O CRUZADO, A BONECA E A HISTÓRIA - (Contra-contos #9)
O CRUZADO, A BONECA E A HISTÓRIA
Sombra, água fresca e os cataventos girando. Que mais se pode pedir à vida além do direito de desfrutar tamanhas bençãos? Que mais pedir à morte senão adie um pouco sua vinda sem nos tirar de tal beatitude ou bem-aventurança?
Eu me deliciava com esse tipo de atividade – não minha, mas do bicho homem. Desde muito ele arranjara o meio simples de extrair da água do mar um rendimento dos mais úteis, o sal que tempera a comida e conserva os alimentos.
Deliciava-me o engenho simples com que meu semelhante soubera armar tal equação onde as próprias forças naturais iam agindo e trazendo ao homem um rendimento que lhe assegurava a sobrevivência.
A vida das salinas!
Não posso falar por todas, ouço dizer que na África elas castigam o ser humano – em geral mulheres, pesadas cestas de vime apanhadas no chão, postas sobre a cabeça e assim transportadas por boa distância aos montões maiores.
Como podem escapar a essa sina não apenas as pessoas de cor negra, que por tanto tempo tentaram escravizar, mas ainda por cima mulheres, que tradicionalmente têm sido a besta de carga de todas as civilizações?
Sim, porque toda essa história moderna de mulher ficar em casa cuidando de filhos, comida, roupas e a própria casa tem sido muito mal contada.
Foi a força física das mulheres e foi sua resistência que erigiram as muralhas da China, as pirâmides do Egito, as grandes obras de irrigação e canalização em qualquer civilização que as tenha usado.
Ainda hoje é assim, a mão de obra nos campos de países atrasados e em grande parte a mão de obra das mulheres, que os homens se acham mais utilmente ocupados em outros misteres, entre eles defenderem o torrão natal contra invasões e incursões de outros homens que vêm invadir para arrebanhar o paiol e a colheita de quem trabalhou.
Besta de carga, a mulher tem sido! Paciente, alegre no trabalho profícuo, qual formiguinha carregando seu cesto de terra, pedra, o que for, sorrindo uma para a outra ao passar, não querendo fazer feio na presença de outras mulheres – besta de carga tem sido a mulher!
Salvam-se disso, é claro,as que encontram melhor aproveitamento por sua juventude e formosura, até que a idade e maternidade repetida venha trazé-las também às hostes de formiguinhas trabalhadoras, carregadoras.
Arredei de mim tais pensamentos feministas – ou eram apenas a constatação de fatos históricos, seculares, milenares?
Está claro que muitos homens ajudavam nos transportes mas cabia-lhes tarefa outra – a militar, principalmente.
É deixar a retaguarda civil cuidando dos campos e da criação, partindo à cata de outros territórios onde pilhando, saqueando, tomando, conquistando, sobreviviam com os recursos encontrados por lá, o alimento pilhado por lá, as mulheres de lá.
Na terra natal as pacientes mulheres aguardavam sua volta, resignadas – e ocupadas no amanho da terra, no trato dos rebanhos. Era levar-lhes parte do saque pilhado – e elas ficavam felicíssimas.
Cuidavam dos filhos que cresciam, dos velhos que envelheciam, atendiam os poucos homens ficados para trás. Quantas mulheres das hordas bárbaras acompanhavam os guerreiros? Poucas.
Chegado a território estrangeiro o homem-e-guerreiro se entregava à luta e, morto, nada mais representava – mas vivo e vitorioso usufruía o galardão de sua vitória – bens, alimentos, alojamento, mulheres, escravos, de todos os sexos e idades, prazeres proibidos em sua terra e por sua religião ou crença.
Á voz de arregimentação a fim de seguirem para outras terras os homens de qualquer povo não arreceavam enfrentar distâncias imensas na terra ou por mar – que mulheres seguiam com os vikings em seus periplos oceânicos?
Sabedores de que a qualquer instante teriam a vida encerrada, tais guerreiros entregavam-se de corpo e alma ao combate e ao banquete, à pilhagem e ao saque, ao desfrute dos recursos locais encontrados.
Mulheres e companheiras os seguiam nessas jornadas muitas vezes sem retorno?
