Meu filho homossexual

Morri faz tempo e perambulo há algumas décadas por toda São Paulo, particularmente nas minhas terras na região de Campinas, onde herdei de meu pai uma responsabilidade ancestral: cuidar da propriedade da família Oliveira. Abastada durante o império, meu pai tinha 100 escravos, porém era um dono bom e não pesava o chicote em demasia e, quando batia, fazia questão de rezar e conversar com sua propriedade humana, o que criava um clima harmonioso entre brancos e negros. Enfim, vinda a abolição, veio alguns problemas financeiros e vendemos valiosos investimentos para pagar dívidas. Não se preocupe, leitor, tudo deu certo no final e, aos 70 anos, em 1905, ele foi ao paraíso e assumi suas ricas terras, terra dos Oliveiras.

No entanto, quando eu morri, eu fiquei aqui. Ao fechar os olhos, um breu inconsciente, o qual encerrou-se com um despertar numa planície cinzenta, nevoada e fria. Por alguns segundos, apavorei, pois pensei que iria para o inferno e que logo logo algo terrível pegar-me-ia por trás e levar-me-ia para as chamas milenares. Todavia, sempre fui um bom católico, então, mantive a compostura e andei por essas terras, perguntando-me: onde estou? Nalgum momento encontrei uma casa cheia de imigrantes italianos e não entendi qualquer coisa que dissessem e nem eles me enxergavam, mas pus-me a segui-los até chegarmos à cidade de Campinas e localizei onde estava e aonde ia: ver meus filhos.

Tive 12 filhos com minha amada Patrocínio, um nome não muito comum à sua época, leitor ainda vivo. Ambos fomos bons católicos e ensinamos nossas crianças todas as virtudes cristãs. Minhas meninas foram à Europa, estudar o francês e o inglês. Uma delas casou-se com um veterano da Primeira Guerra (conhecida no meu tempo como "Grande Guerra"), veterano esse que era brasileiro, mas voluntariou-se pela França contra os agressores hunos. Meu genro era meu filho, minhas filhas, meu amor, e meus filhos tornaram-se homens exemplares: médicos, juízes, empresários e advogados. Todavia, todos meus dramas e, creio eu, as razões para encontrar-me no limbo sejam esta: meu varão homossexual, uma adaga à minha alegria, ao orgulho do sobrenome Oliveira e ao nome de Deus. Ele se suicidou, pois não suportou o fardo de sua doença psicossexual e da pressão o qual eu o colocava cotidianamente. Isso me abalou profundamente, meses depois, morri de amargura.

Nem estou digitando, quem digita é o medium ao meu lado. Antigamente, chamá-lo-ia de bruxo e de curandeiro, mas agora não quero ofender quem escreve por mim e vejo que o tal do Espiritismo parece uma religião razoavelmente correta. "Sei lá", como diria os modernos, afastei-me da Bíblia, da Igreja e da teologia. Precisava de algumas décadas sozinhos, vagando por São Paulo e observando meus netos casarem, comprarem suas casas e irem morarem na Europa ou nos EUA. Muitos são falsos católicos, mornos sem fé, alguns são ateus, outros nem são mais brasileiros e esqueceram a língua portuguesa. Contudo, são tantos tataranetos! Não consigo acompanhar a vida de todos e foquei naqueles os quais herdaram a fazenda do meu pai. Vi, de mão em mão, cair aos pedaços, apodrecer a madeira, acumular marginais, entrar nos processos judiciais e ser vendida para um casal de judeus lá para 2002. Enraivecido, quebrei vários objetos e gritei em suas orelhas semitas. Esperneava e chorava, pois matei meu filho e a decadência da fazenda era culpa minha . Eu queria estar vivo para concertar tudo, para dizer-lhe, ao meu varão, que eu o amava muito e que, se fosse para estar doente, eu aceitá-lo-ia como ele era.

Todavia, eram dados à ciência e não acreditavam na minha presença, mas cansei-os até chamarem um medium, um escritor, o qual escreve agora minhas memórias.

E estas são elas:

Desde a tenra idade, vi que ele não era o mais viril dos meninos e que preferia as brincadeiras das irmãs do que as lutas entre "moleques". Dei-lhe uns tabefes por essas e por outras, até transforma-lo em um homem razoável aos 16. Lá, ofereci-lhe a filha mais velha dos Albuquerque, família muito ligada ao comércio de laranjas, algo que ele aceitou de prontidão, alegrando-me. Todavia, não teve filhos e não tocava em sua esposa, uma nora dócil e educada com minha esposa. Perguntei a ele qual era o problema, mas "fechou a cara" e disse: faço tudo que mandas, porém bem que desejo a morte". Dei-lhe outro no rosto, pois os jovens devem respeitar os mais velhos. Então, viajou ao Rio para ter um tempo a sós, talvez lhe fizesse algum bem, talvez lhe desse alguma noção dos negócios.

