Trem Fantasma

Andreza corria por todo o depósito da loja. Rolos e mais rolos de tecido a cercavam. Ela estava um pouco sobrecarregada com o tanto de informação que todas aquelas cores, estampas e texturas lhe traziam. Mas apesar disso seu olhar estava focado. Ela sabia o exato tom de azul que procurava. Ela já tinha visto como ele lhe cairia bem, na espiada que deu pela fechadura do futuro, naquele outubro, 3 anos atrás.

Era dia das crianças, e um parque itinerante estava montado na praça da sua cidade, em sua última semana ali. Andreza não conseguia ficar muito tempo, porque as luzes, confusão e barulho a deixavam entorpecida. Mas hoje, era exatamente disso que precisava, e por isso aceitou o convite de sua irmã para irem juntas e reviverem um pouco das memórias que tinham daquele lugar.

Aos 23 anos de idade, Andreza havia acabado de se formar na faculdade a 2 meses atrás, no meio do ano. O que era horrível, porque se tivesse se formado no final do ano, teria as comemorações de natal e ano novo para ocupar a mente. Mas por outro lado havia ganhado alguns meses para descobrir o que queria fazer da vida antes de encontrar os parentes mais distantes. E ela tinha ideias, mas nada lhe dava a certeza de que precisava para realizar algo ou a coragem para tentar e não conseguir.

Ela e sua irmã conheciam todos os brinquedos daquele parque, uma vez que ele nunca mudava. Mas tinha um brinquedo que elas nunca tinham ido. E quando o viu, Andreza sabia que era nele que ela precisava ir. O trem fantasma, de vagões lentos, onde você se sentava e percorria o escuro, esperando os atores fantasiados te assustarem. Não é que elas tivessem algum medo desse trem, mas seus pais nunca as deixaram ir quando eram mais novas. Algo sobre o capeta chifrudo segurando um tridente que ficava sobre a entrada. Mas agora, ele era chinfrim pros demônios que Andreza enfrentava. Após alguma insistência, e contando com a pena que sua irmã tinha por ela nesse momento, conseguiu convencer a pobre a lhe acompanhar na atração.

O passeio começou exatamente como o esperado. Um morcego passou voando por cima e de repente um vampiro saiu de trás de uma pedra falsa, um túmulo escondia um ator vestido de zumbi, e por aí vai. Até que ela o viu. Na próxima curva, um pote de argila tampado, que parecia emitir um leve brilho no escuro que estava o túnel do brinquedo. Ela mirou nele e quando o trenzinho fez a curva, ela o apanhou.

O brilho saía de algo escrito nele. Ela tentou ver melhor, e mostrou pra sua irmã: “olhe isso!” que nem ligou porque quando olhou na direção do pote, não viu brilho nenhum, continuava no breu. Andreza o aproximou dos olhos e passou os dedos na inscrição: “Para um perdido, futuro”, ao que teve a sensação de que ela brilhou um pouco mais. Abriu o pote tentando ver dentro, e viu. Viu clara e nitidamente. Viu, e o que viu brilhava aos seus olhos.

Ela estava linda, radiante, em um vestido azul celeste com detalhes bordados de pássaros no colo do busto. Comemorava em uma chácara 10 anos de casamento com um homem de estatura mediana, sorriso cativante e olhar muito bondoso. Ao redor da mesa, duas crianças pequenas corriam e brincavam. Um verdadeiro comercial de margarina. Mas era real. Era seu.

Tudo isso ela viu em uma só cena. E o que mais a marcou foi seu próprio olhar. Soube que era feliz, que estava muito contente. Então tinha dado tudo certo! Para estar satisfeita assim, vai dar tudo certo! Tinha achado seu propósito, alcançado seus sonhos e construído algo bom.

Ainda sentindo o choque da revelação, levou um susto quando o trenzinho passou por um solavanco e acabou deixando o pote voar de sua mão. Tentava olhar para trás pelo restante do trajeto para achá-lo, quando sua irmã a sacudiu: “Vamos Andreza!” Só então reparou que o percurso acabou. Deviam sair para que outros entrassem e os vagões percorressem novamente o mesmo trajeto. Andreza ainda estava estarrecida, mas, agora, era uma moça diferente da que tinha entrado no parque. Ela tinha a visão de seu futuro.

