Os três cachorrinhos
Os três cachorrinhos
Minha avó um dia me contou que D. Edite disse que Alfredo, seu filho, em umas noites de lua cheia, virava três cachorrinhos. É claro que não acreditei numa história dessas. Não que minha avó fosse mulher de mentir; nos meus poucos anos de existência nunca a tinha ouvido contar uma só mentira que fosse, só falava a verdade. Então, que D. Edite falou isso não havia dúvidas. Acontece que uma mãe não vai soltar uma conversa tão grave dessas sobre um filho, sem uma razão muito forte. Só restava a hipótese que se enganava. Mas como podia haver um engano desse? O que fazia com que pessoas acreditassem que um homem pode se transformar em três cachorros? Alguma coisa a levou a essa conclusão, Alfredo é tão normal!, de uma normalidade comum; loucos todos somos e normais até os loucos são, depende do ponto de vista. Um certo mistério nos seus olhos verdes bonitos, aliás, nem só os olhos, visto que era um dos rapazes mais bonitos do município. Eu não tinha muito contato com ele, mas observava uma enorme tristeza no seu olhar. Nunca fui de ter amizade com pessoas muito diferentes de mim, exceção feita a Roginho, que era um beberrão, um malandro, mas eu gostava dele e ele se sentia muito feliz de bater papo comigo, mas não saíamos juntos, era só uma conversa amistosa, acho que não chegava a ser amizade. Alfredo era muito diferente de mim, não estudava, morava na fazenda, bebia quase sempre, não chegava a ser um bebum, mas eu não bebia nem socialmente, estudava muito, gostava de papear sobre cultura e detestava roça e tudo que se referisse a ela. E agora com essa conversa de minha avó, fiquei com um certo receio do rapaz. Sabe como é, a gente sempre desacredita, acreditando; todo boato é assim, se a gente acredita, deixa sempre uma ponta de não acreditar; se não acredita, observa com mais cuidado, para ver. O rapaz começou a me reberar, mas que diacho! e quando olhava para mim, eu sentia uma carência no seu olhar, como fazendo uma súplica, era um pedido de amizade mesmo. Passei a não o encarar muito, mas ele forçava eu olhar nos seus olhos e as vezes que fiz, percebi que sentia falta de amor e estava cheio de mistério. Minha indiferença chegou ao limite. Não poderia mais ignorar a aproximação do moço. O que é que os arcanos queriam aprontar com essa agora? Primeiro veio minha avó me contando uma lorota de uma pessoa que só via esporadicamente e depois, por um acaso, aproxima-se esse rapaz, insistindo na minha amizade. De verdade, já tinha pegado afeto por ele, tadinho!; a gente vê esses sertanejos, a maioria deles, desde criança, adolescentes, jovens, adultos e velhos, tendo que mostrar sua macheza, por fora uns cascas grossas, mas quando a gente conhece de perto, são todos uns corações de manteiga. Não tinha assunto para falar com Alfredo, mas ele percebeu que minha resistência fora quebrada, meu medo foi vencido também, porque a amizade faz esquecer esses possíveis perigos que a pessoa possa oferecer. E me veio perguntar se sabia caçar tatu, ora essa!, fiquei indignado, olha a pergunta do sujeito!, onde já se viu!, perguntar se sabia caçar tatu, um indivíduo como eu que não sabia nem pegar numa espingarda, lá ia saber caçar tatu? Antes que despejasse minha ira, que o mandasse de volta lá prás brumas da roça de onde vinha, começou a dizer como é que se caça o bicho. Tive vontade de dizer que não estava interessado em saber, não queria aprender nada, mas ouvi a lição de caça, explicou, explicou e no fim disse que quando caçasse um, traria moqueado e tratado para eu experimentar; agradeci, disse que não precisava se dar a esse trabalho que não comeria aquilo. Espantou-se ao descobrir que nunca havia comido um tatu e tentou me convencer da gostosura do mamífero. Que amigo eu fui arrumar, fala de caça de tatu e promete como presente uma moqueca do animal! O que não percebi é que esta conversa me laçou, estava irremediavelmente íntimo do moço. Meu coração é fogo! Lembrava-me dele todo o tempo. Acontece que o caçador só aparecia na cidade antes, uma ou duas vezes na semana, agora o via todos os dias, e não houve