ESTRELUZ (Sternenschein) - (Contra-contos #6)

ESTRELUZ (Sternenschein)

Vamos ver se dá – inicia-se como de costume, sem maiores pretensões. Tem -se a impressão de que o arsenal/cabedal da memória, das impressões guardadas, cuida de si mesmo e arranja o meio de se apresentar a este plano.

Como ave que abre caminho em caverna na qual foi posto o ovo que a gerou, onde recebeu alimento e afinal criou porte, asas e penas permitindo-lhe esvoaçar, alçar vôo.

Depois de alguns ensaios e tombos e sustos ela se sente irresistivelmente atraída pela saída do mundo cavernoso e subterrâneo – porém tão protegido – onde foi trazida a este mundo.

Mesmo porque o abastecimento de alimentos está minguando e a fome – motor da vida – impele a abrir asas e empreender os primeiros vôos, em geral temerosos, em poucos casos atrevidos e audaciosos.

Existe todo um mundo desconhecido/conhecido lá fora, desconhecido para o recém-formado, conhecido de seu Espírito de Espécie instintivamente acionando o recém-formado a procurar território mais amplo.

Vencidas as primeiras barreiras que podem fazer gorar esse ovo ou eliminar aquilo de que necessita para metamorfosear-se em ser fora da casca, calor apenas e por período curto, algum alimento, poucas coisas podem impedir o vôo, o lançar-se à amplidão dos espaços.

Existem aves tenebrosas, amigas das trevas, penumbra, obscuridade. E existem aves talhadas para as amplidões da vida diurna, sob a radiação do Sol. Aves com estrutura para voar e viver de dia, recolher-se semi-cegas ao entardecer e dormir à noite.

Existem aves feitas para dormir de dia, esvoaçar e viver, amar e lutar à noite, entre estas não apenas os morcegos. Há aves noturnas associadas pela tradição à sabedoria, inúmeras espécies de mochos, corujas…

Sou ave noturna, noturna para os seres diurnos que se recolhem à noite, instintiva ou racionalmente temerosos às trevas. Minha vida e constituição reclamam os vôos noturnos, a vida quando as trevas e penumbra imperam. Por isso me habituei ao que trazia dentro de mim – contar a iluminação da Lua como coisa que se alterna.

Tirando isso, é viver e agir sob a luminosidade singular das estrelas. E há noites realmente tenebrosas, céu encoberto pelo qual não passa o luar, não passa a luminosidade rarefeita das estrelas…

Como é forte, linda, especial a luminosidade das estrelas!

É quando a Lua sumiu no horizonte, algumas horas depois e o céu aberto e sem nuvens nos manda fraca luzinha etérea e especialíssima, mostrando aos olhos os caminhos do ar, da terra e das águas.

E quando recebemos essa radiação especial, vinda de mais de um milhão de pontos distantes, sem estar subjugada pelo tumulto e catadupas firmes na radiação dessa estrela-mãe, o Sol, que nos cega em sua intensidade, desperdiça radiação, luz, calor e magnetismo ao nos inundar, encharcar, sufocar até.

Eu vicejo à luz das estrelas.

Procuro nome para designá-la, a essa luz diferente e cíclica que nos brinda por parte do tempo. Vejo-a com verdadeiro gozo e adoração surgir, à medida que as luzes mais fortes se retiram ou desaparecem por momentos, horas.

É quando meus olhos mais e melhor enxergam porque a medida relativa da luminosidade determina como vemos o mundo mais próximo, aquele menos próximo e o outro – o imenso mundo mais distante, coraçõezinhos radiantes a pulsarem, preenchendo a imensidão com suas batidas, dizendo e mostrando por toda parte – vivo, eu vivo, nós vivemos!

Sinto essa luz com mais do que meus olhos – sinto-a com o coração, o ser, o instinto, impulso, tudo quanto me compõe maior e mais ligado a este mundo – e aquele mundo imenso mais além. Que justifica a existência dele e nos envia suas mensagens constantes e tão variadas, que nos revela facetas desconhecidas da vida em todas suas formas, finalmente adormecida mas por isso mesmo tão mais viva!

