O DILEMA DO PRESIDENTE

Dr. Veloso de Castro, famoso psiquiatra forense, mora na cidade do Rio de Janeiro e recebeu, por Email, um estranho convite para realizar um atendimento psiquiátrico na Capital da República. A princípio duvidou do texto, não somente pelo inusitado do método, mas, principalmente, pelo teor da mensagem, repleta de mistério. Analisou detidamente o texto, o endereço eletrônico do remetente, demais detalhes; a dúvida, contudo, não o abandonava. Passou, enfim, para outras mensagens e outros objetos de compromisso profissional.

Passado algum tempo, porém, acendeu em sua mente a curiosidade e, novamente voltou a ler e reler o estranho Email. Constatou que em sua agenda tinha outros compromissos no Distrito Federal, justamente na semana a que se referia a data da mensagem recebida. Movido pelo desejo de, pelo menos, tentar entender o que lhe propunha o texto, num impulso, Dr. Veloso decidiu anuir ao pedido. Decidiu apostar.

No teor da mensagem se destacava o seguinte texto: Prezado Doutor Veloso. O convite que lhe faço é para um atendimento muito especial e muito importante; esta ação requer extremas cautelas e a máxima discrição. Peço escusas antecipadamente, certo de sua compreensão e anuência, pois a causa é deveras relevante e urgente. Farei contato com o Senhor no interior do Museu Nacional da República, aqui em Brasília, às catorze horas e trinta minutos, do dia dois de janeiro próximo vindouro. Seu trabalho será convenientemente recompensado. Aguardo sua confirmação. Obrigado. Laurosside.

A secretária do Dr. Veloso tomou as devidas providências de resposta, de transporte e estadia em Brasília. Já em seu destino, logo após o almoço, rumou para o Museu Nacional da República, uma imponente cúpula, com cerca de vinte e seis metros de altura, às margens do Eixo Monumental. Adentrou e logo foi surpreendido pela esplêndida arquitetura do local: quatro pavimentos, subsolo, rampas, mezanino. Uma obra de extremo apuro do arquiteto João da Gama Filgueiras Lima, o Lelé, recentemente falecido em Salvador, na Bahia.

Já na sala principal de exposições do Museu, Dr. Veloso se deteve diante dos quadros que registravam, com impressionante rigor científico, a imensa obra do arquiteto Lelé. Havia, porém, uma forte tensão no semblante sisudo do psiquiatra, que o forçava, de tempos em tempos, a desviar os olhos das etiquetas para mirar ao seu redor, como que esperando por uma súbita surpresa.

De repente, uma mão toca seu braço. Teve um calafrio, porém, logo se refez ao ver a seu lado um homem de baixa estatura, atarracado, cerca de quarenta e cinco anos que, também, olhava em volta, falando sottovoce.

- Laurosside, Senhor. Seja bem-vindo - Disse-lhe o homem, estendendo a mão direita.

- Olá, como vai? – Anuiu com cortesia o Dr. Veloso.

O aperto de mãos era firme e sincero.

- Gostaríamos de recebe-lo de outro modo, com a devida deferência, porém, acredito que o Senhor vai levar tudo isto na devida conta. As circunstâncias exigem esses protocolos. – Sorria, tentando ser acolhedor e convincente.

Veloso, em sua ampla experiência forense, percebeu que Laurosside não estava nervoso, mas preocupado e embaraçado; por seu turno, assumiu uma postura tranquila e condescendente, sabendo que iria, dali pra frente, ter que seguir instruções secretas.

Laurosside, de modo inquieto, olhava em volta; constatando que a sala estava vazia, naquele momento, informou a Veloso, com voz quase inaudível, puxando de um dos bolsos um pequeno pacote: - Doutor, aqui tem um adiantamento de seus honorários. Depois virá a outra parte. Ok?

Veloso recebe o pacote, guardando-o em seguida, sem conferir o conteúdo. Laurosside continuou: - Logo mais, às quinze horas, passará um ônibus de turismo aqui pela Via S1. O Senhor deve apanhar este ônibus em frente à Catedral de Brasília, que fica aqui ao lado do Museu. Por favor, participe do passeio, - insistiu Laurosside, acrescentando: - O tíquete de embarque está no envelope que lhe dei. Siga até o prédio do Congresso Nacional. Ali o Senhor deve descer do ônibus, juntamente com os demais turistas. O guia irá leva-los pela Praça dos Três Poderes, mostrando toda a Explanada. O Senhor deve permanecer no final do grupo, para poder sair dali desapercebido.

