A GAROTA DOS MORTOS

A GAROTA DOS MORTOS

"A manifestação do temor era múltipla

despojada das faculdades mentais,

silenciosa em sua dor, jazia estupefata,

qual fugia, qual ficava." (Ovídio, ao

descrever o terror das mulheres sabinas)

Vive-se nesta dimensão de tempo e de espaço convivendo, simultâneos, com outras dimensões do existir. Próximas, ao mesmo tempo infinitamente distantes. Existe-se numa densidade da matéria que, exceto em raras exceções, nunca consegue ultrapassar os limites intransponíveis entre mundos.

São muitos os paradoxos a vencer no congestionado caminho entre os pressupostos científicos incontestáveis, os dogmas dos sistemas de pensamento estabelecidos, versus os fenômenos que não são por eles explicados dentro das fronteiras da racionalidade acadêmica. A humildade e o pasmo diante do desconhecido facilita sua compreensão.

O tempo presente e o tempo passado. Não me havia detido sobre como a influência pretérita age, inspira, transmite fluidos, ascendência, ressonância no mundo dos vivos. Os vivos de ontem conseguem penetrar no corpo etéreo dos vivos de hoje?

É possível à energia transcendente dos mortos, ou de seres de outra dimensão, transgredir as leis de distanciamento que separam as fronteiras entre este e outros estados físicos mais fluidos da matéria?

Depois de conhecer Paula, estou certo da existência de forças cruéis, aflitivas, fortes. Desejam manter as pessoas que nascem neste mundo sob a tutela de medos, dores, frustrações, desejos mórbidos e sofrimentos. Diderot afirmava que o homem nasce no mundo de uma hereditariedade predisposta a fazer-lhe mal.

Esta história talvez possa contribuir para uma melhor compreensão deste fenômeno:

Encontrei Paula na fila de cinema de um shopping center num fim de semana do mês de junho de 1989. Começa um namoro. Na sala de seu apartamento, a presença de cinco molduras de metal antigas: servem de encaixe para fotos de ancestrais. Cinco fotografias, embaçadas pela turvação do tempo, formam na parede uma estrela de cinco pontas: pentáculo decorativo.

Paula divide o espaço do apartamento com a tia. Como qualquer garota em busca de proteção, sente-se indefesa frente às exigências de sobrevivência no selvagem zoológico de uma realidade na insegurança da humana condição.

Quem não está indefeso neste zoo? Jovem balzaquiana, vive suas contradições, recém egressa dos vinte anos. Para ter menos problemas, gostaria de ser estável como uma tia: casada, mãe de filhos, marido sob controle da libido.

Participou do último alento do movimento hippie na década de setenta. Provisória liberdade sexual forneceu à Paula a ilusão de que abriu uma porta a separá-la da estreita mundividências "metalfísica" da geração da tia.

Paula está dividida entre assumir os preconceitos de uma concepção excessivamente mesquinha dos sentimentos e emoções, ou viver num contexto em que valores tais são, real e simplesmente, pó. Teme talvez ficar sem a contribuição dela, tia, nas despesas do apartamento.

A tia parece aceitar minha presença sem restrições. Exceto, talvez, a de vir congestionar o espaço habitacional dela, da sobrinha e da filha desta. Paula denuncia seu autoritarismo. Eu acho a tia uma mulher enérgica. Apesar da idade, não renuncia à defesa anacrônica de muitas opiniões defasadas.

Gosta da empatia TV visível com as personagens do horário nobre da novela das nove, dos musicais de música caipira e da programação dominical da TV do ‘tio’ Silvio.

Apesar de balzaquiana, Paula não passa de uma adolescente vivendo os conflitos de uma família medianamente estruturada. Personagem de uma geração que apenas ensaiou criar um “l esprit d équipe”.

O espírito de equipe de uma geração que se dispersou. Representa o papel familiar de uma garota que sabe das coisas da vida ... Mas sua ideia atual do conflito de gerações é apenas um fenômeno de superfície.

Talvez deseje, ela também, vir a ser uma tia normal, sem mais conflitos. Convivendo pacificamente com todos, apesar das entrelinhas desfavoráveis, na existência de arestas que não podem ser aparadas facilmente.

