Viveiro de Peixes

O primeiro café do dia era sempre o mais delicioso… Assim como o primeiro raio de sol do dia. Enquanto o primeiro servia como combustível para o cérebro, o segundo servia de combustível para a alma. Gostava de ambos. Gostava de saborear o quente amargo do café. Sentir ele beijar os dentes. Gostava de sentir os fracos e gostosos raios solares do raiar da manhã abraçando e tocando sua pele, tomando-a aconchegante. Era como se fosse um ritual matinal diário. Se não fosse por ele, talvez seu dia não fosse tão proveitoso, ou talvez não tivesse tanta energia para fazer tantas coisas nele. Eram dois gestos simples de suma importância para grande parte do seu dia.

A padaria onde estava encontrava-se silenciosa. Havia sido aberta há algumas horas atrás, no começo da manhã. Na sua frente, mesas e cadeiras simples estavam postas, abrigando presenças inexistentes. Levaria apenas algumas horas a mais para que mais clientes chegassem. mais a frente, haviam prateleiras com vários salgados, doces, biscoitos e batatas chips. Sabia que não eram comidas apropriadas para ele, porém eram boas para crianças. Se tivesse comida para elas, mais clientela a padaria teria. E quanto mais clientela, por mais tempo ela ficaria aberta, podendo aproveitar por mais tempo o café feito daquele jeito. Com certeza poderia ir em outras padarias, porém tinha certeza que nenhuma delas faria um café do mesmo jeito daquela padaria onde estava no momento.

À sua direita, via a entrada da padaria na forma de uma porta de vidro sendo acompanhada por paredes de vidro alinhadas aos lados com la. Ao lado da porta, podia ver a logomarca da padaria. Não era algo muito original ou elaborado. Era apenas um círculo verde com outro círculo branco pequeno, este menor e inscrito no centro deste, e uma cesta com dois pães no centro da imagem. Logo abaixo da cesta, podia ver o nome da padaria em uma fonte vermelha. Em frente à padaria, havia uma igreja de paredes e muros azuis erguida sobre um barranco. Tinha largas rampas, largas o suficiente para a entrada de pessoas até o seu magrelo e branco portão. À sua esquerda, dentro da padaria, via a bancada dela. Uma bancada de vidro transparente, contendo vários tipos de pães doces e salgados.

O senhor estava finalmente satisfeito com seu café da manhã. Olhou para baixo e viu sua xícara vazia e uma folha de papel que servia de comanda, com um risco de caneta ao lado do retângulo com a palavra “café”. Ele pegou o papel, levantou-se da cadeira e foi até a bancada. Quando chegou nela, foi atendido por uma moça na casa dos 20 e poucos anos. Pele morena, tinha cabelos escuros e usava uma touca branca semi transparente para cobrí-los Vestia uma camiseta verde, o mesmo verde da logomarca da padaria e uma calça preta, são escura quanto os seus cabelos. Ele tirou uma carteira do bolso e tirou dela uma quantia de dinheiro em cédulas suficiente para pagar pelo seu café. A moça entregou-lhe o troco e agradeceu. O senhor elogiou a qualidade do café que havia tomado. Deu meia volta e viu seu reflexo na vitrine da padaria. Um homem na casa dos 40 anos, vestindo uma calça jeans com pequenos rasgos que denunciavam os anos de uso; uma limpa camisa de botões branca, com finas listras verticais; botas marrons, tão marrons quanto a terra sobre a qual ele pisava, chapéu marrom e um simples relógio digital preto no punho direito. Atrás do seu reflexo, viu sua motocicleta estacionada na calçada da padaria. Uma simples moto de cor vermelha. Seu cavalo de metal. Sua fiel companheira de transporte. O senhor andou até a entrada, passando por um homem mais jovem que ele e sua pequena filha no processo. Ele saiu da padaria e pegou o capacete guardado sobre o guidão. Colocou o capacete. Montou nela. Colocou a chave no painel e a girou. Após duas tentativas de engate da moto, ouviu um choro. Ele parou de tentar e prestou atenção ao choro. Um choro feminino, triste e infantil. Vinha do interior da padaria. Ele virou-se e viu a menina pela qual tinha passado perto segundos atrás, chorando. ela olhava para um pedaço de pão doce jogado ao chão, enquanto seu pai e a atendente da padaria olhavam para ela com expressões de preocupação e tristeza.

