Furando fila

Naquela tarde, pássaros voavam pelas árvores da praça Getúlio Vargas. Voavam por entre o coreto, voavam até a fonte que não funcionava e depois se dispersavam.

Um destes pássaros voou até o alto da fachada do prédio da praça e observou o outro lado da rua. Lá havia uma enorme fila que saia da lotérica e passava pela calçada, onde todos estavam parados. O pássaro estranhou aquela aglomeração parada, “por que não estão se movimentando para fazer suas tarefas? Por que fazer tarefas parados?”, pensou ele.

Mas, algo na fila chamou sua atenção, havia um senhor inquieto. Ele olhava para os lados, olhava para cima, passava a mão no cabelo, assobiava, “não tão bem assim”, segundo o pássaro e também olhava e digitava em seu celular, como se quisesse matar o tempo.

O pássaro considerou aquilo divertido e mergulhou num voo rasante para se aproximar da fila humana. Sua trajetória parabólica teve fim numa árvore defronte a lotérica. O pássaro se ajeitou e buscou observar melhor o senhor. Era um humano de cabelos grisalhos penteados para o lado, segurava debaixo do braço uma pasta transparente que continha diversos papeis e tinha uma cara que expressava profundo desespero, como se aquela fila o levasse para a Barca do Inferno, “coitado, deve estar indo receber alguma má notícia”.

Porém, algo de novo aconteceu, aquela fila enorme deu um passo. A feição moribunda do senhor se transformou então em uma expressão de profunda satisfação. No entanto, quando percebeu que não haveria outro passo, sua expressão novamente esmoreceu. “ah! Aí está, ele não vai para a Barca do Inferno, seu inferno é a própria fila!”, com este pensamento o pássaro teve um pico de satisfação própria, decerto deveria ser o pássaro mais esperto e observador que existia, “obrigado, obrigado”, respondeu o animal ao sentir que alguém o elogiava.

— Não gosta de filas?

Tanto o senhor quanto a ave foram tiradas de seus pensamentos e, num rompante de susto contido, observaram a figura atrás do homem que odiava filas. Era uma jovem moça de cabelos escuros e com uma expressão calma e feliz.

— As considero insuportáveis. Já estou velho demais para perder tempo!

— Eu também odeio quando está assim. Minha mãe sempre diz para eu ir cedo, logo quando o lugar abre. Na minha cabeça, como todos sabem que, ao ir cedo, não há muita fila então deveria haver mais fila de manhã e menos de tarde… mas sempre me deparo com o problema de que ela estava certa.

“Nós, pássaros, não temos filas nunca”.

— Mas sua mãe se engana, há fila toda hora. Hoje é aqueles dias que você tira para resolver tudo. Tive de usar minha manhã para ir ao médico, depois ao banco, depois ao cartório, depois para a companhia de luz, depois almocei com um amigo e só aí pude vir para cá, pois, me esqueci de pagar um boleto que ficou preso entre dois exames!

— Nossa, que chato. O senhor disse que há fila toda hora, isso é verdade. Até nos finais de semana tem filas enormes, como a dos ônibus, onde as empresas reduzem os horários. Talvez para fazer a manutenção da fila. Deve existir algum lobby da fila, não acha?

— Com certeza! As filas são uma epidemia e uma loucura comunitária. É um absurdo não abrirem mais caixas, os donos das empresas apenas querem lucrar mais. Por isso não colocam mais atendentes, nós nos conformamos com filas.

— Sim.

— Há fila para tudo, pra nascer, pra morrer e acho que deve até ter fila para entrar no céu.

“Não no meu céu. Aqui todos são livres para voar, inclusive seus aviões irritantes”.

— Olha, faz sentido ter fila para entrar no céu. Atualmente temos vivas cerca de oito bilhões de pessoas. Cerca de cento e quarenta milhões de pessoas nascem e cerca de sessenta milhões de pessoas morrem todos os anos. Podemos dizer que mais de cem bilhões de pessoas morreram ao longo da história da humanidade. Não acha que são muitas almas indo para um só lugar?

— Meu deus, moça, como sabe de tudo isso?

“Até eu estou impressionado! Imagine só quantos pássaros já morreram na história? Mas essa moça deve estar errada, só mais de 100 bilhões? Eu acho que os primatas já morreram em maior quantidade…”.

— Gosto de estudar cultura inútil. Mas veja, nisso eu contabilizo apenas humanos, para ficar claro há todos.

“Agora faz sentido… espera um momento, ela me ouviu?”.

— É bom estudar um pouco de tudo. Qual o seu nome mesmo? Me chamo Alberto.

— O senhor acha que tenho cara do que?

— Vamos ver… Roberta?

— Ah, olha só, o senhor adivinhou de primeira!

— Ah, que legal!

“Falsa! Qual é a sua?”.

— Enfim, isso seria uma fila só de almas humanas, dependendo de sua religião, talvez até tenham almas de outros seres, o que pode resultar numa fila incomensurável!

— Ah não, nossa que terrível. Nem me fale dessas coisas, quando eu morrer eu quero descansar, se for pra ter fila, que tenha uma de cada religião.

— Olha só, o senhor é muito perspicaz. Qual a sua religião?

— Eu sou católico.

— Católico o que?

— Católico apostólico romano.

“Eu não tenho religião… não pego fila?”.

— Nossa, então o senhor vai ficar numa fila muito grande.

— O que? Como assim?

Neste momento a fila deu meio passo, o senhor notou aquilo com a indignação estampada em seu rosto, nem mesmo quis se dar ao trabalho de andar. Até mesmo a ave ficou frustrada. Já a moça continuava plácida.

— Olha que absurdo, aqui já tenho que aturar esse tipo de loucura, como me diz que ainda tenho que aguentar algo pior depois que morrer?