Uma droga, isso de conhecer a História e lecionar a jovens, mesmo em nível universitário. Eu divagava embalado pelo vento e a brisa, o cheiro caraterístico da salmoura concentrada, a visão dos cataventos acionando as bombas.
O próprio sal constituíra riqueza disputada a peso de ouro em muitas épocas e lugares, ‘salário’ é palavra que vem de um pagamento feito em sal.
A história da raça humana... Ou melhor – a história dos povos europeus, ressalva a tempo.
Aprendi a não confundir uma coisa com outra – raça humana e ‘Homo Europeus’ branco, conquistador, invasor e imperialista assim que pode.
Eterno vagabundo, cigano-judeu errante que mandava a qualquer parte do globo por terra e especialmente por mar aquela parcela de sua gente mais tangida pelo espírito de aventura, pelo inconformismo, pelo destemor ao desconhecido desde que venerassem/propiciassem o seu deus conhecido.
Como é fácil imbuir-me do espírito daquela gente!
Volto com facilidade aos tempos homéricos da Ilíada ou Odisséia, dos bárbaros despejando-se em exércitos de magotes ou grupos isolados pelas terras européias, africanas ou asianas…
Aos árabes tangidos pela promesa de mil huris lindas no jardim das delícias a que ascendia o guerreiro morto pela palavra e pela glória de Allah.
Aos exércitos de cruzados partidos à libertação do Santo Sepulcro, às expedições remetidas ao oriente.
Embarco no drakkar nórdico, na caravela ibérica, na trirreme grega ou romana. Parto rumo ao desconhecido com companheiros ao mesmo tempo valentes e acovardados pela idéia das forças maiores, pelos deuses desconhecidos que outros povos devem ter.
Junto-me a barbudos espanhóis desembarcados no continente do qual se contavam as lendas e histórias fantásticas de uma cidade feita de ouro, enfrento com eles a simplicidade de exércitos incas, astecas e maias por dentro vencidos pela crença de que um dia os deuses voltariam, brancos e barbudos…
E em companhia deles vejo as mulheres de tais povos e épocas, cruzo com elas o olhar que faziam fugidio, temeroso, suplicante diante da ameaça de nossa chegada.
Ah, as mulheres!
Mais que riquezas, mais que alimento, são as mulheres o melhor botim, prêmio e galardão dos invasores, espoliadores, guerreiros sem códigos a respeitar – como respeitar deuses absurdos e pagãos, aliados a Satanás?
Nosso Deus, o único verdadeiro, nos anima a exterminar aquelas raças nauseabundas de adoradores, infiéis, idólatras.
Sem a força da fé, de Deus a determinar seja imposta Sua vontade e levada Sua palavra a todos os quadrantes do mundo, como poderíamos conquistar esse mundo?
Como encarar uma pluralidade de deuses afeminados, monstruosos, que nada mais podiam ser senão emanações do próprio Demônio?
Por sorte temos a certeza de nossa fé, a convicção íntima de que estamos agindo pelo bem de nossa fé, a única e verdadeira…
Somos não apenas aventureiros e invasores, soldados e mercenários – somos os Soldados de Deus!
Encarregados de levar as boas novas a todos os povos, assim como os apóstolos receberam comissão e incumbência de fazer – e por isso alguns, mais ingênuos e sem conhecerem os poderes do Demônio, têm perecido nesta ou naquela terra à mão de nefandos incréus, selvagens e bárbaros infiéis…
Cabe vingar os santos e os mártires!
Libertar de imundas e satânicas mãos infiéis o Túmulo do Senhor!
Nossa fé nos guia, inspirados por aqueles homens devotados que cantando e rezando propagam a força e a verdade da palavra daquele que se fez carne para salvar a humanidade!
E nós a salvamos, pregamos Suas palavras aos selváticos bárbaros, adoradores dos mais repugnantes ídolos.
Inspira-nos o sacrifício de Nosso Senhor, filho dileto do Pai, pregado à cruz para redimir nossos pecados.
Temos com Ele essa dívida a saldar, essa dívida que jamais poderemos saldar de todo.
Parei a essa altura, percebendo-me arrastado pelo entusiasmo, pelo fervor de um Pedro Eremita, um Calvino, um Godofredo de Bouillon.
O poder da fé!