melhor pretexto que ter arranjado uma namorada na sede. De noite estava com ela até as dez horas, quando pegava seu carro e voltava para a fazenda, mas à tarde, quando eu saía do colégio estava me esperando na praça em frente, no mesmo banco, debaixo da mesma árvore. E havia uma felicidade tão grande nos seus olhos de diamante, sua boca era toda sorrisos, mesmo quando era para me contar as brigas com a namorada e os trabalhos na fazenda. Era ele quem tomava conta da roça, seus pais já estavam muito velhos. Não é necessário nem falar o tamanho da minha felicidade também, quando as aulas terminavam, sabia que iria ficar batendo papo com meu amigo das cinco até as seis e meia na praça e já não tínhamos mais falta de assunto, faltava sim, tempo para prosear, agora eu podia falar das dificuldades em Inglês, de como gostava de Matemática e não entendia por que geralmente os colegas que gostavam de Matemática não conseguiam aprender Português, ele compreendia tudo, a gente sempre subestima as pessoas, se a gente cativa ou é cativado, como diz a raposa do Pequeno Príncipe, tudo fica mais fácil e comum e até a cor do trigo faz lembrar do amigo. Minha mãe já sabia da minha forte amizade com Alfredo, o que não se sabia naquela briboca!? Também não era segredo, ele não era nenhum marginal e conversávamos à tardinha na praça. Alguns dias ela me procurara nesse horário e algum colega do colégio disse que eu ficava desde o momento que saía das aulas até à noite papeando com o amigo. Me surpreendeu quando ela me mandou convidá-lo para jantar lá em casa. Meu pai é muito festeiro, admiravelmente tratou sempre muito bem todos os meus amigos, minha mãe exercia a sua característica mais notada, a docilidade; só minha avó, com aquele seu olhar altivo, perscrutador, mirava o rapaz de cima abaixo; eu que fiquei sem jeito e ele coitado, todo deslocado, nem ousava encará-la. Minha avó não é fácil, parece uma feiticeira, tenho constantemente a impressão de que sabe de tudo da vida de todos, até do passado e do futuro, a sensação é de nudez absoluta quando ela olha assim! Esse seu olhar de serpente é captador da alma. Descobri recentemente que ela tem uma forma estranhíssima de conseguir informações, esse jeito conselheiro e essa demonstração de sabedoria e responsabilidade, esse desejo de ver o mundo inteiro certo e de ajudar todo mundo, tudo isso a aproxima das pessoas e a torna confidente e sabedora da vida vista e escondida de toda a cidade. Nunca vi o rapaz tão calado como nesse dia e meu pai só tentando deixá-lo à vontade, faça de conta que a casa é sua, com suas brincadeiras, imagine que está na casa da sogra, dizendo que D. Stela parece não ser sopa, demonstrando saber de seu namoro com Márcia. E aí é que o rapaz ficava sem jeito mesmo! Minha mãe, Oxente, Manuel, fica com essas brincadeiras, deixando o menino desajeitado. Quem gostou muito de Alfredo foi meu irmãozinho Titico; só somos nós dois; não deixou o sujeito sossegado, toda hora falava com ele, toda hora perguntava uma coisa, queria até que brincasse de bola dentro de casa. O que minha avó se limitou a fazer foi elogiar a beleza física do rapaz e então o envergonhou mais ainda. Pensei que não iria comentar muito sobre o jantar, teceu os maiores elogios, disse que estava tudo muito gostoso, estava felicíssimo por ter sido recebido pela minha família, todos tinham sido maravilhosos com ele. Agora estava devendo um almoço ou jantar para mim na sua fazenda. Eu imediatamente expulsei as palavras dizendo que deveria ser um almoço, num milímetro de segundo lembrei-me da história da viração e impedi qualquer compromisso à noite, tinha me esquecido dessa conversa mentirosa, mas agora recordei-me e o medo de estar perto numa dessas noites fatais e ademais sou um rapaz da cidade mesmo, não sei nem por que nasci numa cidadezinha agrícola, sonhava bastante em viver numa metrópole; quando vou para a roça de meus primos, no cair do dia, quando começa a escurecer e os grilos desandam a entoar seu coral, dá um desamparinho, uma tristeza tão grande na alma e pior quando se olha para o breu do mundo e só se vê