Durma bem!
O lugar era amplo, cheirava a incensos e havia um altar repleto de santos, flores, molduras com retratos, velas, pedras, ossos, sementes, frutas, colares, doces e muito mais. Era gostoso, tranquilo, limpo e fresco. Mulheres e crianças dançavam, rodopiavam em círculo e riam baixinho.
Mandaram-me sentar em frente a um senhor cego encurvado que logo fixou em mim seus olhos brancos, segurou minhas mãos e falou:
_ Curiosidade matou um gato.
_ Eu brinquei: O gato era gordo e não cabia atrás da porta.
_ Mas você viaja muito, não dorme, não é?
_ É! Como sabe? Levanto sempre muito cansada.
_ Você tem necessidade de ver, conhecer e saber das coisas e seu espírito viaja por muitos e longe lugares.
_ Por isso você acorda cansada.
_ Humm!
_ E a premonição como vai?
_ Não vai, não quero. Me faz sofrer. Não quero seguir os passos de Cassandra.
_ Não é você quem escolhe.
_ Humm!
_ No seu local de trabalho não há amor.
_ Mas não busco amor lá é só meu trabalho.
Pensei que falasse de amor romântico. Somente dias depois entendi tal sentença. E cada dia mais de trabalho menos amor eu recebo. Não dos meus pupilos, esses me abraçam, me dão balas, brigadeiros, dividem o refrigerante. Mas quanto mais me dedico mais pedras no caminho.
E a frase fatal: "Não há amor lá pra você!" Embaça minha visão e atordoa meus sentidos.
Eu que praticamente, fui órfã de pais vivos a infância inteira tenho tal necessidade de ser amada e ouvir algo contrário me faz repensar sobre o poder das palavras e do amor. E acima de tudo, das ações humanas que podem nos fazer tanto bem ou mal. Eu faço o que precisa ser feito. Jamais deixei de viver o amor, mas algo não se encaixa. Fechei o livro e guardei na prateleira. A biblioteca está um caos. Olho tudo em volta e desanimo. Retiro os óculos e coloco na bolsa. Digo tchau ao sr. Mauro que fecha o portão atrás de mim. E o mistério paira no ar que respiro impregnado de poeira e medo. Um medo perverso que me impede de sorrir e me provoca um aperto no peito, um mau presságio. O caminho tem cheiro de esgoto. E eu continuo tentando respirar e expirar para sair do pesadelo. A cabeça dói. Enquanto ando invoco o conhecimento de meus ancestrais para entender minha caminhada.
Acordo encharcada de suor e meu corpo pesa. Com dificuldade acendo a luz e o silêncio reina. É noite ainda.