Simples professor de História, eu me empolgo por esses arrebatamentos quando as condições ambientais – esta salina, por exemplo – me levam a uma viagem extasiante pelo tempo e espaço.
Na Cruzada a que me afiliava em sonho, como homem usava o recurso mais condizente com a fé ardente a me devorar.
Tomada a aldeia ou cidade infiel, passados a fio de espada ou derrubados a machados e setas os guerreiros infiéis, era de praxe cavaleiros e guerreiros escolherem as mulheres mais formosas e então benzê-las em nome do Senhor, batizá-las como cristãs – aceitavam temerosas e com olhares de esperança o batismo – e então manter com elas o comércio carnal próprio dos homens viris.
E decorrido algum tempo de tal comércio, voltar a benzê-las e em seguida degolá-las para não mais recaírem na impiedade das andanças infiéis que haviam levado por todas as suas vidas.
Assim as mulheres mais aproveitáveis – muitas eram belíssimas – tinham a felicidade de entregar puras, ao seu novo Senhor, as almas recém-convertidas, antes de conspurcarem novamente os corpos gerando novos infiéis, nos vaivéns da guerra.
As mulheres maduras que gemiam pecaminosamente de prazer, que conheciam artes diabólicas pelas quais o homem viril era levado a êxtases que desconhecia junto às fiéis mulheres de sua terra!
As jovens e mesmo meninas que sabiam de tal forma comportar-se como receptáculo da semente de um homem!
O êxtase supremo de salvar-lhes as almas como prêmio pelas delícias inefáveis que proporcionavam entre os dois batismos salvadores do espírito e da alma!
Não creio que a humanidade volte a ter tantas oportunidades de proporcionar a seus homens tamanhos êxtases como esses em seu futuro.
A embriaguez santificada dos sentidos!
A justeza e a pureza da morte piedosamente levada às infiéis por momentos purificadas de suas imundícies espirituais, de suas crenças nefandas!
Os suspiros de gozo espiritual perfeito daquela que ao lhe ser trespassado o coração ainda agitado, assim ingressava no campo santo do Senhor, sem ter de voltar – por injunções da guerra – à podridão espiritual de crenças demoníacas!
Esse bem supremo levávamos, os guerreiros do Senhor, a essas parcelas não-combatentes das terras e povos inimigos do Senhor.
E graças a tão nobres ações, nós cada vez mais elevados e puros nos sentíamos, cada vez mais honrados pela compreensão de que nada mais éramos que obreiros da Sua palavra.
E nossos sacerdotes o faziam e tornavam bem claro, também eles costumavam dedicar-se a tal salvação extática de almas perdidas nas brenhas da treva.
Senti que queria prosseguir em meus sonhos de História.
Mas alguém buzinhou a pouca distância; regresso ao momento em que meu corpo se acha.
Ao redor, na areia, meus pertences se acham defendidos pelo guarda-sol de praia.
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Eles vieram, três deles, cataduras prenunciando o que eu não podia ignorar.
-- É assalto – disse o que veio à frente, revólver 38 apontado a meu peito. -- Vai tirando a roupa toda, depressinha.
Deixaram-me nu, inteiramente nu, desacordado e sangrando e levaram tudo no meu automóvel, que paguei com tanto sacrifício, professor de História ganha pouco.
Infiéis ladravazes e amaldiçoados!
Obrigaram-me a fazer o que ninguém deveria fazer e permanecer vivo; hoje – são passados seis meses – ainda tenho problemas no reto, vomito a determinados cheiros e sabores, e as outras bonecas insistem para eu sair bem elegante e de salto alto, curtir a vida, bola pra frente e essas coisas, mas estou com muita vergonha, não sei se vou ter coragem.
Ou saúde para o que estou com tanta vontade de fazer, tem surgido uma dúvida.
Meu destino mudou, tornou-se cruel.
Malditos estupradores e ladrões!
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Valpii 860504 - 801111
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O CRUZADO, A BONECA E A HISTÓRIA
Forma parte da Coletânea
CONTRA-CONTOS,de Affonso Blacheyre, (1928-1997),
cuja biografia está publicada no RECANTO..
Trata-se do nono dos contos da coletânea.
(editado por Gabriel Solis.)
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Affonso Blacheyre