Veloso ouvia tudo em silêncio, ora assentindo com a cabeça, ora sorrindo cordato. Tentando aliviar um pouco o clima um tanto tenso, Veloso, que observava Laurosside de modo atento e interessado, especialmente o apuro nas roupas de seu interlocutor, solta a queima roupa: - O senhor deve ser militar!...

- Está assim tão evidente? – Indagou Laurosside surpreso e sorridente.

- Não, nem tanto, somente para quem tem alguma experiência...

- Bem, sua experiência e notoriedade são bem conhecidas por aqui e, se não me engano, sua especialidade profissional exige que tenha boa memória visual. Correto?

- Sim, isto é uma característica de todo bom psiquiatra.

- Pois bem, logo mais a gente vai se reencontrar, porém, eu estarei vestido de forma diferente; espero que me reconheça na multidão.

- Claro, eu o reconhecerei. – Confirmou o doutor com firmeza.

- Eu virei ao seu encontro, não olharei para o senhor, passarei, como se não o conhecesse. Ok?

- Perfeitamente. – Anuiu Veloso com convicção.

- Bem, ao descer do ônibus o Senhor estará diante do Palácio do Planalto. Disfarçadamente, afaste-se do grupo e dirija-se até o prédio. Dê a volta por trás dele, pela Via N2, até encontrar o primeiro grande portão; há outros portões ao longo da via, igualmente grandes. Toda a parte posterior do prédio do Palácio é cercada por altas muralhas de concreto. Ao lado deste primeiro portão há uma porta de metal. Mesmo parecendo estar fechada, ela estará somente encostada. Entre ali e feche a porta por dentro, com o ferrolho. Eu o estarei esperando.

Laurosside, ao ver que o psiquiatra simplesmente concordava com tudo o quanto ele dizia, e tentando perscrutar a perplexidade de seu convidado, disse em tom descontraído: - Tudo isto parece coisa bem simples, parece brincadeira, não é verdade? O problema é que ninguém pode saber de sua presença aqui em Brasília.

- Fique tranquilo, farei tudo conforme suas instruções. – Concluiu Veloso, enquanto apertava a mão de Laurosside, em rápida despedida.

Laurosside se afastou rapidamente, desaparecendo pela rampa que dava acesso à saída do Museu. Dr. Veloso aguardou alguns segundos e saiu pela mesma porta por onde Laurosside havia saído. Olhando à sua direita, localizou a grande Catedral Metropolitana Nossa Senhora Aparecida. Ali em frente deveria tomar o ônibus de turismo que o levaria à Praça dos Três Poderes, o que, realmente, não tardou em acontecer. Veloso tomou o ônibus, juntamente com outros turistas que tinham o mesmo destino.

O curto trajeto foi percorrido em cerca de vinte minutos. O veículo parou e todos desceram, acompanhando o guia turístico. Veloso, conforme o combinado, desceu por último, postando-se no final do grupo.

Em determinado momento, avistou diante de si o imponente prédio do Palácio do Planalto, local onde despacha o Presidente da República. Era a sua deixa para afastar-se do grupo. Quando tentou a manobra de retirada, cruzou com um oficial do Exército brasileiro que caminhava apressadamente na direção oposta. Num primeiro momento Veloso não reconheceu o personagem com quem cruzara. Alguns passos adiante, parou por um momento, virou-se e logo percebeu, por toda a aparência, que deveria ser Laurosside. Sim, era ele.

Dr. Veloso, então, já totalmente empolgado pela aparente aventura que estava vivendo, e levado pelas surpresas que se sucediam, atravessou a Via em direção ao Palácio. Seguiu pela calçada lateral até chegar à Via N2, por trás do edifício. Foi recordando atentamente todas as instruções de Laurosside, virou à esquerda, e logo se viu diante do primeiro grande portão por ele descrito. Entre intrigado e receoso, olhou em volta, e aproximou-se da porta metálica situada junto ao portão. Ali estava ela, conforme instruções de Laurosside. Empurrou de leve; a porta cedeu, ficando entreaberta. Veloso alongou o corpo e espiou para dentro. Não havia ninguém. Entrou. Fechou a porta com o ferrolho e se dispôs a procurar por alguém, já que tudo parecia muito deserto.

