Luísa

1

Em 31 de dezembro de 1999, às 23h59, o mundo inteiro se preparava para a grande virada do século. Em contrapartida, no mesmo instante, vinha ao mundo Luísa. Quando já se entendia por gente e se deu conta do dia em que havia nascido, colocou na cabeça a ideia de que teria habilidades especiais e, por isso, se diferenciava das outras crianças. Costumava dizer às amigas que tinha os ossos mais resistentes do mundo e, não sendo o bastante, poderia voar a alturas inimagináveis. Infelizmente, para ela, seu sonho acabou no dia em que tentou pular do primeiro andar do prédio onde seus pais moravam. A queda acabou por quebrar suas duas pernas – mas não sua imaginação. Na mesma semana em que saiu do hospital, ao ser colocado em debate a veracidade de suas habilidades pelas amigas, simplesmente disse que as havia perdido naquele dia. Segundo ela, era uma espécie de sinal. Explicava-se:

-Duas pernas, duas habilidades. É tão óbvio! – Disse Luísa às amigas.

Um tempo depois, após ter a movimentação completa dos membros, contou aos pais que se sentia mais forte e que queria ser velocista. “Eu me sinto mais rápida. Vocês vão ver, vou ser a número um do mundo! Mais rápida até que um raio”. O pai, que não era muito familiarizado com analogias, naquele mesmo dia pesquisou na internet a velocidade que um raio poderia atingir. Trezentos quilômetros por hora!

- Filha, você sabe qual a velocidade de um raio? – perguntou certa noite.

- Não, mas quero ser mais rápida que ele! – disse Luísa.

O pobre pai de Luísa dormiu confuso aquela noite, pois como diria Amelie: eram tempos difíceis para os sonhadores.

Na primeira corrida em que participou, Luísa chegou em último lugar. Ops, desculpe-me, estou contando os fatos de maneira errada. Ela nem sequer terminou a prova. “Não corra, menina! Ouviu? Não corra. Suas pernas passaram por um sério trauma.”, disse o doutor Anastácio, médico do postinho .

Desconsolada pela notícia, Luísa decidiu inventar uma nova modalidade: uma espécie muito estranha de corrida com as mãos. “É assim que se faz, Mãe” e saiu andando com os braços ao invés das pernas. Sua vizinha, Dona Marlene, achou aquela situação estranhíssima.

- Isso é obra do Diabo. Leva essa menina na minha igreja, Júlia, que eu dou jeito nela.

- Minha filha não tem problema algum- disse a mãe.

Porém, por insistência do pai e da velha Marlene, naquela tarde os Ferreira fizeram uma visita à Igreja dos Curadores. Luísa sentiu vontade de rir ao ver o nome estampado bem alto no letreiro, mas sua mãe deu um tapa de lado da orelha e mandou-a ficar quieta. O pai, mais uma vez, sequer notou nada. Entraram de fininho, meio tímidos com a situação.

O culto fluía e o pastor sacudia-se todo no púlpito – praguejando algo incompreensível, mas em tom forte e voraz. Os fiéis, mesmo sem entender bulhufas, gritavam de volta, pulavam, e se sentiam maravilhados diante da situação. Menos Luísa. Ela só queria correr como bem entendesse. Já no meio do culto, como uma última tentativa de convencer os pais a deixá-la correr à sua maneira, amarrou a saia abarrotada que vestia e saiu correndo naquela forma tosca e estranha, da qual muitos presentes, no ato, assustaram-se com tamanha excentricidade e, por que não, até certa habilidade. Ao perceber a situação inusitada, um membro da igreja, que estava lá na penúltima fileira, gritou: “NOSSO DEUS ESTÁ PRESENTE HOJE, IRMÃOS!”. E todos os queridos súditos da igreja dos Curadores, num ato inexplicável de catarse, passaram a imitar os mesmos trejeitos de Luísa. Até dona Marlene que, anteriormente, havia afirmado tudo aquilo ser obra do diabo, rendeu-se aos seus encantos. Naquela noite, todos se divertiram e dançaram bastante. Menos Luísa. Após se despedir dos membros da igreja e pegar uma carona de volta para casa, os Ferreira iam tranquilamente sentados no carro, até que, em um ataque súbito de fúria, Júlia olhou para o motorista e baixou a ordem:

- Encosta perto dessa árvore aí, seu moço!