escuridão, é uma dor tão profunda, e os ouvidos sugam berros de um lado, ventos de outro, passarinho triste pr’um canto, parecendo avisos d’outro, Deus do céu, dá vontade de voar dali e pousar na praça iluminada, com as vozes de discos e televisões, esses maravilhosos eletrônicos. Pois bem, nem um pedido de explicação do motivo pelo qual só poderia ser de dia, ele percebeu e entristeceu, deu uma desculpa quase não falada e tão rápido entrou no carro e sumiu, ainda consegui ver lágrimas nos seus olhos. Senti um pavor tão grande, que o enigma daquela pessoa passou a ficar mais sério para mim. Márcia veio me dizer no dia seguinte que seu namorado estava doente e pedia minha visita, fomos à fazenda; nunca tinha ido lá, tão bonita, tão bem cuidada, era caprichoso meu amigo!. De cama, com febre. D. Edite me pareceu tão misteriosamente feiticeira quanto minha avó, Deus do céu, que raios de mistérios aquilo tudo escondia? A mãe cuidava do filho com uma distância sentimental, parecia saber que tudo que usava como remédio era só paliativo e que a cura do seu rapaz residia em alguma outra coisa. Ele representando que a presença de Márcia lhe era melhor que a minha presença, eu sabia que amava a garota e tinha intenção de casar-se com ela, porém sabia que no momento eu era mais importante para ele. Tenho a impressão que o meu olhar no profundo dos seus olhos o curou, no outro dia já estava bem, só uma leve indisposição, tomou sol demais esses dias, trabalhou muito na colheita. Márcia gostava tanto de mim, a devoção que eu tinha a seu namorado era admirável e ela sabia que nossa amizade era muito grande. O dia de ir almoçar na fazenda parecia uma festa, Seu Joaquim mandou D. Edite preparar tanta comida que tive a sensação de que iriam almoçar tantos homens e tudo aquilo era para mim. Não me lembro por que Márcia não foi, a mãe não deixou no dia, qualquer coisa. E Seu Joaquim, olhe Luisinho, fique à vontade, coma sem cerimônia, tudo isso é prá nois cumer. Só se eu tivesse a barriga de boi!. Depois do jantar arrearam dois cavalos e saímos nós dois, eu e Alfredo, a me mostrar a fazenda, nossa que lugar bonito!, num alto, de lá dava prá ver os morros lá longe, tanto gado branquinho e pintadinho e a conversa correu solta e correu solta, estranho como não percebi que a noite caiu e era noite alta. Só então me dei conta do perigo que corria, então o sujeito fez tudo isso para me pegar de isca, eu iria ser devorado pelo lobisomem, fui a vítima escolhida pelos infernos para o sacrifício, quem sabe ele não tinha culpa, deveria ter pegado amor por mim, insuflado pela coisa ruim, para me destruir, não tinha escapatória agora, tinha sido enfeitiçado e não estava com nenhuma defesa. Chamei por Deus, só ele poderia me ajudar nesta hora terrível. Quando olhei onde Alfredo estava, não o vi mais, uma escuridão maior que a da noite cobriu o lugar onde se encontrava. Fiquei sozinho, temi por mim, temi por meu amigo, sei que em nada disso ele tinha culpa e que sofria muito com tudo aquilo. Como ficaria se me fizesse algum mal! Não se perdoaria, conheço o coração dele, não teria alento, eu era a pessoa que ele mais amava no mundo, além de seus pais, e eu o amava como a minha própria alma. Agora só quis fugir temendo as consequências para depois que voltasse a si e visse o mal feito a mim. Mas algo mais forte me obrigou a ficar, a lembrança que o ante transformado morava dentro do meu coração, poderia ser um lobo ou vários, mas antes disso era Alfredo e continuava sendo o mesmo depois da metamorfose. Três uivos ecoaram na mata, o arrepio completo no corpo, meus cabelos todos em pé, a lua surgiu brilhantíssima de dentro das árvores e quando a olhei, estava calma e sua serenidade me deu tranquilidade, acho que seu encanto me tomou também; quando olhei no chão três cachorrinhos, um furta cor, um cor de caramelo e outro mais avermelhado. Tremia mais que água jogada de pedra, meu corpo tinha ondas e tudo batia. Observei, no entanto, que os cachorros eram tão pequenos que aparentemente não me podiam fazer mal e fitei vidrado os olhos neles, acompanhado todos os seus movimentos, inclusive