O ambiente interno estava fracamente iluminado e, a bem da verdade, parecia ser um subterrâneo. Longos corredores se estendiam em várias direções, ladeados por portas fechadas. O inusitado do local e o silêncio reinante, por um instante quase fizeram Veloso desistir da empreitada, levando-o a procurar novamente a saída. Estava nesta quase angústia, quando, de um corredor lateral surgiu a figura de Laurosside, fardado a caráter, no melhor estilo militar.

- Ah, então você é mesmo um militar! – Arrematou Veloso com indisfarçável alívio e continuou: - Se soubesse disto com certeza, tê-lo-ia tratado com o respeito que merece!

- Não tem problema... – Confirmou Laurosside num sorriso.

- Onde estamos?

- Palácio do Planalto. Aqui entramos pelos fundos. Vamos, por favor. – Convidou Laurosside.

- Neste prédio há muitos ambientes. Há uma pequena sala na qual iremos encontrar a pessoa que nos interessa: o Presidente da República.

- Nossa... Como assim, o Presidente da República? – Indagou Veloso, visivelmente surpreso.

- Sim, ele é o paciente que o Senhor irá tratar. Espero que nos perdoe a surpresa e o mistério, e entenda toda a cautela que estamos tendo para tratar deste assunto.

- Ora bem... Tudo bem. Vamos lá. – Lamentou Veloso, tentando ocultar uma ponta de contrariedade.

- Por aqui, por favor. – Indicava Laurosside, seguindo pelos corredores até uma escadaria, que os conduzia para fora do subterrâneo. Atravessaram um bem cuidado jardim e se encontraram frente a uma grande porta de vidro, que Laurosside abriu utilizando cartão magnético. Alguns corredores se sucederam, até chegarem ao elevador, que os conduziu ao andar imediatamente superior.

Próxima à saída do elevador estava a pequena sala, à qual se referira Laurosside. A porta ostentava a placa: “Sala de audiências”. Laurosside abriu a porta, dando passagem ao Dr. Veloso: – Entre, por favor.

Veloso avançou sala adentro, ficando cara-a-cara com o Presidente. Ali estava ele, com sua indefectível bermuda jeans, havaianas e camisa amarela da Seleção Brasileira de Futebol.

- Como vai, doutor? Vamos entrando. – Disse o Presidente em tom formal e um tanto distante.

- Presidente... Estou bem, e Vossa Excelência? – Veloso estende a mão, enquanto observa o homem em todos os quadrantes, tentando formar para si uma primeira impressão, conforme lhe ditam as regras de sua profissão forense. À primeira vista, o Presidente lhe pareceu de menor estatura e mais magro do que imaginava. Não lhe fugiu, porém, à observação o semblante preocupado de seu inesperado paciente.

- Tudo bem. Vamos nos assentar. – Convidou o Presidente, indicando uma pequena poltrona, em frente à mesinha de centro. – Aceita um café, um chá ou uma outra bebida?

- Obrigado. Vou aceitar um cafezinho, por favor.

Enquanto Laurosside providenciava o café, o Presidente tentava manter um clima ameno, tecendo comentários informais sobre o clima seco de Brasília, sobre a viagem do médico, sobre seu local de hospedagem, ao que Dr. Veloso anuía com comentários não menos vagos e discretos, sabedor que era de que, nesses primeiros momentos do encontro se jogam os verdes para se colher os maduros. Jogos de aproximação. Laurosside não se imiscuía nas conversas, mantendo-se a discreta distância. Acompanhava tudo, porém, ora com sorrisos, ora com involuntárias franzidas de cenho. A certa altura, porém, levantou-se, fazendo clara menção de se retirar da sala.

- Gostaria que o Tenente Coronel Laurosside ficasse. – Atalhou o Presidente em tom de ordem.

- Claro, Senhor. Estou às suas ordens. – Prontificou-se Laurosside, quase batendo continência.

Veloso analisava cada gesto, e cada mínimo detalhe da situação. O Presidente havia se transformado, por fim, em simples paciente, inteiramente submisso e dependente de seu parecer técnico. Não deixava, contudo, transparecer a volúpia que, por momentos, insistia em subir de seu subconsciente, por tratar tão alto mandatário.