Olhou para Luísa e disse:

- Você vai daqui até em casa a pé!

- Mas como assim, mãe? É tão longe! Você não pode fazer isso.

- Posso sim, rebateu Júlia, não só posso como vou ainda piorar..

E obrigou Luísa a ir até em casa naquela bizarra modalidade de caminhada.

Luísa viu todos os seus colegas rindo e fazendo piadas, mas não deu a mínima atenção a qualquer um deles – pois sabia que precisava ser forte.

Havia muito ainda por vir.

2

Era uma noite atípica de dezembro quando Mário recebeu a notícia de que a sua filha, até então só esperada meses depois, veio ao mundo. Apressou o passo em direção ao hospital sem esconder a felicidade ao perceber que seu rebento dava sinais de que “puxaria a ele”.

- Essa menina é avexada igual ao pai, sorriu, além disso, inventa logo de nascer nessa indecisão - comentou sozinho.

Enquanto andava a passos largos ao seu destino, Mário notou que o céu se emaranhava num tom azul claro e julgou ser estranho para uma noite chuvosa como aquela. “Não sou nenhum garoto do tempo, mas sei que há alguma coisa acontecendo por aqui”, pensou.

Como o mundo parecia acabar-se em água, Mário já estudava a ideia de achar algum lugar para se abrigar, quando, de repente, avistou uma tenda bem iluminada na estrada. A tenda, que facilmente poderia ser confundida como uma espécie de barraca cigana, precipitava-se no final de uma larga rua, e essa, por si só, desembocava em mais duas avenidas formando uma espécie de encruzilhada. Mário, como nós bem sabemos, era um sujeito curioso e de modos um tanto quanto espevitados; sendo assim, alinhando curiosidade com necessidade, decidiu entrar e aguardar até que a chuva desse um mínimo de trégua e ele pudesse seguir seu rumo. Ao colocar o pé esquerdo dentro da tenda – sim, o pé esquerdo, pois segundo Mário era a única forma de entrar em qualquer lugar desconhecido – sentiu uma sensação estranha logo de imediato. Sequer pôs o segundo pé lá dentro e já escutou uma voz rouca vinda lá dos fundos:

- Se veio esperar a chuva passar, está no local errado.

Sabendo ser essa a sua verdadeira intenção, Mário achou melhor apelar para a mentira e optou por dizer qualquer coisa somente para se manter abrigado.

- Por acaso vocês têm algum telefone por aqui? Preciso fazer uma ligaç…

Antes que pudesse terminar a fala, a voz personificou-se na sua frente e Mário se deparou com um senhorzinho de cabelo grisalho, meio desajeitado, e recém saído de uma porta que, olhando agora mais de perto, parecia ser apenas uma passagem que levava de um cômodo interno à saída externa do estabelecimento.

- Se veio aqui para fazer uma ligação, está no local errado! - disse o velho de maneira ríspida.

“Se você estiver procurando o lugar errado, aqui parece ser o local certo. ” – pensou Mário com um sorriso no rosto. No mesmo instante em que tal pensamento lhe ocorreu, o velho fechou ainda mais a cara para o seu lado e, como se fosse um adivinho da imaginação alheia, olhou bem fundo nos olhos de Mário e disse:

- Suas convicções, suas idéias e muito menos suas zombarias farão qualquer sentido aqui.

Perplexo com a ideia de que, talvez, o velho pudesse ter escutado seu pensamento, Mário lembrou daquele antigo livrinho do qual lera quando ainda criança; o livro, com letras grandes e garrafais, dizia: “Não entre em pânico”. E, devido a todas as circunstâncias, era tudo o que não se podia fazer.

- Olha, eu não vim aqui zombar de ninguém. A única coisa que quero no momento é esperar que toda essa chuva passe e eu possa sair daqui o mais rápido possível.