Naquela noite ela não conseguiu dormir. E pensarão vocês que com o passar dos dias e dos meses ela teria esquecido ou deixado em segundo plano a visão, como fazemos com toda novidade, seja ela boa ou ruim. Mas não Andreza. A cada dia, sua alegria se transformava em obsessão e agora ela media e avaliava cada decisão que tomava. Talvez, comendo esse biscoito, ela não consiga chegar à ter aquela pele que viu. Talvez, se recusasse a festa que não queria ir, não conhecesse seu futuro marido, e iriam ele e os filhos perfeitos juntos para o ralo do que nunca aconteceria. Passava as noites em claro calculando quantos anos ela devia ter na paradisíaca cena e quantos anos tinha até chegar lá. Com filhos daquelas idades, quanto tempo ela devia ter tido de casamento, e portanto, em quanto tempo precisava conhecer o homem dos sonhos.

Sua inquietação crescia, porque não sabia como chegar lá. Havia sido um deslumbre, faltavam muitos fatos. Como na cena não aparecia o nome da empresa onde trabalhava, começou a deixar de lado oportunidades de carreira, porque o mais importante era chegar ao que viu e lhe parecia mais concreto na visão, apesar de ela ter sido enevoada. Se não entrasse em nenhum lugar novo, podia deixar passar alguém que seria importante de conhecer. Então entrava e saia de empregos e oportunidades com o máximo de 6 meses de quando entrava. Nunca criando raízes, nunca firmando amizades, nunca se comprometendo. Afinal, ela já estava dos pés a cabeça comprometida com sua visão do futuro.

Mas o tempo passava, e seu tempo de conquistar aquelas coisas, parecia cada vez menor. Ou como em seus piores pesadelos, já havia passado e ela teria perdido o vagão certo de onde devia ter pulado. Tentava calar suas crises de pânico com detalhes. Como o vestido. O tecido perfeito foi comprado, levado à costureira e mandado fazer e refazer várias e várias vezes. Todo mês Andreza achava nele um defeito, algo que não o fazia tão exato quanto o modelo da visão.

Sua família e os poucos amigos que lhe restaram se preocupavam muito com ela. Não só por quão vazia sua vida tinha se tornado. Mas até mesmo por quão perigosa. Ela passava horas na rua, sozinha, vagando, procurando entre os rostos desconhecidos aquele que tinha visto só uma vez, na visão. E Andreza, se sentia só. Ninguém viu o que ela viu. Ninguém apoiava seus sonhos. Mas ela sabia que iria provar a todos que estavam errados.

Aos 37 anos de idade, Andreza estava com seu vestido azul e penteado impecáveis. Conferia a decoração da mesa e tudo parecia perfeito. “Quer alguma ajuda, sra?" perguntou um dos funcionários da chácara. Com o olhar leve ela respondeu: “Não precisa. Só por favor confirme se meu marido já está descendo? Os convidados já devem estar chegando! Vou lá fora ver as crianças, elas sempre se sujam na primeira oportunidade.” Ela foi até a porta, a abriu e olhou para o jardim. Focou seu olhar em uma margarida. Era tão bonita. Podia ver os vultos de seus filhos correndo no canto de olho. Estava tão feliz!

Quem via da rua uma mulher de vestido azul e cabelo arrumado parada à porta em frente ao centro de atenção psicossocial, se indagava sobre o que a levou até ali. O que a fez ser internada nesse lugar? Não era perigosa ao ponto de ficar trancada, mas louca ao ponto de não ter um lar. Mas estavam errados. Todos estavam. Ela tinha um lar, sempre em bodas, sempre em uma chácara feliz, sempre com crianças correndo e brincando e seu marido bondoso. Ela embarcou no trem, a muitos anos, com ingresso só de ida “para um perdido futuro”.

Angélica Villon
Enviado por Angélica Villon em 09/11/2023
Código do texto: T7928106
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