Laurosside voltou a sentar-se próximo aos dois protagonistas da cena, e logo se apressou em declarar: - Dr. Veloso, estou profissionalmente fardado, como militar, pois pretendo com isto indicar que o assunto que nos traz aqui é estritamente oficial. Este é um assunto de Estado.

- Isso mesmo. Antes de começarmos, – disse o Presidente, fixando Veloso nos olhos, - gostaria de saber se o Senhor está realmente disposto a agir com toda a exatidão e profissionalismo? Seus honorários, apesar de não terem sido antecipadamente negociados, creio que serão amplamente compensatórios.

- Excelência, não trato honorários como coisas de princípio. E quanto à minha postura profissional, pode o Senhor ficar tranquilo e certo de que terá todo o meu empenho e sinceridade. – Contestou Veloso com seriedade.

- Bem, não poderíamos esperar outra coisa de um médico com as suas credenciais. – Completou o Presidente com um largo sorriso.

- Porque não escolheram um psiquiatra da carreira militar? – Indagou Veloso. - São ótimos profissionais.

Laurosside se interpôs com convicção: - A cúpula militar e os nossos aliados fazem questão de um laudo técnico sobre a saúde mental e psicológica do Presidente. Há grandes e urgentes decisões a serem tomadas. Este laudo servirá como o principal suporte a tais decisões.

- O que querem dizer com saúde psicológica? – Questionou Veloso, já tentando alinhavar alguns passos de seu trabalho.

- O que eles querem saber é se estou louco, ou não. – Atalhou o Presidente. - E este, aliás, também é o meu dilema. Se eu for declarado psicologicamente sadio, minha decisão será respeitada e acatada, caso contrário... – Afiançou o Presidente, deixando manifesto em seu semblante o intenso tumulto de seu interior e mostrando a contrariedade que o invadia, pelo fato de haver aliados, técnicos de governo e militares de todas as Forças que duvidavam de sua sanidade de espírito.

Dr. Veloso contemporizou a conversa, contornando com habilidade e presença de espírito a questão que lhe era exposta. Apesar do quase choque que teve com a intempestiva revelação do Presidente, o médico manteve o autocontrole, apelando para técnicas de respiração do yoga, que centram e mantêm corpo e mente em estado de calma e tranquilidade.

Na sala, sobre a mesa, havia sido instalado um aparelho de uso quase diário no consultório do Dr. Veloso, um PsichoTest. Desde que entrara na sala o psiquiatra havia notado a presença inconfundível do equipamento, pois se trata de uma máquina de porte avantajado.

- Belíssima máquina. – Comentou o médico, vivamente interessado.

- Sim. O Governo adquiriu este equipamento para situações como estas. – Informou Laurosside.

- Posso ligar o aparelho?

- Claro, fique à vontade. Sabemos que ele é de seu uso diário.

- Sim. Vamos ver. – Pressionou o botão; a máquina emitiu os ruídos de praxe, energizando o visor. Continuou o psiquiatra: - Este equipamento já vem de fábrica com uma série de testes psicológicos e de avaliação. Vou selecionar alguns para iniciarmos os trabalhos.

O Presidente, que até então se mantivera um tanto afastado, aproximou-se, sentando-se numa das cadeiras postas diante do PsichoTest. Na cadeira ao lado estava o Dr. Veloso.

- Começamos? – Perguntou o Presidente.

- Sim, num momento. – Respondeu Veloso, enquanto ainda configurava a máquina. Em seguida, ajeitando-se na cadeira informou: - Vamos começar.

- Presidente, esta máquina contém alguns testes de avaliação de transtornos, de ansiedade, sofrimento mental, fatorial de personalidade, etc. Vamos utilizar alguns deles na sua análise. Ok? Quando completarmos nosso trabalho, o equipamento emitirá o laudo psiquiátrico que o Senhor precisa. O documento será composto e impresso pela própria máquina, com alguns acréscimos que eu mesmo farei. Os laudos psiquiátricos, normalmente, são emitidos após uma série de consultas e entrevistas. No seu caso, porém, creio que possamos chegar a uma conclusão ainda hoje. Certo? Tudo vai depender de como se desenrolarem nossas avaliações. Um ponto positivo a nosso favor é que já temos aqui em mãos os resultados de vários exames laboratoriais feitos pelo Senhor, seu histórico médico, indicações de sintomas, comportamentos. – Dizia isto enquanto folheava a papelada. – Vejo aqui também que o Senhor já faz tratamento medicamentoso adequado ao seu estado.