Tentando um tom mais suave, minimizando o clima tenso que se instalara, Mário perguntou:

- O que é este lugar? Um bar (apesar de não haver mesas ou cadeiras) ou uma espécie de... templo?

- Se você desconhece o lugar, talvez não devesse estar aqui.

- Calma, cara, só estou perguntando… respondeu Mário.

Ali não havia mais jeito, pensou Mário, o cara era duro nas respostas e não teria como amansar aquele velho estranho-old-school com cara de Raul Seixas aposentado. Ou seria Paulo Seixas? Vagou-lhe na memória o nome correto e sobreveio um instante de dúvida. Dissipou-se logo em seguida pela conclusão: é Paulo! Claro! Como esqueceria? De repente se deu conta de onde estava e disse:

- Olha, a chuva está grande lá fora, e eu vou esperar até passar. Tudo bem?

- Para ficar, precisa pagar. O que você tem a oferecer? – disse em tom ameaçador.

No bolso gasto e surrado do Jeans não havia mais do quinze ou vinte reais; resoluto, concluiu: “dinheiro não é uma opção. Luísa vai nascer e não posso sair gastando assim, à toa..”. “O que eu posso oferecer? Eu não tenho nada, pensou, e sentiu o martelar das palavras dentro de sua cabeça. De repente lembrou-se de algo, já contado e recontado no fundo de sua memória. Disse:

- Eu posso te oferecer uma história, amigo, uma história da qual você nunca escutou. Uma história tão boa, mas tão boa, que até eu duvido dela às vezes.

- Conte. – disse o velho com uma expressão de desprezo.

Só havia um problema: Mário não sabia qualquer história.

O acontecimento vindouro foi um enigma. Repare: Mário não saiu sozinho dessa situação, pois, como mandada por Deus, se bem que, nesse caso, acho que foi pelo diabo, uma torrente de água feroz descambou rua abaixo levando carros, casas (inclusive a cabana cigana) e, por cima de todo aquele fluído preto, sujo e lamacento, Mário e o velho, como parodiando Cristo, flutuaram por sobre as águas naquela esquisita noite de dezembro.

3

Ao dar entrada no hospital, Júlia não se deu conta de que, a qualquer momento, a coisa mais incrível do mundo estaria prestes a acontecer. E não, não era a virada do século ou “bug do milênio”. Muito menos a adesão do canal do Panamá ao próprio Panamá. Tudo bem que são momentos especiais, mas esse não é o ponto agora. Foco na história.

Júlia, agora com seus trinta e três anos, havia marcado seu parto para fevereiro, feriado de carnaval, pois julgou conveniente que sua filha nascesse em uma época festiva, no meio daquela algazarra de blocos e festejos. O que parecia ser algo estranho, para Júlia não parecia, já que sabia exatamente o que estava fazendo. No entanto, indo na contramão dos desejos de sua mãe, Luísa resolveu vir dois meses antes, pois não era o tipo de menina que seguia a regra padrão das coisas; sua forma de viver era baseada na não-linearidade, na instável forma de romper com tudo, especialmente com a normalidade.

Júlia deu entrada no hospital às oito e trinta da noite, hora exata em que comunicou, com alvoroço, a urgência da situação: “Corre aqui que tua filha vai nascer, homem! “.

Empurrada por uma espécie de maca improvisada pelas enfermeiras, Júlia foi colocada em uma sala com mais quatro ou cinco mulheres na mesma situação de parto. Um jovem médico de aproximadamente vinte e cinco anos entrou no cômodo, fez alguns exames rápidos e disse: “Quase não há dilatação. Deixarei você aqui por um momento e mais tarde retorno para checar o caso. “ – e saiu apressado.

- Esses médicos de hoje em dia – comentou uma jovem ao lado – parecem perdidos.

- Espero que se encontrem até a hora do meu parto – comentou Júlia.

Pouco tempo depois, o médico retornou, indo diretamente para o leito onde Júlia está deitada.

- Você está com sua pilha de exames? Preciso vê-los.

- Não tenho.

- Como assim não tem? Você não teve nenhum acompanhamento durante a gestação?

