Uma noite o sol vai brilhar
Não mais. Não era mais possível continuar. A bordo, sem qualquer companhia (gostava de viajar sozinho), nos braços uma tatuagem de uma deusa grega, talvez, Atenas. Era perceptível nos gestos e fisionomia contida, que era sua primeira viagem. Conhecia outros lugares, mas para aquele era a primeira, embora, já havia programado para outras épocas, sempre adiadas sem saber por qual razão. Viagem sempre pensada, sempre adiada por circunstâncias quase sempre inexplicáveis.
Por vezes marcou viagem com expectativa de não acontecer. A considerar a companhia era quase certo às últimas horas ainda haver surpresas. E supresas sempre haviam. E tudo acontecia, menos o combinado.
Estranho, pensou consigo, como as coisas acontecem independente de nossas vontades. Pouco importa se não desejo mais viajar, se não quero mais entrar nesse avião. Nada do que eu possa desejar, nada, absolutamente nada, deixará de acontecer somente porque não desejo. Outras pessoas, nesse mesmo avião, viajarão. O avião irá decolar queira eu ou não! Ao pensar nas circunstâncias e consequências que independem de sua vontade, o sorumbático passageiro, se deu conta da própria pequenez de sua existência quando colocada frente a frente com a realidade do mundo.
Uma passageira passa e ele olha. " de onde vem essa pessoa, que livros já leu, gosta de cinema, teatro?", fez essas essas perguntas. Ouvir os passos da mulher que se sentara na poltrona atrás da sua, despertou a curiosidade de se perguntar "como é ter uma vida onde se ouve o próprio passo, o eco do toque da sola do sapado no contato com o piso?" Sem pensar numa resposta, abriu um pequeno livro de bolso.
Estava claro, no entanto, que, depois de se reter num pensamento que não levava a conclusão alguma, se dispôs, como quem se dispõe a matar a sede mesmo com um copo de vinagre, que não abriria mão, nunca abria mão, da possibilidade de se aventurar numa viagem só concebida no pensamento. Conceder -se essa possibilidade, mais que qualquer outra conquista, essa peculiar possibilidade, ao contrário de tantas outras vividas, essa, em particular, era como uma nova retomada de sua vida. Era como se tudo que já vivera, tudo que já ouvira, não pudesse, para que tudo tivesse novos sentidos, novos significados, era como se viver ou reviver algo já experienciado não pudesse dividir, para não se somar, ao que estava disposto a correr o risco. Correr novos riscos, novas experiências, era disso que precisava. Estava disposto. Estava mais que disposto. Retoma a leitura suspensa no mesmo instante que a mulher sentou -se logo atrás .
Ver os pássaros da janela, cena jamais reverenciada, cena para ele inexistente porque nunca se deu ao interesse às coisas corriqueiras, não. Todavia, por alguma inexplicável razão , deu-se por dedicar parte de seu dia, sem, no entanto, sem se deixar envolver, deu-se por contemplar situações antes jamais merecedoras dos seus olhos. Era, naturalmente, um sujeito avesso às convenções. Não gostava de eventos badalados. Não gostava de festas. Era dedicado às coisas simples e sem visibilidade. Não era misantropo, só gostava da vida reclusa e sem convenções. Por isso, nunca se dera ao trabalho de observar o voo dos pássaros, o colorido das flores, nem, e isso menos ainda, se deter para ouvir o canto dos pássaros. Era um sujeito, por assim dizer, pragmático. Cada coisa tinha sua própria razão de ser e isso lhe bastava. Intransigente com as coisas efêmeras, isto é, não se permitia deter-se, nem por etiqueta social, a momentos, por mínimos e insignificantes que fossem, nos quais, ou melhor, dos quais, a melhor possibilidade era o aborrecimento. Era um homem ciente do seu tempo; cada momento, cada evento, tinha sua própria razão. Por uma quase religião, tinha por habito reter-se em pensamentos nunca revelados. Era como se desconectasse de tudo exterior. Fica assim por horas. Dizia que não era meditação, que para meditar é preciso conectar-se com outra "realidade" e que dessa maneira não era diferente de estar no mundo real. Era uma falsa saída dessa realidade para entrar em outra. O que ele fazia era como se saísse do seu corpo. Era como se tudo que lhe dava sentido de vida saísse do seu corpo, inclusive seus sinais vitais.
No espaço traçado com leves movimentos das mãos, uma rosa se pode vislumbrar. Não disse nada; fechou o caderno e saiu e sumiu na multidão. Era noite, o Sol vai brilhar.