para minha defesa, tentei rezar um pai-nosso, perdi as palavras, me embaralhei, não era bom de reza, uma ave-maria, não saiu, quem manda não se importar com Deus nunca, não ir à igreja, não comungar, não confessar, só gostar de festa e de namorar uma e outra de quando em vez!. O coração ia pular do peito e a mata estava silença, nem um pio, nem um sonido, parecia tinha parado tudo. Sentia todos os animais ali apreciando o acontecimento, silenciosos, nem uma respiração, passarinho, jegue, cavalo, boi, vaca, cabra, bode e os nossos cavalos, sumiram, o cavalo de Alfredo sumira com ele, e o meu cavalo, desapareceu também, covardes, tão fortes, mostrando-se amigos e na hora que se necessita, não estão. Bem, o cavalo que eu montava não era meu amigo mesmo, só o conheci há pouco. Não via nenhum animal, só sabia que estavam perto vendo tudo o que se passava. Me aproximei dos cachorros e pude ver de perto a cada um deles. O furta cor totalmente indiferente a tudo, só contemplava o firmamento, parecia querer voar, pensei não se sentir na terra, porém no universo e fora dele, era o mais calmo, o mais bonito, fiquei até mais animado para me aproximar mais dele, mas quase nem percebeu a minha presença, o de cor de caramelo aproximou-se, olhou para mim e eu abaixei-me e fiz-lhe um carinho, ele todo feliz correspondeu, mas eu notei que ficava entre o cachorro furta cor e o avermelhado, parecia ter desejo de aproximar os dois. O cachorro avermelhado latia ferocíssimo, tive medo de chegar perto, enquanto o furta cor era indiferente, o avermelhado repelia o caramelo e parecia querer brigar até com o furta cor; o avermelhado mais inquieto, esponjava-se na terra, teve medo de mim, constatei surpresíssimo, fui bem de mansinho e aos poucos consegui acalmá-lo, ele depois até dormiu, o que permitiu que o caramelo chegasse perto e o cheirasse, lambesse e se deitasse perto dele; quando o avermelhado acordou, ficou meio assustado e confuso com a proximidade do caramelo, mas acabou brincando com ele, derrubava-o no chão, jogava as patas e rolaram até perto do furta cor, esse, saiu da sua indiferença e passou a brincar com os outros e estávamos os quatro brincando na mata da noite e novamente uma escuridão total, não se via nada e quando a lua voltou a clarear, não havia mais nada, nem cachorrinhos, nem meu amigo, só meu cavalo estava de volta, batendo o pé no chão. Montei nele. Onde estaria agora Alfredo? O que aconteceu a meu amigo, será que não voltaria mais? Deveria chamá-lo, gritar seu nome, os cachorrinhos se foram, e ele? Ouvi um tropel de cavalo. Estaria vindo no cavalo? Ou o cavalo estava voltando sozinho? Que alegria ver meu amigo de novo, descemos do cavalo, fiquei em pé em sua frente sem dizer palavra, me abraçou, nunca havíamos nos abraçado e ele me abraçava tão forte e pôs-se a chorar e seus soluços eram tão grandes, sentia o balanço de todo o seu corpo. Desapareceu de nós o medo de nos tocarmos, esse medo dos nossos corpos, esse receio de demonstrar carinho, ninguém gente nos via mesmo e estivesse vendo, pouco importava, encostou sua cabeça no meu ombro e suas lágrimas molhavam minhas costas, também vertia meu pranto, e nos apertávamos tanto, parecia quebrar os ossos um do outro, mas não fazia mal, a dor que sentíamos, era dor de amizade, dor de gratidão, de companheirismo e de ajuda. Fiz descermos e sentamo-nos no chão, estupefato o vi deitar sua cabeça no meu peito e dizer que o havia libertado. É claro que não entendi nada. Fiquei apalermado e ele explicou que o ser dele estava dividido, seus três eus brigavam entre si desde antes de nascer e só se uniriam se alguém desse a eles esse amor que eu dei, só uma amizade muito grande e corajosa o libertaria da maldição. E eu fiz isto, nunca mais ele viraria cachorros!. Nossa amizade perdurou toda a vida. As nossas esposas sabem que temos um segredo que não revelamos a ninguém. Eu conhecia sua alma, ele conhecia a minha, porque também fiquei livre de mim mesmo e uni meu ser, depois daquela que ficou sendo uma das noites mais bonitas e marcantes da minha vida.
Rodison Roberto Santos
São Paulo, 2003