- Olha aqui, doutor, eu não sou muito de me apegar a essas coisas, não. Antigamente, ninguém precisava de muita parafernália.. Era só ter e pronto.

- É que.... – hesitou o médico ao falar.

- Desembuche logo, que aqui ninguém gosta de enrolação. – disse Júlia impaciente.

- Nós não identificamos nenhuma evidência de gravidez. - disse de pronto.

Dada a resposta do jovem médico, Júlia encolerizou-se:

- O doutor só pode estar de brincadeira! Há sete meses eu sinto essa menina chutando aqui dentro, virando de um lado para outro, empurrando com os pés e mãos como se pedisse passagem. Conversei com ela noite após noite. Cantei, chorei e abri mão quase tudo por essa menina; aí agora o senhor, uma hora dessas da noite, vem me dizer que não estou grávida. O doutor só pode ter enlouquecido. Me tirem daqui agora! Agora!

Todos na sala permaneceram imóveis e Júlia pôde ver no rosto de cada um aquela expressão não-verbalizada que descrevia, entre outras coisas, o julgamento de uma massa que não se sensibiliza com nada, mas aprecia ver tudo. Aprecia a dor, a loucura, o voyeurismo das coisas diferentes e assiste a tudo isso como uma espécie de entretenimento; como um reality show da vida real, nua, cruel e ao mesmo tempo sedutora.

Ninguém a ajudou em sua saída, pois era mais umas das coisas que precisava fazer só. A felicidade só tem sentido quando compartilhada, disse aquele jovem louco que se embrenhou na mata, mas, quando nos vemos cercados por lobos, temos a escolha de não fazer parte da alcateia. Temos a escolha da não aceitação. E então, não sendo objetificados como simples lobos, adentraremos na floresta como leões ferozes - e, a partir desse momento, seremos reis.

Ou rainhas – pensou Júlia. Ou rainhas.

4

Depois da vergonha que passara na noite anterior, Luísa, que agora sentia-se apta a colocar o rosto para fora de casa, concebeu para si mesma que deveria, por ora, abandonar a ideia absurda de ser uma velocista. Eu não sou tão rápida assim, sou? – Concluiu. E mesmo que fosse, valeria a pena levar chibatadas nas costas por tal ato? Ah, não valeria, não! – pensou consigo mesma. No mais, estava prestes a completar os seus tão sonhados dez anos de idade e deveria agir como tal – com a maturidade de alguém desta idade, pois uma jovem de dez anos não poderia ter na cabeça essas sandices concebidas por crianças de.... nove anos. No entanto, o destino não estava nem um pouco se importando para a fertilidade da imaginação de Luísa, dado que, de maneira inesperada, alguém cisma em tocar à campainha de sua casa e ela corre para atendê-la. Antes de abrir a porta, Luísa aproximou-se do olho mágico e espiou de leve quem a estava importunando logo cedo – era por volta das dez horas da manhã. Sim, dez horas é cedo, ora! Do outro lado da porta, um senhorzinho de aproximadamente uns quarenta ou setenta anos – era difícil dizer, o homem estava acabado! - Esperava impacientemente que alguém o atendesse. Na cabeça de Luísa, por detrás daquele umbral que os separava, ela, sem deixar transparecer, chegou a achar graça ao ver aquele homem meio jovem, meio velho, com uma barba que lhe pendia pelo queixo e umas vestes que, para Luísa e para qualquer pessoa sensata, poderiam ser facilmente confundidas com roupas teatrais, de algum circo itinerante. O homem misterioso usava um lenço por sobre parte de sua cabeça e, como combinando estranhamente com o adereço posto na sua crista, utilizava uma blusa branca com um colete preto por cima.

- Quem é? – disse Luísa.

- Fale sobre mim para o seu pai, diga como me visto e como me porto, que ele, de certo, saberá do que se trata – disse o homem.

- Moço, eu preciso de um nome. Meu pai não lembra nem do dia em que nasci, quiçá de outras coisas. – rebateu Luísa.

- Oh, minha menina, hoje, hoje ele lembrará. Com toda a certeza lembrará! Apenas o comunique; e seja breve. Não temos tempo! – resmungou o velho.