Normal que a velhinha não goste que seus programas TV visíveis, sejam interrompidos pela exibição em vídeo de filmes que, por vezes, fazem cessar a sensação dominical de estar participando coletivamente das emoções do topa tudo por dinheiro.

No domingo, que programa pode ser mais importante para ela, do que as maravilhas de sua convivência cultural com as gracinhas do tio Gugu do PCC, seu Domingo Legal? Comigo e Paula, a intimidade tolerada. Simpatizo com ela, faço as concessões de praxe. Os vídeos ficam para depois de sua fruição cultural da lavoura arcaica dominical.

Sobrevivente da contracultura do período hippie, aprendi a aprender a ser tolerante. Respeito as pessoas sem perder de vista um certo distanciamento. Sem fazer concessões além das necessárias. A tia não espera que Paula e eu tenhamos maturidade suficiente para manter um relacionamento afetivo, emocionalmente estável, a longo prazo.

Apostam, as tias, que vêm visitá-la ou telefonam com frequência, no desvigorar a médio prazo do namoro. Não falam às claras. São como que partícipes de uma associação oculta de mulheres, das quais se intui o sentimento inquieto, magoado e oculto. Porém, sei decifrar as entrelinhas das conversas ouvidas ao acaso. Eis Paula para elas: apenas uma pessoa sob controle. Absolutamente previsível. Ainda que não seja bem assim.

E se assim não for, saberão como providenciar no sentido de que a influência delas prossiga preponderante. Nossos fins de semana terminam na segunda de manhã, quando a rotina do trabalho exige os horários lançados nos cartões de ponto.

Estou estrangeiro neste universo ordenado das tias. A compatibilidade libidinal nos segura. Não ignoro o que representa o circo das aparências mantidas. Ela costuma sublimar as agressões sub-reptícias, veladas. Age como se todos os dias do ano fossem primeiro de abril.

Paula aceita os jogos de palavras e as brincadeiras carregadas de autoafirmação de terceiros. Acontecem, como se fosse num universo paralelo de cinismo mal disfarçado: a passiva aceitação de sua condição de prima pobre da família.

Os componentes sádicos do caráter de alguns familiares, exerce-se de maneira a mais natural possível. Usam Paula como se fosse uma médium masoquista de suas projeções mentais. Ávidas por prosseguirem exercendo domínio anímico a partir da prevalência econômica. É como se lhe apunhalassem o coração e depois pusessem um band-aid.

A prima pobre deve, segundo seus pensares, submeter-se à riqueza de suas “boas intenções”, por mais pérfidas que sejam. Na real, somente desejam que faça parte da realidade familiar como uma pessoa que conhece seu lugar.

Nesses seis últimos meses de convivência, estranhos sonhos insistem em povoar meu sono. A memória onírica tornou-se nebulosa e sombria. A cabeça pesa como se estivesse sob a pressão maquiavélica de uma força estranha e sutil, agindo na mente com sinistra subrepticidade. A cidade sub-reptícia dos coronéis emocionais.

Sábado de madrugada, há dois meses, aconteceu surpreender-me imerso num estado de torpor. A luta entre sono e vigília se firmou. Uma sensação de crescente paralisia imobiliza os membros que não obedecem à vontade de querer movimentá-los. Abrir os olhos é o mais que consigo de meus movimentos.

Estão mesmo abertos? Ou estas sensações não passam de pesadelo? Há a presença coercitiva desta névoa transparente, opressiva, cristalizada em torno de corpo: imobiliza membros, ameaça de extinção os sentidos. Impede a visão em profundidade.

No quarto em penumbra, sinto-me preso igual estivesse no interior de uma redoma de cristal numa cerimônia de holocausto. Observado, censurado por dezenas de olhares repreensivos, admoestadores. Deles emana castigo, malefícios, intimidação e ameaças.

Como sair fora desse horror? Quero despertar, não consigo. Não é sonho nem pesadelo. Desejo emergir desta sensação paralisante, tumular. Deste magnetismo entorpecente, nefasta emanação proveniente de seres a serviço de indizível morbidez: do mais puro mal. Seres de malefícios supremacistas.

