofriam transmutações?

Samael e seus comandados achavam que não deveria haver hierarquia entre os agentes de Criação que Deus espalhara pelo mundo. Todos tinham a sua importância e nenhum deles deveria ser colocado acima dos outros. Então foram cobrar dele uma reavaliação desse conceito e deu no que deu. O Criador não é um Ser que admite enganos. Muito menos que Ele possa cometê-los. Afinal ele É Deus, o Ser Supremo. Seus decretos são infalíveis e seu julgamento não comporta embargos de nenhuma ordem.

"Miguel é o meu primogênito", disse o Senhor "e todos ficarão sujeitos a ele".

 

Esse foi o motivo da chamada Rebelião de Lúcifer e esse fora o seu castigo. Ser expulso da dimensão celeste, de onde a Luz Ilimitada de Deus emana e condenado a viver na dimensão da matéria grosseira e escura. Ele, Samael, que era chamado de Lúcifer, o portador da Luz, tornou-se Satã, o que preside a escuridão. E já que era assim, pensava Samael, se nada que fizesse faria o Criador voltar atrás no seu injusto decreto, então porque não seguir seu próprio caminho e se tornar, de fato, um rival na política de construção universal? Ele boicotaria o projeto inicial do Criador e desenvolveria o seu próprio projeto. Para representar a Justiça ele fora feito. Portanto, Justiça, a seu modo, era o que ele faria. Por isso agora estava ali, travestido na forma de uma serpente, enrodilhado em volta daquele linda Árvore de dourados e apetitosos frutos, que Deus plantara em meio aquele frondoso jardim. Ardiloso como era, Samael usaria a própria Criação de Deus para realizar a sua vingança.

(continua)