- Espera aí que eu já volto.

Luísa afastou-se da porta e foi procurar seu pai para avisar daquela visita inesperada. Deu cinco passos – sim, era uma casa pequena, mesmo - e encontrou seu pai sentado na cadeira de balanço. Mário balançava-se enquanto tentava, desesperadamente, cortar, com os próprios dedos, a unha do seu dedo mindinho do pé. Ele não gostava de tesoura e objetivos pontiagudos, de modo que tarefas simples, como cortar a unha, tornavam-se um estorvo em sua vida. Pior que isso, só visitas sem hora marcada. Como que para alinhar seu pensamento à realidade, eis que chega Luísa dizendo:

- Papai, tem um homem aí na porta. Ele veio visitar o senhor.

- Que homem? - questionou Mário.

- E eu lá vou saber? É um homem meio velho e meio novo. Diz ser seu amigo. Quer dizer, ele não disse ser seu amigo, mas disse que conhecia o senhor. Me disse, também, que eu deveria falar sobre seu jeito de falar e o senhor, na hora, saberia dizer quem é.

- E como é o jeito dele de falar? – Mário não tinha a menor ideia de quem poderia ser. Não era bom com nomes, nem com vozes alheias.

- É estranho. Ele parece com Jesus e fala meio que como ele também – por parábolas. Luísa, ao proferir essas palavras, lembrou-se das aulas que tinha aos domingos na Igreja onde aprendera trechos selecionados pelo próprio Deus.

- Deve ser algum testemunho de Jeová. Deixa que eu vou lá olhar. Fica aí. – disse para Luísa.

Mário levantou lenta e vagarosamente da cadeira de balanço e dirigiu-se sem vontade alguma em direção à porta e, sem um pingo de cautela, diferente do que fizera Luísa, abriu-lhe logo de uma vez. “Sem arrodeio”, como costumava dizer. Ao abri-la, deparou-se com uma figura esquisita e, antes que pudesse dizer algo, sua memória retornou àquele dia chuvoso de dezembro, poucos antes da virada do milênio, onde o mundo havia se acabado em água.

Quer dizer, aquele dia em que toda a gente achou que o mundo acabaria em água.

5

Era por volta de dois mil e nove. Jesus tinha nascido há exatos dois mil e nove anos. O calendário passou a ser contado a partir da data em que Cristo veio ao mundo ou do exato dia em que foi crucificado e morreu? Fosse em seu nascimento, pensava Ernesto Souza & Brito, estaríamos cometendo um erro crasso. Foi com essa ideia louca que Ernesto, peça chave do fim de nossa história, batia à porta dos Ferreira. O cabra era católico doente, não havia homem no mundo que o fizesse ceder às suas convicções. No entanto, a fim de passar uma ou outra história a limpo, de mais ou menos uns nove anos atrás, apresentava-se ali em frente àquela residência em busca de um fato que lhe custava descer goela abaixo: a noite da enchente – a ocasião era, não esqueçam ainda, também a noite do nascimento Luísa.

............

De longe, Júlia, chegada pouco do culto das mulheres – sim, havia um culto específico para as varoas - observou aquele homem subir os degraus do patamar de seu jardim e tocar-lhe a campainha:

- Mas quem será a uma hora dessas? – o sol queimava forte e Júlia, como se finalizado agora o culto, sabia serem exatas dez horas da manhã.

Ao ver aquela mulher se aproximando à largos em sua direção, Ernesto desatou a bater cada vez mais forte na porta. Abrindo-a, Mário, sem reconhecer rosto à figura, inquiriu logo em seguida:

- Eu num disse que era um testemunho de Jeová! - riu.

- Esqueceu-se de mim, ao que parece. - disse Ernesto Souza & Brito.

Mário, como eu já disse e volto cá a dizer, dada a sua rara capacidade de esquecer-se de tudo – ou de não se lembrar de nada-, matutava pouco, ou quase zero, a lembrança nostálgica com aquela fisionomia esquisita e aquelas roupas circenses.

