O ESCRITOR
O livro precisava ser terminado. Já bebera todo o adiantamento recebido enquanto sua mulher morria lentamente no hospital.
Era escritor famoso, tanto pelos livros publicados quanto por uma vida desregrada; dividida entre belas e caras mulheres de programa, corrida de cavalos e bebida.
A mulher, atriz de teatro, o conheceu quando ele era ainda um incipiente autor de comédias ‘stand up’. Ela, desistindo da carreira e abrindo mão de fama e fortuna, passou viver ao seu lado.
Os primeiros tempos foram difíceis, logo superados porque ela se tornou sua agente e produtora, fazendo-o conhecido no meio artístico e intelectual.
Após três semanas da morte da mulher, devorada por um câncer, ele se viu só, desamparado e sem dinheiro. Nem o consolo de visitar o túmulo da falecida ele dispunha; pois o corpo foi cremado e as cinzas jogadas ao mar.
Contemplou na tela do computador o texto inacabado. Nenhuma palavra lhe ocorria para continuar. Fechou o texto e abriu o arquivo de imagens. As fotos da mulher passaram em sequência. Em todas, ela manifestava juventude, alegria e amor. A última lhe pareceu um tanto desfocada, o que era estranho, pois que ela jamais concordava em arquivar fotos nas quais não se achava bem. Ela não permitiu, também, ser fotografada durante a doença, para não deixar lembranças da sua destruição.
Ele abriu o editor para melhorar a imagem e o programa travou por duas vezes; intrigado, insistiu outra vez e a imagem ocupou todo o espaço da tela. A foto começou a se mover como num filme em câmara lenta.
Certificou-se de serem fotos e não vídeo. A imagem parecia falar ou, pelo menos, dava a impressão de mover os lábios. Aumentou o volume do som e a voz se tornou nítida e cristalina.
Ficou petrificado. Tentou desligar o computador em vão. Desplugou a tomada elétrica, mas a máquina continuou ligada e a mulher falando e se movendo.
Uma alucinação, ele pensou.
Tentou se levantar, não conseguiu, estava como que colado à cadeira.
Decidiu ouvir o que julgava ser uma gravação; quem sabe uma brincadeira, embora de mau gosto.
A imagem da mulher o acusava por todos os dissabores que ela tinha passado quando juntos, mas aceitara resignada por amor. Mas, não pretendia assustá-lo e sim ajudá-lo a refazer a vida. A mulher continuaria a escrever os livros, como sempre fizera, para não interromper a carreira do escritor; outra prova de amor que ele não correspondera em vida. Portanto, garantindo-lhe sucesso, fama e fortuna, porém, com uma condição.
Ele se sentiu atordoado. O segredo entre ambos estava estampado na tela.
Timidamente perguntou qual era a condição imposta. Ela respondeu que o potinho com suas cinzas não estava destruído e sim preso nos rochedos do mar; ele teria de resgatar o pote, levá-lo para casa acomodando ao lado do computador; e toda vez que quisesse escrever, deveria retirar um pouquinho do pó, colocar na boca, porém privando-se do álcool, pois a bebida cancela o efeito. Dito isto, a imagem desapareceu.
Ainda em choque com o inusitado, desceu à garagem, pegou o carro e fez a viagem até a praia. Mais de cem quilômetros percorridos à noite e a estrada de terra impedindo dirigir em alta velocidade.
Chegou ao lugarejo, os pescadores já lançavam os barcos ao mar. Conseguiu alugar um deles e alcançou os rochedos. Para maior surpresa, a mulher estava sentada em uma das pedras e, com um sorriso, lhe entregou o potinho, desaparecendo no ar.
Mal refeito do susto, retomou o barco, o carro e chegou em casa. Adormeceu no sofá e acordou com a sensação de ter sonhado, porém, o pote caído no tapete era real.
Sentou-se diante do computador, abriu o arquivo, releu o texto incompleto. Tinha sede, serviu-se de vinho e esperou em vão por frases que dariam sequência ao pensamento interrompido. Nada.
Entrou debaixo do chuveiro, olhou-se no espelho para aparar a barba e a imagem da mulher lá estava refletida. Ela somente disse:
- Não beba e escreva! E sumiu.
Ele já admitia loucura, devia estar ficando louco!
Voltou ao computador, abriu o pote e colocou uma pitada de cinzas na língua; imediatamente as frases surgiram na tela como se mão invisível estivesse teclando. O livro foi finalizado.
Enviado ao editor, alguns meses depois ocorreu o lançamento, as vendas explodiram, e o ‘best seller’ ocupou páginas de críticas favoráveis na mídia; o escritor retomou a vida de homem de sucesso.
Recebeu novas propostas, recomeçou a escrever evitando a bebida, todavia, não evitava mulheres.
Uma noite levou para casa uma garota. Curiosa, a moça se encantou com o potinho de cerâmica ao lado do computador. Perguntou o que continha e ele mentiu. Ao abri-lo, ela sentiu um perfume magnífico, mas o pote, escorregando de suas mãos, se quebrou ao cair e um líquido esverdeado escorreu. O escritor, desesperado, enxugou o chão com a camisa.
Despediu a moça e, vestindo a camisa manchada, foi para o computador. Logo a imagem da mulher surgiu dizendo-lhe para usar sempre a mesma camisa ao escrever. Após esse dia, nunca mais reapareceu.
E hoje, vestido com a camisa em farrapos, ele escreveu este conto.
Daguinaga
08/03/2010