O chifre de música.
O único som que ele por ali escutava, eram os pulsares trovolejantes que caiam do mundo, um desabar espada choque.
Na paisagem se escondem grandes monstros de sombra, caindo, sangrantes áridos escuros. Cadáveres. Ali já forá rio, mas agora é mausoléu, notou. Pensou que, certeza, agora era campo de batalha, mas olhar e interpretar a disposição dos corpos, a saída das lâminas, a gramática das poças-sangue e a fundura dos cortes, seria como olhar pro céu e querer saber futuro, holística errada.
Eles, os monstros sombra, tinham chifres nascentes em "J", outros em "S", mas a maioria era em aríete risco, um "I" em cada lado da esfera pensante. Grandes ossos curvos. O homem olhou e não sabia muito bem do que serviam, se adorno ou lança, mas teve uma ideia:
Alguns dos monstros sombra ainda barulhavam pseudo alma, uma dor gemente, ganidos agudos e molhados. Não sabia se de súplica ou praga, ou os dois.
Ele andou por ali por algum tempo, olhou para os chifres de cada um. Brancura marfim. Alguns pareciam até querer até ser árvore, outros estavam mais pra um princípio de rio leite.
Lembrou de quando carregava os baldes pra mãe, lembrou de quando ela fazia nata, queijo e coalhada. Afastou o pensamento nuvem. Nas veias da terra, agora mal brota água, mal nasce erva daninha, que dirá vaca, que dirá leite, que dirá mãe. Espantou doçura e correu mais um trecho.
No homem, as mãos eram sinal de trabalho. O corpo se agigantava em olhares faróis, um pra cada ângulo. Dentro dele, enganando os ares grosseiros, se fazia uma artesania diferente: Era músico. (Ainda é, se é que dá pra deixar de ser.)
Os pés foram em afundação e se fincaram. Ele encheu as mãos com um dos chifres, (o que julgou mais próprio pro que seria), e então arrancou no pé da raiz. O bicho ainda gritou, como se esperasse a segunda morte pra poder mesmo chorar em sumimento.
O homem regressou, na boca salta uma cantoria velha, murmurante. O chifre era peso de gravidade no ombro, como se quisesse voltar a poeira, mas o homem segue e canta.
"Que mau agouro dissolva,
na música de cachoeira,
que se more no agora,
Saberes sóbrios senhora
Juntando a vila inteira
Contando como era o mar
Senhora cantando cantiga
Juntando a vila inteira
Abrindo pra alma passar
Contando como era o mar
Na música de cachoeira"
Não sabia muito se a letra era mesmo assim, se a memória era aquela mesma ou era mesmo finura de não ser, pensar extraviado, mas cantava. Cantava a paisagem da sua memória, o que era dele e ninguém, até então, tinha tomado.
Pediu aquilo, o chifre, de empréstimo. Sabia que nada no mundo era dele a não ser a sua própria palavra, a voz que saia da garganta, e o querer que governava a cabeça. Tudo um dia, a terra há de pedir retorno.
Daquele chifre celeste, imaginou, faria o que os humanos chamam ainda de saxofone.
***
Esse conto foi, na verdade, vindo de um sonho que tive. Escrevi já de madrugada, meu celular mal de bateria, foi na caneta mesmo.
Aqui um pouco de contexto:
O inventor do Saxofone, Adolphe Sax, era um artesão Belga, inventou muitos instrumentos durante sua vida. O sax, porém, era um instrumento muito mal visto, renegado, ridicularizado pelas orquestras, ouvi dizer até que condenado pelo papa da época.
Já iam em quase dois anos que não escrevia nadinha de ficção direito, só pessoal, biográfico, e então, sabe lá o motivo, sonhei com essas cenas.