- Claro, lembro sim, mentiu para desfazer-se da visita, você é aquele senhor da igreja dos Curadores. É claro que não esqueci! Como Mário era um sujeito de casa, trabalho e culto, concluiu, assimilando pouco as ideias, de que aquele senhor só poderia ter vindo da igreja.

- Há nove anos, você me prometeu algo. Aqui estou e venho de longe – de muito longe – e desejo reaver o que é meu. Você me deve uma história, Mário. Estou aqui para buscá-la.

Antes que Mário pudesse proferir qualquer palavra em resposta, Júlia entrecortou o diálogo que ali ocorria e bradou severamente:

- Leve Luísa para dentro e me espere lá! E como Mário ainda hesitasse um pouco, baixou logo a ordem:

- Agora!

Sem pestanejar, Mário entrou e deixou a sós sua esposa, Júlia, com aquele estranho visitante.

6

O que se segue agora é um relato vivo do que realmente aconteceu naquela noite chuvosa de dezembro, quando o mundo precisou novamente de uma arca – mas já não havia Noé. E confesso-lhes, nem precisou. Digo-lhes, ainda, tão somente por não querer interferir nas palavras de Júlia, limito-me simplesmente a repeti-las.

Eis o relato:

“Mário não há de contar essa história, meu caro Ernesto Souza & Brito, pois quem irá fazê-lo sou eu. E não ache isso efeito de mera casualidade, pois claramente não é. Deus, nosso pai, engendrou de tal forma nosso encontro, e eu seria capaz de jurar de pé junto que tudo não passa de miragem. Como não é, cabe a mim, agora, não por merecimento seu, mas por desencargo de consciência, rememorar aquela noite transformadora em nossas vidas: a minha, a sua e, mais ainda, a de Luísa.

Quando me lancei porta afora daquele hospital, logo após bradar insultos ao jovem doutor, senti uma contração forte na ponta da barriga. Se era Luísa, isso não posso dizer, mas algo mexia e remexia aqui dentro, como bebê prestes a nascer. O que eu sei, é de uma nuvem negra, antes serena no horizonte, decidiu de súbito mover-se – até estacar em cima de mim e despejar tamanha carga d’agua que eu, caso quisesse, mas não quis, poderia nadar em suas gotas. Na hora, as vistas embaçaram-se e a mente turvou-se. Clamei com gritos de desespero por ajuda, contudo não as encontrei. A barriga doía, as contrações diminuíam seus ciclos e eu, em desespero, agonizava em passeio público. Não houve sequer uma mão para acudir tal desgraça, menos ainda criatura ou homem para me socorrer. Estava só. Estava, mais uma vez, só. Onde estaria Mário, com suas piadas e sandices? E o pastor, que tanto dizimara meu cofre com seus pedidos inoportunos e suas inquisições celibatárias, onde estava? Olhei para um lado e para o outro e não vi uma só pessoa, meu caro Ernesto Souza & Brito, - uma só pessoa! - apenas vazio e água por todos os lados.

Não pense, você, que eu escapei impune desta maldita situação – não escapei; e as marcas na memória me tiram o sono até hoje. Talvez você esteja se perguntando como sei de cor o seu nome; lhe digo agora: foi Gabriel quem me contou.

Gabriel é o anjo, seu Ernesto, o anjo cuja dádiva do nascimento me foi dada em uma forma humana. O sucedido, o surgimento do Anjo Gabriel, exatamente, não lembro, só sei que apareceu para mim de carne e osso como se fosse gente. Parecia gente, mas não era, disso tenho certeza.

Momentos depois a barriga parou-me de mexer e, quando dei por mim, já se encontrava Luísa atada aos meus braços. Uma criaturinha linda e chorosa – chamada Luísa.

Era perfeita. E ainda é.

................

Passados alguns instantes, Mário e Luísa, observando haver completo silêncio no lado de fora, decidiram dar as caras e saíram cruzando a porta em direção à rua. Lá fora, avistaram Júlia e o velho fitando-se, observando cada trejeito um do outro. .

Finalizado o monólogo, era a vez de Ernesto Souza & Brito explicar-se:

- O tempo é curto, Dona Júlia, pois que é chegada a hora. Devemos ir?