O senhor ficou entristecido com a situação. Ele levantou-se da moto e voltou para o estabelecimento. Sacou sua carteira, tirou um pouco de dinheiro e pediu um pão doce igual ao que a garotinha havia acabado de deixar cair no chão. A atendente pegou um pedaço rapidamente e o entregou. O senhor se abaixa e oferece o pedaço à garotinha. Ela encerrou seu choro assim que viu o pão. Sua tristeza se extinguiu e foi substituída por um sorriso salpicado de lágrimas. Ele levantou-se, vendo a atendente o observar com um sorriso e o pai da garotinha o agradeceu pela boa ação, também portando uma expressão de felicidade. O senhor se despediu deles e voltou para a sua moto, finalmente partindo para a sua casa. No entanto, durante o percurso, viu que algo diferente aconteceu: Sua narina direita ficou totalmente ocluída de forma espontânea.

***

O senhor chegou em sua casa. Uma simples casa de paredes amareladas, porta da frente de madeira, janelas em ambos os lados e telhas de cerâmica. Localizada no meio da terra, à esquerda de uma subida que servia como continuidade da estrada de terra batida, o território era rodeado por florestas, colinas e aglomerações de mato. Uma típica moradia na roça.

O senhor passou pela entrada de sua casa, entre a casa em sí e a subida da estrada. Foi até os fundos, onde estacionou a sua moto. A oclusão da sua narina direita ainda estava presente. Ele retirou o capacete e virou-se. Viu a sua esposa nos fundos da casa, numa varanda contendo um tanque para lavagem de roupas e um varal. Ela percebeu a chegada dele. A primeira coisa que diz é sobre o seu desejo de comer peixe frito no jantar daquele mesmo dia, pedindo para seu marido pegar um peixe no viveiro. Ele obedeceu ao pedido com um sorriso no rosto, e em seguida andou até o viveiro de peixes. Ele ficava atrás da casa, porém não era prontamente acessível. Necessitava de uma caminhada de cerca de 5 minutos para chegar até ele. O senhor era o unico que trabalhava e cuidava dele. Sua esposa raramente ia até ele. Isso o tranquilizava, pois assim ela nunca saberia como ele consegue os seus peixes.

O senhor chegou ao viveiro. Localizava-se dentro de uma densa mata, invisível aos distantes olhos. Havia um casebre que servia como armazém, guardando ferramentas essenciais para aquele viveiro. À frente, um caminho de grama, e aos lados deste, paços de peixes.

O senhor foi até um deles e lembrou-se do entupimento de sua narina direita. Ele abriu sua mão esquerda e a deixou espalmada logo abaixo dela e usou a outra mão para ocluir a narina não entupida. Expirou ar pela narina entupida, tentando tirar a causa do seu entupimento. Após 4 tentativas fortes, o corpo estranho saiu de sua narina num piscar de olhos. Olhou para sua mão, feliz por ver justamente o que esperava ver: Um pequeno peixinho, movendo-se delicadamente no centro da palma. Após admirá-lo por alguns segundos, jogou-o em um dos poços.

Tinha de escolher um peixe para o jantar, a pedido da sua esposa, e por isso teria de caprichar na tarefa. O senhor passou pelos poços para observar os peixes habitantes deles e a vitalidade de cada um. Tinha que escolher um bom o bastante. Parou perto de um dos últimos poços e retirou um peixe dele. Instantaneamente, uma memória dele tocando violão e cantando para várias crianças na subida da igreja em frente à padaria, na cidade mais próxima da sua casa, numa manhã de sábado.

Era bom, mas não o bastante.

