A poeira cósmica (ou como as coisas acontecem)
É estranho como as coisas, às vezes, acontecem.
Sem que delas possamos deter seu percurso e, quase sempre, nenhum controle das consequências, é fato que as coisas acontecem independentemente de nossas vontades. Não somos o demiurgo de um mundo em constante caos, em constante conflito, para que as coisas aconteçam. Somos, assim penso, apenas fragmento de um todo e, nesse sentido, parte integrante desse universo, como se diz, o pó cósmico não aspirado por Deus.
Sujeitos às mesmas leis que regem o universo, frente a elas nada podemos. Todavia, amparados da racionalidade (o que nos torna superiores aos demais seres) somos capazes de, ao menos, desenvolver mecanismos de proteção e antecipação. Porém, fato é, as coisas acontecerão com mais, ou menos, intensidade, mas acontecerão.
Embora, nos achemos infalíveis, impenetráveis às coisas externas, não há como negar: somos tão frágeis quanto o caule da flor ao sútil toque do vento. Nossa arrogância e nossa prepotência, como uma venda, nos cega tanto quanto a tempestade de areia. Esquecemos do cisco nos nossos olhos, e não nos achamos capazes de tirar o graveto de nossas mentes, tamanha nossa soberba; ignoramos o graveto.
Semelhantes às crianças soltas num parque de diversões ou numa loja de brinquedos, agimos como se tudo estivesse a nosso dispor e para nosso deleite. Nossa arrogância e soberba, tal qual o rei que determina quem vive, quem morre, não considera as consequências que nossas ações (ou inações) causam àqueles com os quais compartilhamos nosso planeta.
Até quando, ou por quantas tragédias, teremos que passar para que aprendamos e apreendamos noções básicas de que nada é infinito, que o planeta é de e para todos? Até quando os donos do mundo, e do capital, aprenderão que seus lucros e casas luxuosas e carros velozes, nada serão se a espécie humana for apenas uma vaga lembrança em alguma página perdida num diário qualquer?
A poeira cósmica não dissipou, estava escrito numa placa dependurada numa espelunca de beira de estrada num filme Nour.
Godard, Truffaut e Wenders, juntos e bêbados imaginaram o fim do mundo numa grande procissão conduzida por Fellini. Essa cena, surreal, porque trazia Dr. Fantástico como o grande mestre, me apareceu num sonho com Flávia.
Gigante, Flávia aparece como uma deusa metálica. É tão linda, tão inacessível, que todos que tentam tocar, são logo pulverizados, como se uma descarga elétrica os fizesse parecer mariposas ao contato com a luz. Flávia, a deusa metálica, não fala. Seus grunhidos são tão aterrorizantes que a seus pés existem seres com os ouvidos tampados. Godard, Truffaut e Wenders, três amigos, três homens fabricantes de ilusões, três bêbados ao som de Assim Falou Zaratustra. A poeira cósmica não dissipou, anuncia a placa dependurada numa espelunca de beira de estrada.
Seis horas. O dia nasce. Flávia deixou de existir.
Na porta da farmácia, seu Jorge, pai de Lucas, recorre aos favores de Marilda, esposa de Pedro, para que lhe ceda fiado o remédio do filho doente.
Seis e meia. Lucas dorme após a dose de morfina. É jovem, porém, desde que descobriu sua doença, como se soubesse o lhe resta de vida, está disposto a ler o máximo dos livros que um dia quis ler. Desta vez, porém, dorme o sono profundo da criança. Lucas, merece.
Sete horas. Na padaria, clientes apressados, tomam seus cafés com pães e manteiga na chapa. Nenhum, ao que parece, já ouviu falar de Godard, Truffaut e Wenders. Menos ainda, de Flávia, a deusa metálica. Todos, homens e mulheres, cada qual, a seu tempo, a seu contento, com seus saberes e fazeres, cada qual, nessa trajetória, incessante, extenuante, às vezes, vendem suas forças de trabalho, como se, e ninguém garante, ninguém pode garantir, o novo amanhã estivesse na prateleira do supermercado ou na vitrine de um shopping qualquer.
Homens e mulheres, talvez nenhum desses já tenha ouvido falar de Godard, Truffaut e Wenders; estão preocupados em levar pra casa o sustento que, talvez, nem dará para todo o mês. Homens e mulheres. Homens e mulheres, trabalhadores, com seus saberes. Flávia, a deusa metálica do sonho, não aparece mais.
Lucas, o moço doente, não precisa mais da morfina. Do mesmo modo que ficou doente, também, sem que os médicos conseguissem explicar, ficou bom. Ainda não voltou ao trabalho, mas seu Jorge, o pai, tem se mostrado mais contente. A possibilidade de depressão, no início da doença do filho, deu lugar a um homem mais robusto, mais ativo.
Marilda, a dona da farmácia, nem quis receber a dívida do seu Jorge. Disse que a recuperação do filho, o Lucas, era a paga mais agradável já recebida.
A placa dependurada na entrada da espelunca da beira de estrada, caiu numa noite de forte ventania. Soninha, a moça que prestava serviços para os hóspedes, três, às vezes, quatro, decidiu ir embora. "Cansada dessa vida de quenga", deixou escapar ao responder à Gertrudes, dona da espelunca. Partiu sem se despedir, deixou um bilhete na portaria em agradecimento aos anos de acolhida. Nunca mais foi vista. Houve quem disse que tinha se casado com um cliente, mas nunca se confirmou.
É estranho como as coisas acontecem, mas acontecem, quer tenhamos ou não qualquer possibilidade de intervir.
Lucas retornou ao trabalho. Godard, Truffaut e Wenders são lembranças constantes nos festivais de cinema. Flávia, a deusa metálica, apareceu pintada num mural feito por um conhecido grafiteiro.
A padaria mudou de dono e novos trabalhadores foram contratados. O chapeiro José casou com Joana, uma antiga cliente fã de pão com manteiga na chapa.