Luísa, Júlia e muito menos Mário – o que já era esperado – entenderam as falas do estranho. Júlia resolveu, por fim, quebrar o silêncio ali visto:

- Nós não o conhecemos, Ernesto. Apenas sei seu nome, e o porquê de saber também desconheço, mas sei seu nome. Afinal de contas – disse de uma vez – quem é você?

- Eu já expliquei para a senhora, Dona Júlia, a questão fatídica é a de que não lembra. E se lembra, finge. Os fingimentos não fazem parte de minha trupe – não pertencem ao meu plano. Torno a dizer e, nesse volta e desvolta, o tempo esgota-se, e quando por fim ele acaba, todas as coisas se vão. Digo, no entanto: não estou aqui por acaso; fui ordenado. E quem me incube desta tarefa não os interessa. Cumpro o ordenado e vou embora – é sempre assim.

Todos continuavam sem entender coisa alguma.

A nossa história irrevogavelmente se aproxima do desfecho, meu caro leitor, e cabe a mim dizer-lhe onde me encaixo nessa desventura.

Sou eu o senhor da igreja, citado por Mário, pouco tempo atrás, quando Ernesto Souza & Brito bateu à sua porta. Sou ele, o senhor da igreja dos curadores e fiel narrador desta memória. Estou agora com meus oitenta e tantos anos, e até a data de hoje não consigo sonhar com outra coisa além daquilo que vi acontecer em semelhante dia. Há momentos em que finjo para mim mesmo, maldizendo meus próprios olhos, e lembro deles, gastos e surpresos, por um instante, permitindo o vivenciamento de tal mistério. Confesso que me assombra: um senhor de oitenta anos amedrontado por tal façanha! Ora porra! Aqui mesmo no fundo de meu quarto, no claro do dia, redijo com temor cada palavra que ponho no fundo deste papel. Alguns fatos, eu mesmo presenciei, outros, colhendo pitacos aqui e ali, descobri conversando com bocas que mais abrem do que fecham. Vantagem para mim, pois sou ruim de boca e bom de ouvidos. Como já estendi-me demais, lhes direi o que vi. Se achar o procedê das linhas mentira, não lhes tiro a razão; eu mesmo custo a acreditar.

Eu estava ali, na quina da rua, por detrás de uma árvore – cuidando da minha vida – quando avistei tudo acontecer. Consegui ver as quatro pessoas aglomerando-se umas de frente para as outras: a família Ferreira e próximo deles Ernesto Souza & Brito. Não se ouvia palavra: tal qual roda de surdos. O vento percorria a rua, parando de quando em quando e voltando a bafejar para deixar que as folhas corressem com seu soprar, ou estancassem, com seu parar. Os carros antes em meio a profusão do tráfego, atarefados, decidiram inesperadamente suspender suas idas e vindas. Na rua não se movia nada: pessoas não caminhavam, automóveis desviavam de suas rotas, sorveteiros resguardavam-se em casa. Juro: naquele instante senti o mundo tornar-se estático. O globo parara, e só o vento agora podia transitar. Um calafrio percorreu-me a espinha quando escutei um estampido vindo dos céus, ou da terra, ou de qualquer lugar. O estrondo foi tamanho que me tornei mouco.

Cessaram os sons. Achei-me em absoluto silêncio.

E vi, num horizonte azul e límpido, certa criatura, como reivindicando o que era seu por direito, tomar seu prêmio.

E o quite do soldo era Luísa.

Quando avistei semelhante graça subindo aos céus, não consegui distinguir a realidade de ficção, certo do errado, o sublime do mágico.

Quebrou-se algo dentro de mim.

Em um instante, em um mínimo instante, pareceu-me que já não era mais Luísa que ali galgava ao cosmo, e sim Elias, em súbito acesso de glória divina, com carroças de fogo a conduzir-lhe, sendo tomado por um deus e flutuando de forma apoteótica em direção ao infinito. Ao infinito.

A dívida foi paga.

JS Marinho
Enviado por JS Marinho em 06/11/2023
Código do texto: T7925678
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