Esses seres ameaçadores não são de carne e osso. Se o fossem, me teriam trucidado. São entidades incorpóreas. Estão presentes por todo o espaço capsular do quarto: íncubos e súcubos. Espíritos malvados. Os olhos entreabertos fecham-se. Estou cercado de maldade, medo e horror por todos os lados. Que fazer para vencê-los? Provocam uma empatia abjeta, abominável. Uma empatia chegada a vapores de sodomia.

O simples gesto de abrir e fechar os olhos outra vez, causa uma reação de hesitação na força coletiva a me ilhar. O fanatismo dominador da mórbida energia paralisante arrefece. Por momentos, a força magnética, não se faz tão forte. Os agressores são covardes. São legião, por que estão aqui, em meio a seres mais compactos de outra dimensão? Por que não estão no apartamento ao lado, nos do andar superior ou no inferior?

Senti intensificar, como se fosse possível, o ódio insano desses malfeitores do astral. A incontrolável e maligna ira não pode ser maior. Encontra-se numa intensidade limite de manifestação ritual. Persisto lutando para poder emergir dessa bruma. Consciente de estar partícipe dessa liturgia macabra.

Resistindo à tirania, abro pela terceira vez os olhos, a única forma que encontro de reagir à covarde drenagem da energia vital. A turba, sentindo a reação pertinente de minha consciência, ainda que tênue, esvazia o aposento como se sugada por um funil com grande poder de sucção.

“Paula, você está bem”? Quero pronunciar a frase. Outra vez não saem os sons.

A luta pela autonomia da consciência prossegue. A nefasta e impertinente opressão dessa espécie de demência astral coletiva, pusilânime, é uma experiência da qual se precisa emergir vitorioso. Esses seres de influência sepulcral não pertencem a este mundo. Desejam exercer sobre os vivos seu enfermo e morbíparo poder de vampirizar.

Consigo, finalmente, estender o braço, em câmara lenta, rumo ao corpo de Paula. Busco sentir seu contato, ela não está na cama. Estranho. A estas horas da madrugada não costuma sair do quarto. Consigo mover o dedão do pé esquerdo. Após o súbito afastamento dos seres tumulares, os músculos aos poucos adquirem outra vez a contumaz elasticidade.

Afunilaram-se, com força sutil, mas avassaladora, as sanguessugas da vitalidade humana. Poderiam ter sequestrado Paula para a dimensão donde, de alguma forma, vieram? Qualquer que fossem, suas pretensões não foram de todo satisfeitas.

A sinistra força, ao se transferir para o mundo mais sutil, continha a intenção de carregar consigo o espelho, o guarda-roupa, a cama, a estante, as caixas de som, o micro, os móveis do quarto por ela provisoriamente impregnados.

Passados alguns minutos, caminhei até a sala em busca de Paula. Nela chegando, vejo por breves momentos (ilusão de óptica?), o espaço interno do pentáculo formado pelas fotos de seus ancestrais, se afunilar, contrair, numa espiral de partículas cinzentas girando em sentido anti-horário. O fenômeno sumiu rapidamente, sugado pela força de aceleração centrípeta em seu epicentro.

Apalpo perplexo a superfície da parede em busca de algum indício real da fantástica visualização. Emana da área central do pentáculo intensa algidez, remanescente da sucção dos corpúsculos cinzentos, persiste a presença de intenso magnetismo, a incitar para si minhas mãos em direção ao ponto na parede no centro do pentáculo.

Paula está prostrada, subjugada. O corpo tencionado ao longo do sofá. O branco dos olhos abertos aparecendo, como se estivesse sob efeito de forte transe hipnótico. Bato de leve em suas faces, chamando-a de volta ao estado desperto, à consciência.

“Paula, você está bem”? Desperte. Sai dessa, reaja.

A sombria presença de mais alguém se faz sentir na sala. O medo do desconhecido volta a acontecer. Seja o que for, entidade elementar aliada às larvas ou micróbios errantes do astral, não vão conseguir entorpecer-me. Manterei perene a vigília.

