Boneca De Pano

Remexendo no velho baú cheio de coisas que ficaram guardadas por anos, ela encontrou sua velha boneca de pano. Um dos poucos presentes que ganhou na infância.

Mara lembrou que quando criança conversava com Açucena. E ela lhe respondia. Sempre a consolava, dizia palavras bonitas e ela se sentia bem.

-Lembra quando a gente passava horas conversando? Principalmente quando a barra estava muito pesada ou quando me magoavam?

Duas lágrimas rolaram dos olhos da boneca.

Mara não acreditava no que via.

Abraçou-a e chorou também.

-Por que me abandonou? - perguntou Açucena.

-Não te abandonei. Você esteve comigo todo esse tempo.

-No fundo do baú, junto com coisas imprestáveis.

-Eu cresci, tive minhas responsabilidades. Acha que fica bem uma advogada de renome conversar com uma boneca de pano?

-Uma boneca velha e inútil, não é? Você é ingrata.

-Não fale assim comigo.

-Esqueceu de todas as vezes que você chorou abraçada comigo deitada na velha cama?

-Não. Eu não esqueci. Era você que me ajudava a aguentar tudo aquilo.

Mara lembrou de sua infância.

Seus pais nunca foram ricos, pelo contrário. Viviam com dificuldade.

Seu pai trabalhava em um escritório e tinha um salário minguado, sua mãe sempre dava um jeito de ganhar um dinheirinho com seu dom de costurar lindas roupas.

Com o tempo, seu pai que às vezes se excedia na bebida, começou a beber cada vez mais.

Chegava em casa bêbado e se tornava agressivo. Brigava com a esposa e algumas vezes a agrediu fisicamente. Algumas vezes batia nos filhos.

Mara e seu único irmão ficavam encolhidos em um canto, abraçados e ele dizia:

-Eu nunca vou ser como meu pai. Eu o odeio.

Eles choravam. Mais tarde em sua cama ela conversava com sua boneca.

Quando tinha dezesseis anos e seu irmão dezenove seu pai morreu.

Estava bêbado e ao atravessar uma rua foi atropelado.

Ela e seu irmão não choraram. Não conseguiam sentir afeto por ele.

Souberam então que ele havia perdido o emprego há mais de um mês por irresponsabilidade e pelo vício. Sua mãe ficou sozinha com todas as despesas e Mara e seu irmão tiveram que trabalhar para ajudar no sustento.

Seu irmão se formou e foi trabalhar num grande centro. Casou, formou sua família.

Ela ficou sozinha com a mãe. Jurou pra si que seria alguém na vida.

Durante toda a vida se lembrava do pai e se sentia mal por não ter sentido sua morte.

Estudou, foi trabalhar, construiu uma carreira sólida e respeitável como advogada.

Anos depois sua mãe faleceu e ela ficou sozinha.

Com tantos afazeres e mudanças em sua vida acabou esquecendo sua adorada Açucena com quem tantas vezes conversou e chorou.

Nunca quis se envolver em um relacionamento. Nunca deu chance aos caras que se aproximavam dela. Lembrava de seu pai e seus traumas a faziam permanecer sozinha.

Agora reencontrou sua boneca e ao conversar com ela pensava o que diriam se vissem a advogada séria, firme e competente conversando com uma boneca de pano e mais, ouvindo o que Açucena lhe falava.

Por certo diriam que ela estava louca.

-Por que está sozinha até hoje? É linda e nem parece que tem trinta e seis anos.

-Você acha?

-Por que não dá uma oportunidade a quem te quer?

-Nem sei se tem quem me queira. Eu não confio nos homens. Você sabe o quanto chorei pelo que meu pai fazia.

-E quem disse que todos os homens são iguais?

-Não pretendo ter esta certeza e passar nem por um milésimo do que minha mãe passou.

-E aquele juiz que quase não consegue prosseguir com a audiência quando você entra?

-Você está inventando. Eu nunca reparei nisto, como você sabe?