Voltando-se para o paciente, Veloso iniciou: - A pergunta básica de todo médico é esta: Como se sente? Adianto-lhe que as queixas mais comuns em meu consultório de psiquiatria são sobre esquecimentos, alucinações, medos, insônia, tristeza, agonia, etc. Sente alguma coisa assim?

- Sim, tenho alucinações, ouço vozes...

- Bem, vamos colocar nossos capacetes, para que o aparelho comece a fazer os registros. – Dizendo isto ajustou em sua cabeça o capacete de examinador, conectando os cabos, fazendo o mesmo no paciente. O capacete continha sensores que colocavam em sintonia as ondas cerebrais de ambos, formando uma complexa rede de informações interiores, imediatamente gravadas pelo cérebro eletrônico.

A aparente tranquilidade e segurança do Presidente contrastava com os elevados níveis de ansiedade que, imediatamente, começaram a ser registrados pela máquina. Respiração, pressão sanguínea, pulso agitado e outros indicadores mostravam a intensa batalha que se travava em seu interior.

Numa primeira observação, Veloso notou que a máquina já expunha no visor seu primeiro achado: CID F41.1 – Ansiedade generalizada caracterizada por medo ou preocupação excessiva persistente.

Logo abaixo, outro biomarcador relevante apareceu na tela: RNA, apontando tendência à depressão, risco de desenvolver depressão severa no futuro, além de risco de desenvolver distúrbio bipolar.

Com perguntas profissionalmente bem direcionadas Dr. Veloso ia analisando sintomas psicóticos, metodologias das alucinações narradas, as distorções da realidade, os estados de consciência, memória, humor, linguagem, etc.

Não fugiam à observação atenta do profissional os relatos de surtos psicóticos do paciente ao confidenciar alucinações, delírios, ansiedade, agressividade, pensamentos e comportamentos desorganizados, discurso confuso, de ódio ou incoerente, narrando histórias que não existem, alterando pensamentos e comportamentos.

O Presidente apresentava sintomas, definidos em psiquiatria como positivos. Os relatos se sucediam, narrando delírios, pensamentos e situações irreais, alucinações que faziam o paciente ouvir vozes, ver coisas não verdadeiras, ter pensamentos desconexos e sem sentido, além de alterações comportamentais bastante radicais, levando a excessos de ansiedade, agressividade e impulsos mal controlados.

Observada a idade do paciente, Dr. Veloso concluiu que, a paranoia que ia se manifestando, mostrava sintomas típicos, com os quadros de alucinações narrados, as sensações de perseguição, delírios, falta de emoção, isolamento social e fala confusa.

Tudo se enquadrava na chamada fenotipagem digital, já que o PsichoTest tudo registrava e já começava a fechar um possível diagnóstico médico psicopatológico.

Conforme avançava a consulta, Veloso ia percebendo melhor os traços da psicopatia de seu paciente: manifestava dificuldade de sentir empatia ou remorso, se vangloriava de comportamentos manipuladores ou mentirosos.

A condutopatia se materializava por meio do trabalho hábil e cirúrgico do médico: fortes comprometimentos da afetividade, insensibilidade, indiferença, egoísmo, além de claros desvios de personalidade.

Vinham à tona, com muita frequência, os sinais de falta de empatia, de comportamentos impulsivos, de falta de controle da raiva, de ausência de remorso.

À determinada altura o Presidente interpelou o examinador: - Quer saber mais sobre os meus sintomas?

- Sim, por favor. – Anuiu o Doutor. Fique à vontade. O que o senhor sente?

- Tenho alucinações. Me vejo derrotado nas eleições. Acho que fui enganado. É que eu não gosto de perder nisso daí...

- Mas as eleições já se encerraram. O Senhor foi derrotado de fato. – Corrigiu o médico com receio, tentando um contraponto.

- Jamais! – Argumentou o Presidente, um tanto alterado.

- Sim. Como são essas alucinações?

- Uma cena que eu vejo, e que me deixa furioso, é a de eu estar sendo derrotado nas urnas. Fraudaram. Mexeram nas urnas. Sobre isto, os militares dizem que as alucinações que tenho são por conta do meu estrito dever militar. Tenho que vencer, custe o que custar. Não posso me acovardar. Preciso ser reeleito...

