SCARAMOUCHE Na Maior Enchente da História do RS
Eu, Scaramouche, com mais de 80 anos, já vi muito nesta vida, em 1970 quando lutava no Peru tive que sair do hotel às pressas, pois minha cama estava se movendo no maior terremoto vivido no Peru, quando mais de 50.000 pessoas morreram. Ao velejar num barco chamado de Dunga, no meio do Rio Guaiba, sofri um vendaval que arrancou partes do veleiro que virou e ficou com o casco para cima, agarrei-me por baixo porque através do casco não tinha onde agarrar-me, as ondas ficavam mais de meio metro acima da minha cabeça, mas sobrevivi.
Mas nada se compara à terrível enchente que assolou o Rio Grande do Sul em 2024. Nem mesmo a famosa enchente de 1941 foi tão devastadora. Esta catástrofe não poupou ninguém e envolveu todo o estado, deixando um rastro de destruição e dor.
Lembro-me claramente do dia em que a água começou a invadir nossa casa. Em questão de minutos, o nível subiu rapidamente até atingir a altura da cintura. Eu e minha esposa, com dificuldade, atravessamos duas quadras com água pela cintura até sermos finalmente resgatados. Deixamos para trás bens adquiridos com o tempo pois a vida e a saúde eram mais importante.
Após as águas baixarem enfrentamos um verdadeiro calvário. Durante 20 dias, nos dedicamos a limpar a casa e a descartar móveis e objetos inutilizados. A quantidade de coisas acumuladas ao longo dos anos era impressionante. Mais de 30 sacos grandes foram colocados na rua, contendo itens que, de uma hora para outra, perderam todo o valor.
Essa tragédia nos trouxe muitas lições. Percebemos que acumulamos coisas demais ao longo da vida, muitas das quais tinham pouca utilidade. Nos demos conta de que somos donos apenas temporários de nossos bens. A enchente forçou-nos a reavaliar nossas prioridades e a perceber o que realmente importa.
Algo curioso aconteceu durante esses dias difíceis. Nos vimos forçados a conversar mais com nossos vizinhos. A solidariedade emergiu como uma força poderosa. Tentamos ajudar uns aos outros da melhor forma possível, e essa interação nos aproximou mais do que nunca. Formamos uma comunidade mais unida e aprendemos que a vida é infinitamente mais valiosa do que qualquer bem material.
Os bens trazem prazeres momentâneos, mas se a saúde estiver bem, a maior perda é a incapacidade de agir e o desânimo. Aprendemos que a natureza pode ser um desafio imenso quando se revolta, mas enquanto formos capazes de enfrentar os desafios e acreditar em nós mesmos, conseguiremos vencer.
Assim, eu e minha esposa estamos conseguindo alcançar nossos objetivos. Reaprendemos a recomeçar, e essa experiência, embora traumática, nos tornou mais fortes e resilientes. Vivemos agora com mais sabedoria e valorizamos mais as relações humanas e a simplicidade da vida. A vida continua e nós também.
Neri Satter – Maio de 2024 CONTOS DO SCARAMOUCHE