O Maniático

Sentava-se sempre no mesmo banco do bar. Era tido como maniático pelos garçons. Na verdade, ele mesmo se considerava assim.

O de sempre Chefe?

O de sempre amigo. Respondeu o velho maniático.

Havia anos que ele frequentava o mesmo lugar. Já há algum tempo não conversava mais com nenhum dos outros frequentadores.

Os garçons mais antigos ainda lembram do tempo em que o velho maniático vinha com sua turma nos fins da tarde. Eram sempre cinco ou seis. Quase todos da mesma idade. Uns apareciam de terno, outros mais informais. Conheciam-se há anos. Aparentavam uma bela e rica amizade.

Isso não significa que não brigassem. Não era raro os garçons e demais clientes presenciarem discussões acaloradas daquela turma. Às vezes até parecia que iriam se esbofetear, porém alguns instantes depois riam e pediam mais uma rodada de chopp.

Os anos e décadas foram passando. O lugar mudou, a clientela mudou. O bar tradicional atingiu o status de cult. A pegada vintage fazia dele um novo atrativo para uma garotada que nem sabe a diferença entre vodka e cachaça, diziam alguns antigos clientes.

O nosso amigo maniático estava alheio. Não queria saber se quem frequentava o bar era um jovem millenium ou um publicitário da Faria Lima ou ambas as coisas juntas. Ele só queria cumprir seu ritual de fim de tarde: sentar na sua mesa tradicional e pedir o mesmo chopp gelado.

Os garçons suspeitavam do que lhe deixou assim. Não foi a mudança no ambiente ou na clientela. Muito provavelmente foi o fato de que seus amigos partiram. A morte já havia levado todos e somente havia deixado o velho maniático para trás. Ele mesmo chegava a pensar que ela tinha esquecido dele e enquanto não lembrasse de que precisava levá-lo, ele cumpriria seu protocolo diário naquele lugar.

Em certo dia, enquanto desfrutava do chopp recém servido, percebeu uma jovem e elegante moça entrar no recinto. Usava um vestido preto um pouco mais abaixo dos joelhos. Era pequena e traços delicados no rosto, quase frágil, porém o cabelo loiro esvoaçante e um belo colar no pescoço compunham um conjunto forte que se confirmava com seu caminhar por entre as mesas. O velho maniático acompanhou essa valsa e pensou:

- Esta sim o meu pessoal iria gostar de apreciar. Uma pena esses putos não estarem mais aqui!

Desviou o olhar quando percebeu que ela o olhava também. Virou o rosto para o lado da rua e tomou mais um gole do chopp.

Posso me sentar?

Desculpe, estou esperando alguém moça.

Não, não está. Ninguém virá. Disse isso e sentou em frente ao velho maniático.

Hum, espaçosa você hein?

Assim como você eu tenho minhas manias. Não gosto de deixar trabalho pendente.

Não sei como eu posso ajudar você no seu trabalho.

Na verdade, você sabe. Há muito tempo você sabe.

Com uma clareza quase mágica, repentinamente o velho maniático teve consciência de tudo.

Você veio me buscar?

Sim. Já não era sem tempo, não é?

Por que somente agora?

Burocracia. Surgiram outras tarefas antes. Você poderia esperar mais um pouco?

Ah é? Sério isso? Deixou-me aqui junto desses idiotas por todo esse tempo porque não conseguia cumprir suas tarefas?

Não é bem assim que as coisas acontecem lá em cima, mas sim, não vim antes porque havia outros problemas com outras pessoas.

Hahahahaha! Devo ter fodido algum anjo um dia! Eu sou obrigado a ficar aqui porque não sou VIP suficiente para ir antes? Que piada!

Não entendo sua indignação. Vocês humanos dizem que o tempo é o seu bem mais precioso! Muitos dariam tudo que tem para ter apenas mais um dia! Poder dizer aos seus que lhes amam. Despedir-se deles, da vida…

Para com essa baboseira loirinha. Eu não tenho vida há anos! Você levou o melhor de mim. Levou meus irmãos. Levou minha amada. Até meu velho cão Bóris vocês tiveram a capacidade de me tirar. Eu pensei que tinham me deixado aqui para me torturar pela eternidade, vendo tudo ruir diante de mim. A vida é o meu purgatório. Não me venha com essa falácia de que essa demora foi um prêmio.

Hum. Interessante sua visão, mas não faço o que faço sozinha. E pode ser difícil de você entender agora, mas o fato é que você foi mesmo deixado de lado por um tempo.

Pronto! Eu sou esquecido há décadas. Não me espanta até pelo departamento da morte eu ser preterido, gracinha!

O fato é que estou aqui agora e fazer o que precisa ser feito. Quer fazer algo antes de partirmos? Posso conceder isso tendo em vista a falha na nossa “prestação de serviços”.

A loirinha disse com um ar de cinismo mas sabia que ainda diante da sua magnificência, não havia sido eficiente com o maniático.

Não. Não tenho mais nada que me prenda aqui. Estou preparado para ir há anos. Vamos embora. Estou cansado desse lugar.

Não demorou muito para os garçons perceberam o maniático com a cabeça encostada num dos braços.

- Dormiu, será? Ele nunca fez isso aqui. Um exame mais próximo e perceberam que estava morto.

- Deve ter sido o coração! Foi fulminante! Disse um dos garçons para o outro, antes de chamarem ambulância.

—---

Já era tarde. O velho maniático e a loirinha já estavam em outro local.

É sério que isso é o céu? Não poderia ser um pouco menos cafona essa entrada com pilares? É o paraíso ou a entrada de uma loja da Havan?

Hehehe. Seu espírito consegue ser leve e ao mesmo tempo carregado. É um mistério até para mim. Disse a loirinha enquanto caminhavam em direção ao que parecia ser a entrada a algo grandioso.

Não sou nada disso loirinha! Sou apenas alguém que já perdeu a esperança há muito tempo. Até para eu morrer, tive que me desgastar.

Tudo bem! Estamos terminando isso agora. Pela falha, como posso te recompensar?

Nada meu bem! Só quero cruzar esse portal e ver o que tem do outro lado.

Apesar de tudo, eu sei que será bom para você.

Não carrego muitas expectativas.

Foi bom te conhecer amigo.

Digo o mesmo. O último chopp estava realmente muito bom! Tem seu dedo nele?

Hehehe. Não. Talvez o pessoal do bar tenha acertado na temperatura hoje.

Tá bom.

O velho percebe a loirinha se virar e seguir para o outro lado. Ele a acompanha enquanto a silhueta dela diminui em meio a uma densa neblina. Enquanto olhava para ela, percebia um som vindo entre os pilares. Uma respiração ofegante. O som aumenta e escuta um latido. Ele não precisa se virar para saber quem é.

Boris! Como você está meu amigão?! Quantas saudades eu tinha de você, meu garoto!

Loirinha ainda virou mais uma vez e sorriu levemente ao ver a cena dos dois amigos se reencontrando antes de desaparecer em meio à neblina.