Dr. Veloso observava atentamente as colocações do paciente, reconhecendo nelas os sintomas de sua psicopatia.

- Vê mais alguma coisa?

- Sim. Veja a minha mão... – Gritou alarmado, estendendo a mão direita, mostrando três marcas incríveis. As linhas da palma de sua mão formavam o número 666. Veloso sentiu o sangue gelar nas veias. Em toda a sua vida profissional, médica e forense, nunca havia visto estigmas tão claros e aterrorizantes. Como cristão evangélico, e de origem judaica conhecia muito bem o significado de tais marcas.

- Está vendo isto? Este é o sinal da minha loucura? Serei eu a besta? Espero que o senhor possa encontrar respostas para tudo isto. Em muitos momentos eu ouço vozes de apoiadores gritando: - Quem é semelhante à besta? Quem pode ser maior que a besta? Eu gosto disto. – Concluiu com um sorriso indefinido.

- Fique calmo. Vamos achar um meio. Descreva melhor suas visões.

- São coisas do Apocalipse. Conhece?

- Não muito. Por acaso seriam sobre a batalha do Armagedom?

- Essa o Senhor conhece? É mais ou menos isto; esta batalha, porém, será travada mais adiante. Será a luta do bem contra o mal. Está na Bíblia. Apocalipse 16:16.

Veloso sentia uma forte vibração nos fones de ouvido. A sintonia dos cérebros estava próxima. Precisava se apressar.

O Presidente parecia estar em transe. – É a luta contra o mal, Doutor. A luta começou com as eleições em segundo turno. O mal avançou. Eu preciso vencê-los. Isto tudo virou um pesadelo. Apurando o ouvido, insinuou num sussurro: - Agora, eu estou ouvindo... Eles estão gritando: - a besta fracassará! É mentira!

Dr. Veloso, ao mesmo tempo em que tentava acalmar seu paciente, mexia nervosamente nos controles da máquina. Em dado momento perguntou: - O que o Senhor sabe a respeito dessas marcas que tem na mão direita?

- Logo que elas começaram a se formar procurei ajuda numa organização judaica, pois tudo isto está previsto na Bíblia. Fiz um curso com eles; a professora me esclareceu sobre algumas coisas da cabala judaica, e como ler e interpretar o número 666, que corresponde à soma dos números atribuídos a cada uma das letras do alfabeto hebraico. Estou certo de que eu sou o grande dragão, estou imaginando que sou a besta do Apocalipse, e que a história está se repetindo agora, aqui em Brasília.

Dr. Veloso acompanhava o PsichoTest e fazia anotações, furiosamente. Acrescentou sem muita convicção: - Acredito que não haja relação de uma coisa com outra...

- Fiquei sabendo que o Apocalipse significa revelação. As minhas visões são uma revelação. Eu sou o escolhido, o ungido. – Continuou o Presidente, com voz cada vez mais rouca e estranha. – Grandes dragões, grandes bestas... A cúpula militar diz que tem explicação mais racional...

- Qual seria essa explicação?

- Capítulo 13, versículo 18. Grande besta. 666. – Balbuciava ele olhando para o chão.

- Isto é importante para o Senhor?

- Acontece que São João, que escreveu o Apocalipse, era cabalista. Interpretava o Livro, somando os números de cada letra do alfabeto hebraico. Tudo para saber quem era o anticristo.

- O Senhor sabe calcular os números pelas letras do alfabeto hebraico?

- Sim. Aprendi no curso. Nero foi a grande besta no tempo de Roma. A história se repetiu com Hitler, na Alemanha. As somas dos números de cada letra do alfabeto hebraico, que formavam seus nomes, sempre deram 666. Agora tudo se repete comigo, aqui em Brasília. – Levantou-se da cadeira, fitando o teto. - Vou cumprir o meu destino, e destruir o mal. Conto com meu exército; já armei mais de um milhão de CACs. Tenho os milicianos comigo, são meus parceiros, estão armados e operam com o consentimento das forças de segurança do Estado. Todos estão comigo! O mal não terá chance!

A exaltação do Presidente atingiu um nível assustador, obrigando Laurosside a intervir, fazendo-o sentar-se e beber um pouco de água.

- Respira, Presidente!

