Torvelinho do tempo
A aula sobre subjetividade da percepção foi por demais interessante. Ao final, o professor deu-me carona da faculdade até minha casa, e eu tentava prolongar o debate dizendo que tinha entendido o seguinte: assim como o espaço, o tempo é finito, mas parece eterno porque anda em círculos.
O professor parecia irritado e lascou um “entendeu tudo errado, pô!”.
Não terminou a frase porque um vulto inesperado surgiu na frente do veículo e ele pisou no freio, com violência, virou o volante quase fazendo a Kombi capotar. Ouvi um pequeno baque na lateral e, quando voltei a mim, verifiquei que a rápida manobra do professor evitara um atropelamento fatal. Um pedestre aparecera repentinamente na pista, o professor pisou no freio por puro instinto, o distraído "raspou" na lataria e caiu no asfalto. Assustado, o professor arrancou e fugimos.
— O rapaz pode estar machucado – eu disse, preocupado.
— Que nada – respondeu o professor, nervoso mas categórico. — Ele está bem. Apenas esfolou um pouco a palma da mão.
Como podia saber? Olhei para trás e vi o rapaz levantando-se, com os olhos fixos em nós. Era alto e magro como um varapau, tinha cabelos compridos até os ombros, amarrados na testa com uma fita à moda dos hippies. Tive a sensação estranha de observar o passado — ou o futuro — através da janela de um furgão. Senti um frio na barriga. O jovem tinha a mesma estatura que eu, o mesmo peso, o mesmo formato de rosto, só era um tanto mais jovem. Em seguida ele juntou do chão um rolo de qualquer coisa, que parecia pano enrolado e amarrado com um cinto. Logo dobramos uma esquina e não vi mais ele.
Dias depois, procurando um documento nas minhas pilhas de papéis e livros, encontrei uma fotografia dos tempos de adolescente. Era uma foto de cinco anos antes, quando eu usava cabelos compridos até os ombros, e os prendia com uma tira de couro que cingia minha testa.
Fotografias antigas são como janelas de um trem por onde olhamos ao passado, às vezes as lembranças são confusas porque o tempo é uma ventania que provoca torvelinhos na memória. Pensar no assunto reavivou emoções pretéritas e lembrei: cinco anos antes eu quase havia morrido por atropelamento. Voltava da academia de Judô, ia para casa tão cansado que fui atravessando a rua sem olhar para os lados, quando um carro cantou os pneus bem junto de mim. Não morri por pouco. O motorista conseguiu desviar-me e o impacto na lateral da Kombi apenas me derrubou no chão. Esfolei a palma da mão no asfalto, ao amortecer a queda com o reflexo que se aprende treinando Judô. Fiquei atordoado com o tombo e quando ergui-me a Kombi se afastava, em fuga. Olhei para as pessoas dentro dela e eram dois homens. O motorista parecia bastante assustado. O passageiro olhava para trás, fixando meu rosto. Abaixei-me para apanhar o quimono caído no chão e o carro desapareceu numa esquina.
Aquela havia sido uma época difícil para mim. Meu pensamento não obedecia a nenhuma ordem convencional. O mundo era confuso e ameaçador. Não era de admirar que o episódio do atropelamento sofrido tivesse caído no esquecimento em tão pouco tempo.
Mas, como poderia ser? Em circunstâncias extremamente semelhantes eu quase fui atropelado, cinco anos depois estava dentro do veículo vendo alguém ser quase atropelado? Alguém tão parecido comigo? "O tempo dá voltas", dizia a personagem Úrsula Buendia, já esquálida e decrépita, na epopeia dos "Cem Anos de Solidão", e tinha razão.
Tratei de escrever essa história antes de esquecer seus detalhes. Animado com o inusitado dos fatos, acrescentei alguns parágrafos de pura ficção, supondo a repetição do episódio dentro de cinquenta anos, narrado pelo ponto de vista do professor motorista da Kombi. Serviria para algum futuro concurso de contos, mas esqueci o papel num arquivo e nunca publiquei.
Se você acha estranha a história que acabo de contar, presta bem a atenção agora:
Esses fatos ocorreram há 50 anos. Estavam no completo esquecimento até duas horas atrás, quando aconteceu uma coisa estranhíssima.
Foi assim: depois de ministrar uma cansativa aula na faculdade, um dos alunos pediu-me carona e tomei o rumo de sua casa. No caminho discutíamos alguns conceitos da Física do início do século XX, que ele não conseguia compreender com clareza. Subitamente um pedestre atravessou a rua bem na frente da minha velha Kombi. Instintivamente pisei no freio e virei o volante, mas atingi o infeliz de raspão e ele caiu no asfalto. Ele não me pareceu gravemente ferido. Engatei a marcha e tratei de ir embora o quanto antes, sem saber exatamente porque. Na verdade, sabia, sim, eu estava apenas evitando conversa fiada, pois sabia (não sei como) que o jovem atropelado estava perfeitamente bem e tinha apenas esfolado um pouco a palma da mão.
Meu aluno protestou: "Ele pode estar machucado".
— Que nada – eu disse. — Ele está bem. Apenas esfolou um pouco a mão no asfalto.
Olhei pelo retrovisor e o jovem atropelado tinha cabelos longos até os ombros, presos por uma tira que cingia sua testa, e olhava para nós enquanto se erguia do chão. Tive um "dejavu" intenso. Procurei me acalmar, porque os "dejavus" parecem ser a repetição de fatos passados, mas eu sei que são apenas falhas da memória ao registrar os fatos na linha do tempo particular.
Só que, desta vez, era muito mais que um simples "dejavu". Em casa, depois de um banho e um rápido lanche, tratei de colocar os registros acadêmicos em dia. Imprimi uma cópia dos relatórios e fui até o arquivo guarda-los. Ao abrir a gaveta, sem querer puxei uma pasta errada e dentro dela estava um manuscrito. Era um papel amarelado por meio século dessa ilusão chamada tempo. A data: 02/02/1972. Era meu relato escrito há 50 anos e a profecia do que viria a acontecer hoje. Não faltava um detalhe sequer. E tal como já estava escrito publico agora, aqui no Recanto das Letras.
Para meu aluno caroneiro também foi mais que um acontecimento corriqueiro. Ele ficou assustado porque não sabia o que de fato estava acontecendo naquele momento. Saberá dentro de cinquenta anos.