-Você me abandonou. Eu nunca te abandonei. Muito do que você é hoje, deve a mim.

Mara conversava todos os dias com Açucena e dormiam na mesma cama.

Algumas vezes pensava que estava louca. Na infância ainda era aceitável conversar com uma boneca. Mas agora? Será que estava tendo delírios?

Dias depois Mara chega no Fórum. Ao entrar para a audiência lembrou do que Açucena falou e, tímida que sempre foi, ficou nervosa. Deixou a pasta cair, tropeçou na cadeira e quase caiu. E quando olhou, o juiz olhava pra ela com um sorriso e o espanto de quem nunca a viu assim tão vulnerável.

Seus olhares se cruzaram e ela pela primeira vez na vida sentiu um frio na barriga.

Mas se controlou e foi firme na audiência.

Ao chegar em casa a boneca disse:

-Precisava ficar tão atrapalhada na frente do juiz? Percebeu o sorriso irônico dele? E o olhar que trocaram? O que foi aquilo? Estavam em uma audiência, não em um barzinho.

-Enxerida. Para de bisbilhotar.

-Sempre ingrata. Se não fosse eu você nem teria olhado pra ele.

Dias depois ela recebeu lindas flores com um cartão a convidando para um jantar.

Ela sorriu.

Será que finalmente teria coragem de se aproximar de alguém e tentar ser feliz?

Açucena disse:

-São do juiz, acertei?

-Acertou.

-Ele te convidou pra sair?

-Convidou para um jantar.

-O que seria de você sem mim, não é, Mara?

-Você se acha, bonequinha atrevida.

-Acho que sou sua amiga e te quero muito bem.

-Eu também. Vou responder e depois você vai me ajudar escolher a roupa e ficar bem bonita para o primeiro encontro.

Tiveram um lindo jantar e conversaram muito.

Passaram a se encontrar com frequência e ela se sentia apaixonada, mas com medo de se ferir.

-Estou com medo, Açucena. E se não der certo. Pela primeira vez em minha vida eu estou interessada em um cara, estou apaixonada. Tenho medo de sofrer.

-E você nem notou que ele também está até bobo de tão apaixonado, né?

-Eu não entendo muito dessas coisas.

-Eu sei das coisas. Confia em mim. Mergulha de cabeça e seja feliz.

-Ah! Minha boneca sabida.

Abraçando Açucena.

Um tempo depois ela preparou um jantar romântico pra ele.

Conversa vai, conversa vem, jantar delicioso, mãos abusadas, abraços e beijos, carícias e terminaram na cama.

Eles se enlaçaram, se amaram com paixão e com a delicadeza de um amor verdadeiro.

Abraçados ficaram calados sentindo o momento e um ao outro.

No dia seguinte ela levantou, abriu a janela e disse:

-Bom dia, dia, bom dia, vida, bom dia, Açucena!

-Bom dia! Que noite, hein?

-Ah! Açucena, quanto tempo eu perdi.

-Se não tivesse me abandonado no fundo do baú não teria perdido tanto tempo.

-Vai me cobrar isso todos os dias?

-Mudando de assunto como foi sua primeira vez? Ele comentou sobre ser o primeiro?

-Não. Ele é um gentleman. Não seria tão indelicado.

-Espero que estando feliz e amando não me abandone novamente. Eu não vou suportar.

-Não vou te abandonar, bisbilhoteira. Eu te amo, minha querida.

-Eu te amo mais.

-Eu nem imaginava que podia me sentir tão feliz.

-Então aproveita e seja feliz sem medo e sem reserva. Namore, ame, case-se se quiser, mas não abra mão da felicidade.

-Você é minha melhor amiga.

-E você a minha única amiga. Sei que nunca mais vai se separar de mim.

-Não vou.

Mara abraça Açucena e naquele abraço sentiu um coração pulsando nela e seus bracinhos se esticaram para abraçar a amiga.

Nádia Gonçalves
Enviado por Nádia Gonçalves em 17/02/2024
Reeditado em 17/02/2024
Código do texto: T8001221
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