Os olhos da namorada são duas tochas brancas, apesar da ausência das pupilas, passam a impressão de estar vendo tudo. Como se a participar ativamente do mórbido evento. O olhar de alguém mais na sala está pousado em mim, carregado de advertências, deseja ver-me acossado: uma adversidade próxima a lançar um malefício.

Preciso vencer o medo agora. Uso o fato de estar com sede, como se de ressaca, apesar de não ter ingerido qualquer bebida alcoólica há dias, para sair da vizinhança do sofá e encarar o envilecido desafio do olhar adversário. Olhar que logo se transforma numa malta de seres indefinidos, estranhamente familiares, que me encaram a partir dos globos oculares de uma mesma e mórbida face.

Por uma sincronicidade junguiana, havia terminado de ler, no dia anterior, o livro de Alexandre Herculano, “Lendas e Narrativas”. Aflui agora à consciência, trazida à tona pela força da memorização à rápido prazo, somada à imagem que se delineia a poucos passos, a frase: “As feições enrugadas, a palidez do rosto, o encovado dos olhos, que lhe davam aos gestos todos os sintomas de cadáver”.

Cada olhar que se sucede busca acessar minhas emoções, intensificar possível manifestação emocional de medo. O espectro é a representação da força de uma profusão de pessoas nele sepultadas. Através de sua aparição busca sugar minha energia vital ao máximo, através do temor. Representa a configuração doentia de energias há séculos, talvez milênios, determinadas em permanecer juntas, em reforçar uma espécie de transcendência cadavérica, de poder maléfico, morbígero, sobre os vivos.

Olhos espreitam, esperam atingir uma faceta de meu ser emotivo, fazer prevalecer alguma magnética tentativa de sedução. Decepcionam-se. Nada cedo de meu espaço anímico, ainda assim a investida maquiavélica mantém-se.

Seu propósito não logra êxito, mas insistem, os olhares absintados, e as sombras que deslizam sorrateiramente ao derredor, em fixar-me com mórbida e impertinente intencionalidade, como se objetivando horrorizar-me ao extremo de provocar uma síncope, devido a estímulos mórbidos, de uma intensidade macabra, que terminariam por afetar meu sistema nervoso central, através da perda de suprimento sanguíneo no cérebro.

Mantive-me numa atitude de combate, a partir da convicção de que aqueles seres espectrais não poderiam causar-me dano físico, se eu não cedesse à sua morbidez subjetiva. Tais seres vivem de sugar as emanações emocionais de pessoas carregadas de raiva, ódio, medo, ressentimentos. No mundo atual sentem-se à vontade, proliferam em abundância. Garantem seu alimento sutil sugando-o da falta de equilíbrio nervoso da maioria silenciosa, de suas emoções planetárias, advindas das cidades desvairadas, carcomidas pela criminalidade impune.

Os ressentimentos intensificam-se de tal modo, que não vejo o momento de se afirmar uma agressão física. Nesse instante salta sobre mim como se quisesse esganar-me, a estrutura óssea crispada: mãos longas e longos braços tentam fechar os dedos desencarnados em meu pescoço. Estou partícipe de uma zona de eventos incomuns, manifesta entre duas dimensões da matéria.

Súbito, num gesto defensivo, meus braços se postam cruzados frente ao rosto, o tronco verga para trás, ao modo de um boxer que se defende de um soco cruzado do rival, num ângulo de 90 graus.

Não consigo fácil livrar-me das mãos descarnadas que pressionam as falanges em torno de meu pescoço. A coisa parecer estar recolhendo-se ao corpo larvar, mas não... Está de volta agora, outra vez, em minha direção, pressionando mais, como se numa última tentativa de me fazer esmorecer, desmaiar. Minha força vinha do fato de que estava a proteger não apenas a mim, mas à minha companheira e à sua filhinha, pelas quais mantinha dedicação e simpatia.

Levanto o pé à altura do queixo da visagem impressionante, numa resposta condicionada à agressividade da entidade trajada de hostilidade e horror. Enrijeço os músculos na tentativa de minorar os efeitos do impacto.

DECIO GOODNEWS
Enviado por DECIO GOODNEWS em 20/11/2023
Código do texto: T7936048
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