— É a religião que o senhor escolheu… imagine que não é só uma fila para entrar, há uma conversa com o porteiro e dependendo da conversa, pode demorar muito. Só hoje há mais de um bilhão de católicos vivos no mundo, imagine os mortos.

— Meu Deus! Quero outra religião!

— Quer outra religião?

— Não, quer dizer, não quero pegar uma fila tão grande, não tem como mudar assim de religião. Além do mais, não me vale a pena, estou velho e sem tempo para mudanças tão drásticas.

— Ah! Seu Alberto. O senhor pratica sua religião?

— É, as vezes vou na missa, as vezes não dá, sabe como é.

— Sei sim, mas é aquilo, o senhor sabe que precisa confessar que não foi na missa né? Aliás, quanto tempo faz que não se confessa?

— Eu sei... mas faz mais de ano que eu não me confesso, acho que a última vez foi quando fui ser padrinho do meu sobrinho.

— Então acho que é melhor para o senhor ou se acertar na sua religião ou mudar logo e começar já zerado com uma fila menor.

— Que?

— Pois é, o senhor não vai querer pegar uma fila quase interminável para ir pro inferno, né seu Alberto?

“Essa moça me assusta, coitado do seu Alberto. Nessa idade já deveria saber que não se fala com estranhos na rua, evita essas conversas insanas”.

— Olha, Roberta, como pode falar isso tudo com certeza? Não sabemos como é depois da morte. Não é legal ficar falando essas coisas pros outros, eu não me importo, mas outras pessoas podem ficar bravas.

— Fique tranquilo, seu Alberto, eu entendo que isso pode ser novo para o senhor. De fato, começou não tem muitos anos, mas estamos num trabalho importante para diminuir as filas do pós vida. Inclusive, agora não é mais necessário ter um sacerdote, basta selecionar a religião que o senhor deseja aqui no meu celular, que o senhor já entra para ela. Sem pendências. E o melhor é que na maioria temos garantia de um lugar bom para descansar.

A moça mostra o celular para Alberto e passa o dedo mostrando várias religiões e seus tempos de espera. O senhor estava perplexo e o pássaro se esforçava para ver a pequena tela na mão da jovem. Mesmo tendo uma excelente visão, a ave não via nada além de uma tela branca.

— Olha, eu já sei o que está acontecendo aqui, é algum tipo de brincadeira. Cadê as câmeras? Minha neta faz muito disso, ela grava e põe na internet. Mas ó, vou brincar, não estou fazendo nada mesmo, ao menos vou me distrair um pouco. E aí, como funciona?

— Bom, basta o senhor selecionar o quadradinho ao lado da religião que o senhor desejar. Lembrando que algumas tem reencarnação. Caso o senhor desejar não retornar mais para o mundo dos vivos, é só me falar que eu filtro para o senhor.

“Sai daí Alberto! Paga esse treco em outro lugar, essa moça não é legal não!”.

— Ah não, com certeza não quero voltar! Como falei, quero descansar pra sempre.

— Então pode deixar que vou alterar a listagem aqui, só um minuto. Pronto, pode selecionar o que o senhor considerar melhor. O tempo da fila está ao lado do nome da religião. Fique tranquilo pois não ofereço nenhum perigo, como alguns podem pensar, principalmente os bisbilhoteiros.

“Tá… ela está me escutando. Droga”.

— Hmm, olha só, Zoroastrismo. Tem bem pouca gente na fila hein. Mas já ouvi falar dela, hein.

— Ah, o senhor gosta dos clássicos! Perfeito, basta selecionar e já será parte.

O senhor então selecionou a caixinha ao lado do nome da religião. O pássaro não perdeu tempo, deu mais um voo parabólico de volta para a fachada do prédio. A moça virou o celular para si, concluiu a operação e guardou o celular. Agora, ela e Alberto se olhavam sorrindo. Alberto parecia ter se divertido bastante até que sua pasta escorregou de seu braço e caiu no chão aberta, apenas para o vento espalhar as folhas.

O pássaro, do alto da fachada, observou a vinda de um ônibus. Observou também que neste ônibus haviam entrado vários passageiros que estavam aguardando em uma fila. No entanto, um destes passageiros estendeu a mão para o motorista para entregar o dinheiro, já que neste ônibus não havia o cobrador. A ave observou que quando os olhos do motorista encontraram o dinheiro, um papel de Alberto voou para o meio da rua. Quando os olhos do motorista se fixaram no papel voando em sua frente, se desviaram da pista, novamente, para olhar para o troco. “Preciso pegar o papel!”, pensou o pássaro, mas Alberto foi mais rápido e agarrou o que havia perdido. Mais rápido, então, foi o encontro de Alberto com o ônibus. “Alberto!”, o pequeno animal alado não poderia estar mais desolado. Seu pequeno coração havia se compadecido daquele grande humano e agora batia mais rápido do que o normal.

Um pequeno círculo de pessoas se formou ao redor de Alberto enquanto alguns chamavam a ambulância. A moça estava no círculo observando o celular. O pássaro desenhou uma reta no ar e pousou do lado daquele homem que não conhecia, mas que considerava agora um amigo. O pequeno ser sentiu então que alguém se agachou ao seu lado.

— Não se preocupe, ele acabou de entrar em um lugar melhor. Como eu disse, a fila é bem mais rápida e agora temos menos uma alma na fila do Catolicismo Apostólico Romano.

Se pudesse, naquele momento, o pássaro teria expressado uma feição de profunda frustração e consternação, mas só conseguiu voar novamente. Voou atordoado e foi se encontrar com os seus.

Pelo resto do dia voaram livres pelos céus, sem espera, sem fila e sem religião.

Antonio Core
Enviado por Antonio Core em 03/06/2024
Código do texto: T8077975
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