- Tenente Laurosside, - ordenou o Presidente. - Chama o pastor Mala Falha para explicar melhor sobre essa passagem do Apocalipse. – Dizendo isto baixou exageradamente a cabeça, levantou a mão direita espalmada, deixando à mostra a marca abominável do número 666 e assim se manteve.

Veloso estremeceu, tentando manter o controle. Laurosside saiu por uns instantes e voltou acompanhado do pastor Mala Falha, que já entrou na sala vociferando, com tom de voz muito alterado. Embora Mala Falha tenha sido inúmeras vezes acusado de ser um falso profeta e mercador da fé, utilizava este malfadado título em seu favor, mostrando ao Presidente que fazia parte da trindade golpista: de um lado o dragão Laurosside, de outro a grande besta na pessoa do Presidente e, por fim, o falso profeta Mala Falha. Tudo descrito no livro do Apocalipse de São João.

- Falo para você, meu Presidente, o ungido. – Gritou o pastor, gesticulando.

- Meus amigos, - iniciou Mala Falha - cabala significa recepção. O nosso Presidente foi o escolhido para ser o Receptor. Esta escolha brota do inconsciente coletivo da população brasileira, mais exatamente do coração do Povo de Deus. Esta revelação partiu da irmã Dama Ares, que já teve o privilégio de ver o próprio Jesus no alto de uma goiabeira. O Senhor mesmo, meu Presidente, já teve a oportunidade de ir a Israel, de avistar-se com o primeiro-ministro Benjamim, e de lhe informar que era o atual Receptor, com poderes de explicar em detalhes a relação de Deus com o Universo, conforme ordens de nosso valioso guru Olav do Kharai, o esclarecido. E continuou falando: - Conforme nosso guru Doutor Olav, a cabala registra o substantivo grego “θηρίον” (térion) que significa “Besta”.

O Presidente, num pulo vociferou: - Sim, pastor, nas minhas visões ouço as multidões gritando: Térion! Térion! Outros gritam: Mito! Mito! Aparece, também, às vezes, o próprio Mao Tse Tung, me dizendo que devo ser “o grande timoneiro” ... Vamos, meu povo, quem decide para onde vão as Forças Armadas são vocês! – E abanava para o infinito.

- Sim, meu Presidente, vou explicar tudo! – Continuou Mala Falha. - O Senhor é o grande dragão, a grande besta. Estava na praia, esperando por seus aliados (Ap. 12:18). Ali o senhor viu surgir duas outras bestas: uma que veio do mar, na pessoa do Comandante da Marinha, e outra que veio da terra, na pessoa do general Baga Reto. A besta que subiu do mar é a que encarna os poderes do caos, das águas e atrai a admiração geral por suas vestes brancas. Ele está com o senhor, ele vem com suas tropas para honrar a grande besta. Estas duas bestas não vieram de cima, do céu. Não! Vieram dos homens, do mar, que é a sociedade, e da terra, que é o mundo dos homens.

Mala Falha continuava esbravejando, como se estivesse pregando diante de uma plateia de milhares de pessoas. O Presidente ouvia a tudo, mantendo sua mão espalmada e levantada.

- A besta que surgiu da terra é semelhante a um cordeiro, porém, fala como um dragão. Tem aparência de cordeiro, porém, é um dragão. Suas palavras vêm do próprio grande dragão, o sedutor dos homens. Está lá no Apocalipse 13:11. A tarefa desta segunda besta é convencer as pessoas de que tudo o que vêm da grande besta é admirável e honesto. Tudo o que for dito contra esta segunda besta deve ser repudiado! Conforme está definido, será ele que organizará as frentes mais importantes do nosso Estado Miliciano: os políticos apoiadores, os militares, os policiais e o que a esquerda chama de milícias digitais. Há que se derrubar o sistema eleitoral brasileiro corrupto, e restaurar o poder da besta, como era anteriormente, sob seu governo.

Continuou: - Esta segunda besta está diretamente ligada à primeira, que veio do mar. Quem adora a primeira, obrigatoriamente irá adorar a segunda e à grande besta, que é o senhor, Presidente. Não demos ouvidos aos que nos acusam de enganadores!

- Outros acusadores dirão que as linhas mestras de sua mão direita em forma de 666 são marcas que o Diabo deixa em seus adoradores (Ap. 13:16). Não demos ouvidos a isto. A gematria confirma o que estou dizendo.