Muitos ignoram, somente quando as estrelas iluminam este mundo os seres realmente dormem e descansam…

Mas nós, aves noturnas e outros seres também da noite, temos uma força especial falta aos demais, os cegos-de-luz, os ofuscados que não podem por isso divisar as realidades mais profundas.

Nós não precisamos descansar, apenas nos retiramos conscientemente desse banho tremendo de radiação ao qual os outros seres vivos, vegetais e animais, conseguem resistir quando vem, para então se tornarem mais ativos e mais sadios ao descansarem no sono à luz das estrelas.

O luar perturba tudo, os seres se põem temerosos, não podem descansar mesmo quando parecem dormir.

O mundo se modifica quando apenas a luz das estrelas o ilumina.

Por horas a realidade é outra, não aquela banhada pela saturação solar ou mesmo a luz difusa – e sem calor – do luar.

Essa Lua que nos circunda e vigia – sim, ela nos vigia! -- foi posta em volta da Terra por seres que nos querem patrulhar, manter em nossos lugares, impedirnos de nos adiantarmos mais; quando a Lua está acima do horizonte essa faixa da Terra tem de se manter dentro de padrões impostos pela sobrevivência – o grande Feitor ou Espião pode então controlar-nos, impor sua vontade e seus limites.

Mas quando ela segue e se põe no horizonte, quando vai exercer sua vigilância e impor suas proibições à outra face da Terra, então podemos ser livres, livres por horas, respirar o ar puro e desafogante – é quando podemos ser nós mesmos…

As estrelas são nossas amigas e então nos brindam com sua mensagem-vibração. É quando os seres recebem de seu Espírito da Espécie a mensagem, embora interrompida, que lhes permite prosseguir na Luta. A luta pela vida.

Quem não se expõe, por minutos que seja, à luz pura das estrelas, jamais poderá encontrar-se, jamais poderá harmonizar-se, aceitar a Vida.

Por isso nós, aves noturnas, seres noturnos, sobrevoando tais pobres seres ignorantes, assistimos aos estiolamento de tantas vidas – muitos têm medo de se entregarem à luz das estrelas – que vão minguando sempre, enlouquecidos pelos ditames da radiação solar/lunar. Pobres loucos!

Mortos à sede quando a água mais pura e cristalina lhes é oferecida gratuitamente, basta não recear recebé-la nesse suave jorro que tantas vezes nos banha.

Não existe o ser que contemplando as estrelas sem radiação solar-lunar deixe de marchar, mesmo vagarosamente, para acompreensão da Realidade Maior.

As plantas sabem disso, muitas poderiam dispensar boa parte da violência solar e vicejar apenas da estrelas – e os homens o interpretam como necessidade de radiação solar por parte delas, não entendem que um fenômeno aparente esconde outro – elas vivem é dessa luz diáfana, luminosidade mágica que as revigora.

Encobertas não receberão o Sol – mas também não receberão sua vibração certa…

Ignoram a transformação sutil e importantíssima entre receber a radiação solar e receber apenas a estelar… Ignoram que ela dá força aos centros e objetos de poder e vitalidade.

Ignoram que na realidade essa radiação estelar nos atinge todo o tempo, dia ou noite, mas entremeada à solar-lunar modificações ocorrem, os cristais não se formam harmoniosamente, os seres vivos não se desenvolvem plenamente; água pura misturada à lamacenta e imunda não pode continuar pura…

Sou ave noturna.

E quando posso, quando a fome não é bastante ou demasiada, mesmo nas noites com vislumbre de Lua, nas partes da noite em que haja luar, permaneço quase sempre na treva. Mas quando a luz estelar se tornou Pura, e tal acontece todas as noites ou quase todas, eis que vivo, sou, atuo!

E então eu vôo, eu posso voar!

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Valpii 860430 790804

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ESTRELUZ (Sternenschein)

Forma parte da Coletânea

CONTRA-CONTOS, de Affonso Blacheyre, (1928-1997),

cuja biografia está publicada no RECANTO..

Trata-se do sexto dos contos da coletânea,.

(editado por Gabriel Solis.)

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Affonso Blacheyre

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Affonso Blacheyre
Enviado por Gabriel Solís em 21/12/2023
Código do texto: T7958952
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