Os meses se passaram e boatos cariocas surgiram, difamando a honra de meu filho, a nobreza de seu caráter moral e sua virilidade como um homem herdeiro de terras. Diziam que ele era cliente frequente de salões de sodomia e que satisfazia sua imoralidade com rapazes travestidos de moça. Dei as caras em seu apartamento e conheci seus amigos afeminados. Irar-se é pouco: quebrei objetos e soquei alguns "gays". Quando vi meu varão com vestidos franceses e batons vermelhos, pensei que morreria num ataque cardíaco! Peguei suas orelhas e o levei à cidade de Campinas, onde o internei num desses psicólogos e deixei-o a clérigos católicos. Chorei tanto nessa época. Eu carreguei esse menino no colo e beijei sua testa pálida minha vida inteira. Um bebê grande, eu lembro, e ele foi a alegria de meu pai, que foi-se ao céu sorrindo.

Entrei em "depressão", porém a época chamava isso de "melancholia" e fui a Santos para banhar-me no mar e pensar na vida. Rezei profundamente nas igrejas de lá, estudei pouco de teologia e conversei tardes inteiras com padres sobre a salvação de meu amado filho. Nalgum momento senti-me pronto para voltar e, quando voltei, minha nora estava grávida de seu marido e ele estava recuperado! Dei uma grande festa, chamei até alguns negros velhos de meu pai para um recanto mais sossegado, onde também poderiam comemorar. Duas gêmeas chegaram ao mundo, duas louras lindas, e pensei que tudo tinha se acabado. Daqui em diante a família Oliveira seria feliz para sempre!

E viajei junto a elle para a Europa! Fomos à Paris e bebericamos cafés com grãos brasileiros, comendo pães chiques pela manhã! Minha nora era muito carismástica e traduzia meu portugues aos transeuntes franceses, curiosos para saber mais sobre nosso "Brazilsão" (como diria os modernos). Quanta alegria! Vimos a Torre Eiffel antes dela ser bem-quista entre os franceses, paguei um pintor dessas vanguardas esquisitas para pintar um retrato nosso. Uma porcaria! Porém eu estava vivo junto ao meu "garotão" (como diria os modernos) e junto às minhas lindíssimas netas. Disse-lhe: filho, elas precisam estudar aqui! Aqui a cultura é boa e elas conhecerão um bom marido, assim como sua irmã primogênita. Ele era um sujeito carrancudo, mas estava sorridente nesses últimos dias. Amava-o tanto...

Porém, ele se jogou na frente dos trilhos e pedaços de seu corpo foram espalhados por vários quilômetros. Mancha sangrenta. Não deixou cartas e nem parecia triste nos seus últimos momentos. Eu era o culpado, tratei-o bruto demais, insistente demais e autoritário demais. Seu terno que lhe dei no seu casamento foi rasgado em pedaços. Gritei e bebi segurando retalhos de sua roupa na minha mão. Não voltei a trabalhar, deixei toda a administração na mão de um outro filho e passei meu últimos meses deitado na cama, rezando pela salvação de meu menininho. No fundo, sabia que ele estava no inferno e que sofreria por toda eternidade num fogo infinito, isso tirou minha resistência à qualquer doença e morri, segurando a mão de minha primogênita, uma mulher inteligentíssima, mamãe de um garotão e bem casada com um veterano da Grande Guerra. Senti certo alívio em morrer, estava com minha filha e iria para o céu...

Mas aqui estou, dizendo-lhe, leitor, que décadas se passaram e quero que ele esteja em um lugar melhor do que minha casa, melhor do que minha época. Não sei se estará, pois as Escrituras são claras, mas eu não sei se elas são reais. Vago pensativo pelas lavrouras modernas, repletas de maquinários e olho esses "gays" alegres e lembro de meu menino... O filho da puta nasceu na época errada, droga. Se eu encontra-lo nessas metrópoles, dar-lhe-ei um abraço, pedirei perdão e terei vergonha de olhar seus olhos azuis, azuis como os de minha esposa, querida minha a qual deita num singelo cemitério em São Paulo, tão triste quanto eu por essa tragédia. Não, ele não está no limbo que eu estou, eu não sei. Quanta coisa eu não vi por ignorância. Sou um ignorante. Isso eu sei.

Escritor que escreve minhas palavras, não quero mais falar. Acima brilha o sol e creio que estou pronto para deixar a Terra.

Diógenes Romã
Enviado por Diógenes Romã em 21/10/2023
Reeditado em 21/10/2023
Código do texto: T7914042
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