O peixe foi colocado de volta em seu respectivo poço. Andou mais um pouco e parou no poço do meio do caminho. Tirou um peixe dele e a memória de uma cachoeira veio em sua cabeça. Uma limpa e clara cachoeira. Tinha um fluxo fraco e não era grande, porém apresentava uma visão bonita de se ver. Havia descoberto aquela cachoeira num caminho diferente que tomou para sair da cidade e ir para a sua casa.

Era muito bom, mas não era o bastante.

Jogou o peixe de volta e continuou a andar. Foi até um dos poços do começo do caminho, perto do casebre. Um dos primeiros poços que construiu. Tirou um peixe dele. A memória visualizada foi de uma noite na qual ele e sua esposa foram jantar na cidade. Um restaurante com mesas de plástico cobertas com toalhas de mesa quadriculadas estilo xadrez, alternando entre o vermelho e branco. Haviam fios com lâmpadas incandescentes iluminando o local, dando um toque mais simples e caseiro nele. Cestas foram postas nas mesas, contendo frascos de azeite, sachês de sal e potes de pimenta. O senhor lembra de ter ficado bem arrumado para aquela noite, mas aquilo não era importante. O mais importante era a aparência da sua esposa. Ela usava um vestido vermelho vivo, com finas mangas que iam até os punhos. Usava uma maquiagem leve, realçando seus traços naturais. Seus ruivos cabelos pareciam amarelos e brilhantes por conta da luz das lâmpadas. Sua pele branca, castigada pelo sol do meio rural, ainda encontrava-se preservada um pouco do branco tal qual neve próprio dela. E o seu olhar… Um olhar cristalino, claro como gotas de chuva, fixado no rosto do senhor, complementado por um rosto que expressava amor, felicidade, serenidade e paz.

Sentia-se o homem mais rico do mundo com aquela riqueza emocional, uma riqueza de momento, de sentimento, de pessoa e de vida ao estar do lado dela.

O senhor saiu de sua memória e saiu do viveiro com o peixe em mãos. Ele decidiu que seria ele, o peixe a ser preparado para o jantar.

***

O cheiro de peixe frito coberto em farinha preenchia sua narinas, especialmente a direita, agora desobstruída. Podia sentir perfeitamente aquela crosta se quebrando e desfazendo sob a pressão dos seus dentes. Foi colocado em uma bandeja de vidro, e ao seu redor, tiras de alface e rodelas de tomate cortadas, estas dispostas ao redor dele. Ficou mais ansioso ainda para comer ele depois de ver sua esposa espremer um limão sobre ele, deixando o líquido escorrer sobre a crosta crocante da carne.

Estavam na sala de jantar, prestes a se sentarem na mesa retângular não muito longa, com 6 cadeiras ao redor dela. Iluminados por uma lâmpada fluorescente, diferente das lâmpadas do jantar da memória. Fora a mesa e as cadeiras, havia um armário de madeira, guardando pratos chiques e outros itens especiais de cozinha, como copos, canecas e talheres.

Os pratos já foram postos, junto com seus talheres e copos acompanhantes. O senhor quis ser o primeiro a comer o peixe. No entanto, ele lembrou-se da memória abrigada naquele peixe, e por isso, decidiu deixar sua esposa comer o primeiro pedaço.. Ela tirou um pouco da carne dele e colocou em seu prato. Pegou um pouco da carne deste e o levou a boca com o garfo. Mordeu e mastigou o pedaço e , como num passe de mágica, a esposa olhou para o senhor com o mesmo olhar cristalino com o qual olhou para ele na memória. Esboçava um sorriso que, apesar de não estar completamente aparente por conta de uma de suas bochechas estar cheia de carne, era facilmente notável.

Ela mastigou o pedaço mais vezes e o engoliu. Em seguida, perguntou ao seu marido como os peixes que ele cria em seu viveiro podem ser tão gostosos quando fritos. Era como se cada garfada trouxesse um sabor especial, tal qual uma emoção boa carregada por lindas e preciosas memórias passadas.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 17/11/2023
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