- Aí estão as quatro linhas sagradas: a linha do coração, da cabeça, da vida e, principalmente a linha do destino, que nos mostra até que ponto a vida de alguém pode ser afetada por circunstâncias externas. Vossa Excelência é o Receptor, o Escolhido, o Ungido. As marcas de sua mão não dependem de seu controle, elas vêm de fora, são impressas pelo inconsciente coletivo do povo, daqueles que o adoram e que querem que o seu governo seja eterno e duradouro.

- E digo e repito, com o autor do Apocalipse: Aqui há sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o número da besta, porque é número de homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis (Ap. 13:18).

- Pela hermenêutica da gematria o número 666, hoje, aponta para o Senhor, meu Presidente. Os cálculos não deixam dúvida: a cada letra do seu nome corresponde um número e uma letra no alfabeto hebraico. Vejam isto, senhores: 112+131+124+146+153 = 666. בּוֹלְסוֹנַרוֹ.

- Homens importantes, políticos, governadores e magistrados podem também receber os mesmos sinais que o senhor tem em sua mão direita. Estas são marcas sagradas de quem luta a favor da besta.

- E digo mais. Se Lalu e Candão são realmente o ponto focal das mesmas forças que outrora fizeram de Nero e Hitler as grandes bestas, então eles são os maiores inimigos do Estado Brasileiro, e precisamos ataca-los com fúria e decisão. O golpe se faz necessário! E hoje nós temos a força em nossas mãos. Vamos retomar o poder!

Repentinamente, o Presidente baixou o braço e fixou Veloso nos olhos. – Agora o senhor entende, porque é tão importante que o seu laudo estabeleça o meu grau de sanidade mental?

O Dr. Veloso, pego de surpresa com a irrupção do paciente e, já tendo os elementos de que precisava para finalizar o diagnóstico, disse, com voz um tanto embargada e insegura: - Bem, não consigo determinar a origem de suas alucinações, mas o que tenho a lhe dizer é que o Senhor está perfeitamente sadio, de corpo e de mente.

Ao ouvir o diagnóstico, o pastor Mala Falha se retirou da sala, em silêncio. O aparelho PsichoTest zunia, pronto para expedir o fatídico diagnóstico. Dr. Veloso digitou algumas palavras, finalizando o documento.

- Ah, isto facilita as nossas decisões sobre a retomada do poder. – Concluiu o Presidente, levantando-se da cadeira e apanhando as três cópias do relatório médico impressos pelo PsichoTest. Dirigiu-se para a porta e saiu da sala, sem mais palavras. Seguia com a mão direita levantada.

Um pesado silêncio encheu o ambiente. Laurosside, vendo-se a sós com o médico, entregou-lhe outro pacote de dinheiro. Saíram da sala, cruzando pelos mesmos corredores.

- Vou deixa-lo. – Informou secamente o Tenente Coronel Laurosside. Um Oficial o acompanhará até à porta.

- O Presidente já foi submetido ao PsichoTest antes, certo? – Insistiu de inopino Veloso.

- Sim. Como descobriu?

- Ele esteve muito calmo durante a maior parte dos exames... Quem o examinou anteriormente?

- Eu mesmo. Fiz um pequeno treinamento...

- E o que concluiu?

- As mesmas coisas que o Senhor. Informei a ele que estava perfeitamente sadio de mente.

- Então, porque me chamaram?

- A cúpula insistiu. Queriam um profissional evangélico e judeu, por ser mais convincente. O senhor preenchia todos os requisitos. Por sorte o seu parecer saiu igual ao meu...

Veloso se deteve por um momento e, com voz baixa, sapecou à queima roupa, ao pé do ouvido de Laurosside: - O Presidente é completamente louco. A máquina não mentiu!

Ao que Laurosside completou, com frieza: - Sim, eu sabia.

- E porque disse que ele estava sadio?

- Para que prosseguisse com o golpe, nos mantendo no poder. Não gosto do Governo que aí está.

- Veloso silenciou, balouçando a cabeça afirmativamente.

Os carrilhões do relógio da Catedral de Brasília cravavam seis horas da tarde, em ponto. Veloso, acompanhado do Oficial, saiu, batendo a porta. Tudo estava consumado.

Jonas Tadeu Nunes
Enviado por Jonas Tadeu Nunes em 11/04/2024
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