25 de agosto de 1997
Jamais vou me esquecer desta data. Foi exatamente nesse dia que fui comprar a primeira máquina do que viria ser a minha empresa, e quem bancou essa compra foi meu tio Julio. Ele não pensou duas vezes quando fui lhe pedir aquele dinheiro emprestado, pois eu mesmo não tinha um tostão furado no bolso naquela época. Mas ele já havia bancado meu curso de torneiro, então simplesmente passou a mão no talão de cheques e disse: “Vamos lá buscar essa fresa”. Eu já tinha ajeitado com o Tobias de pegar a camionete dele no caso daquela necessidade, e então saímos rumo ao endereço do vendedor na noite fria daquele vinte e cinco de agosto.
Acontece que no caminho, num lugar ermo e mal iluminado, a camionete resolveu dar problema. Olhar para o motor e usar o pouco que eu e meu tio sabíamos de mecânica de carro, não foi suficiente pra encontrar o defeito. Tentamos dar um tranco, a bateria já dava sinais de querer arrear, e nada da camionete pegar. Na minha cabeça ressoava a voz do vendedor ao telefone: “O primeiro que chegar, leva”. E o preço da máquina estava mesmo uma pechincha, seria uma lástima perder aquele negócio. Eu já estava amaldiçoando até a quinta geração do Tobias quando, do nada, encostou um carro branco ao lado de onde estávamos parados, e dele desceu o Maguila, um amigo meu da época do colégio que eu não encontrava já havia alguns anos. O seu nome era Valdecir, mas a gente o chamava de Maguila porque ele era um moreno alto e forte, e que não perdia uma briga pra ninguém. Mas comigo o cara sempre foi um doce, tínhamos realmente uma parceria inabalável na escola, e as encrencas em que eu me metia, o Maguila sempre resolvia pra mim – muitas vezes, na base do soco. Sabia que ele tinha perdido um irmão mais novo afogado na represa, e acho que de certo modo ele havia me adotado na vontade de preencher a falta que o irmão lhe fazia – tanto que ele me chamava de “irmãozinho”.
Porém, com o final do ginásio fomos nos vendo cada vez menos, cada um foi para um lado, até que eu perdi o contato e realmente não me lembrava de ter visto o Maguila pela cidade naqueles tempos. E a sua presença ali naquele momento era a nossa salvação, porque desde pequeno ele havia trabalhado em oficina de carro. Com o seu sorrisão habitual, me abraçou com genuína ternura, e eu confesso que senti algo diferente nele naquela noite. Não soube explicar, mas o Maguila estava radiante, com um semblante próprio de alguém sinceramente feliz. Como esperado, ele logo detectou o defeito. Trouxe sua caixa de ferramentas para perto, e sob a luz dos faróis do seu carro, minutos depois de se debruçar sobre o capô aberto da camionete, ela voltou a funcionar. Abracei de novo meu antigo amigo e disse que não sabia como lhe agradecer por sua ajuda. E ele retrucou: “Amigo é pra essas coisas. Agora vai lá e compra a máquina. Você vai ser dar muito bem na vida, irmãozinho”. Na hora eu fiquei tão entusiasmado com a camionete funcionando de novo, que nem me atentei muito àquelas palavras. Mas logo que ele montou em seu carro e se foi, meu tio virou-se pra mim e perguntou: “Não ouvi você contar pro seu amigo que estava indo comprar uma máquina. Ele já sabia?” Realmente eu não havia mencionado isso pro Maguila, mesmo porque ele nem perguntou, já foi direto mexendo no motor. Estranho mesmo, mais estranho até do que ter aparecido sem mais nem menos por aquelas bandas, tão distante do local onde eu lembrava que ele morava – a menos que tivesse se mudado para aquelas redondezas, vai saber...
Mas o fato é que chegamos à propriedade do vendedor, fizemos a compra, meu tio assinou o cheque e pegamos o recibo no valor pago, carregamos a máquina na carroceria da camionete, e foi ali que, confirmando o que meu amigo Maguila havia profetizado naquela noite, a minha vida começou a virar para melhor. Os serviços foram aparecendo, mais máquinas foram compradas, e hoje tenho mais de quarenta funcionários trabalhando pra mim em um negócio que me deixou em uma condição financeira, digamos, confortável.
Infelizmente, meu tio veio a falecer muito antes do que eu esperava. A pessoa a quem eu devia simplesmente tudo. Durante o seu velório, puxei da carteira o papel dobrado que eu sempre carregava comigo: o recibo da máquina que ele havia comprado pra mim. O valor, cujo cheque precisou recorrer a suas economias para cobrir, hoje não me faria falta alguma. E embaixo da assinatura do vendedor, a data: 25 de agosto de 1997. Era a lembrança do fato mais marcante da minha vida profissional, o que me fazia acordar todo dia e ser grato por tudo que eu havia conseguido com o meu trabalho. E eu devia tudo ao meu tio. Foi uma lástima tio Julio ter partido, mas a minha gratidão àquela pessoa, que tinha sido sempre tão incrível pra mim, seria absolutamente eterna.
Após o cortejo e o enterro, eu voltava de braços dados com minha esposa e minhas duas filhas rumo à saída do cemitério, quando a inscrição em uma lápide me chamou a atenção. Estava lá escrito: “Aqui jaz Valdecir Divino Ferreira”. E era a foto do Maguila, com aquele seu sorrisão característico. Era exatamente o rosto dele que eu guardava na lembrança. Levei um choque: “Meu Deus, o Maguila morreu!” Minha esposa não entendeu, e olhando para o túmulo à nossa frente, perguntou: “Você conhecia?” Respondi que sim, que era um grande amigo – lembrei logo do socorro na noite da compra da fresa. Mas que fazia muito tempo que não via – de fato, depois daquela noite, nunca mais voltei a ver o Maguila.
Então me perguntei: “Quando será que ele morreu?” E logo abaixo da sua data de nascimento, a inscrição ao lado da pequena cruz mostrava: “18/08/1997”.