Os Fantasmas do Futuro

Eu a observei deitada na cama. Corpo virado para cima, olhando fixamente para o teto. Olhava com olhos bem abertos, como se estivesse presenciando uma assombração viva presente em carne e osso. Não movia quase nenhum osso, quase nenhum músculo. Tinha braços e pernas juntos e colados ao corpo, como se fossem abraçados por grossas e firmes amarras. As únicas estruturas que se moviam eram suas pálpebras e suas costelas. Estas últimas moviam-se discretamente. Se não fosse pela ajuda de um olhar mais atento e minucioso, iria parecer como se ela não estivesse respirando. Seus olhos estavam presos no teto, e somente após intervalos de vários segundos que eles eram fechados e lubrificados pelas pálpebras. Era como se, por um breve momento, ela não fosse uma vida em andamento, uma história em progresso. Era apenas uma existência. Um coração batendo, uma circulação sanguínea caminhando, vários processos químicos e fisiológicos acontecendo ao mesmo tempo dentro dela. Ela não saía do lugar, no entanto. Não poderia realizar seus desejos e vontades. Não tinha liberdade. Estava sendo atormentada por algo, porém não tinha ideia do que poderia ser. Ofereci comida e água para ela, mas ela não conseguiu se alimentar, nem se hidratar. Seja pelo fato das suas mãos estarem tão fracas por conta de um péssimo preenchimento da sua pele por sangue e estarem tão atormentadas por formigamentos nos fundos dos dedos; seja por um fechamento tão brusco e forte da sua garganta, impedindo até mesmo a entrada do mais minúsculo dos alimentos e o mais limpo dos líquidos; seja pela ausência do seu apetite, mimetizando uma indesejada saciedade. Não sabia como ajudá-la. Era como cuidar de uma enferma cuja doença não era do meu conhecimento, muito menos o seu devido manejo.

Uma ideia veio à minha cabeça, todavia. Uma ideia para reabilitá-la. Uma ideia para fazê-la voltar a ser a pessoa que realmente é. Uma ideia para recondicioná-la a ser quem ela é de verdade novamente.

“quer ir à praia?”, perguntei, me prendendo àquela solução como se fosse um milagre divino.

Ela olhou para mim, virando o rosto com tamanha lentidão, tal qual um pescoço rígido, e respondeu, com uma voz prestes a desabar em um triste e desesperado choro: “quero”

***

Optei por levá-la à praia à noite. Estava vazia. O sol havia saído. Nossos únicos companheiros seriam a noite e o mar. Na verdade, estes seriam mais espectadores do que companhias, devido ao silêncio quase sepulcral deles em palavras. ALém disso, era bom não ter pessoas por perto. Quanto menos influências externas, ou lembranças delas, melhor. Seria apenas eu e minha amada.

Caminhamos pela plana e fria areia. Mesmo estando marcada pelos passos daqueles que vieram antes de nós, aproveitamos para deixar nossas próprias marcas.

Olhava para a esquerda e via o mar escuro, colorido pela densa noite escura. Observava o horizonte e não conseguia distinguir o que era mar e o que era a noite, como se os dois estivessem aglutinados.

Olhei para a direita e vi todo o caos urbano distante de nós dois. Pessoas e carros. Seres de carne e cálcio montados em bestas de metal. Nós dois não precisávamos daquilo no momento. Não precisávamos de barulho e distrações. Precisávamos de paz. O único som que queríamos ouvir era o das ondas quebrando sobre a areia.

Volto a olhar para a esquerda e vejo minha amada caminhando ao meu lado, de mãos dadas comigo.

Ela não melhorou ainda. Sua mão tinha respingos de suor mais frios do que a brisa marítima que batia sobre nós. O pulso das arérias de suas mãos era forte e rápido tal qual o galopar de um cavalo. Sua musculatura estava tão tensa e rígida que era como se estivesse segurando a mão de uma múmia. Seu andar era fortemente prejudicado pelos tremores nas pernas, tão intensos que um tropeçar era iminente a qualquer momento, ainda na areia e necessitando de um grande esforço para se levantar novamente. Sua respiração ainda era curta e breve, com movimentos quase imperceptíveis de sua caixa torácica, movimentos rápidos e quietos. Seus olhos permaneciam largamente abertos, quase sem piscar, como se ela ainda estivesse presenciando alguma assombração no horizonte. Jurava poder ouvir seu coração bater forte e veloz, tal qual tambores que embalavam trovoadas gritantes. Sua doença permanecia. Havia algo dentro dela que a fazia muito mal. Algo que a consumia e a corroía feito cupins banqueteando-se com madeira. Ela não poderia continuar assim. Só uma simples caminhada noturna na areia da praia não está sendo o suficiente. Preciso fazer algo diferente. Eu a puxei para perto de mim. Ela virou o rosto para mim, expondo em primeira mão a face que traduzir o horror interno sentido por ela. Perguntei o que estava acontecendo. O que a afligia tanto. O que ela sentia. Perguntei sobre quais sentimentos a corriam e provocaram um rebuliço dentro dela.

Ela aceitou falar. Assim que abriu a boca, pude entender a causa da sua constante e silenciosa inquietude tempestuosa: Um temor pelo futuro. Temor de todo e quaqluer desfecho ruim que possa estar esperando por ela. Pavor pelos cenários futuros possíveis. Medo de não ter mais o controle da sua vida a partir de certo ponto Medo do futuro significar o fim da sua existência. Receio acerca do amanhã, dele não ser concreto e palpável, muito menos plausível.

Podia entender perfeitamente a angústia dela. Encontrava-se paralisada pelo medo, pelo favor, pela incerteza. Ela pensa estar em um caminho sem saída, diante de um problema sem solução. Queria ajudá-la com aquilo, Queria tirá-la daquele sofrimento. Queria puxá-la daquela espiral de negatividade e trazê-la de volta pra mim. Queria minha amada de volta pra mim, junto com sua personalidade florida. Além disso, algo estranho estava acontecendo com ela naquele instante. Vi uma espécie de fumaça sair de sua boca enquanto falava. Uma fumaça semi-translúcida, com uma coloração azul clara. De início, vi aquela fumaça tomar uma forma solta, indefinida e abstrata. Em seguida, ela transformou-se em uma forma semelhante à uma cabeça. Pude ver duas pequenas aberturas fundas, assumindo o papel de órbitas oculares. Abaixo destas, vi duas pequenas aberturas imitando narinas. Na base, uma abertura horizontal com dentes, tal qual duas lâminas de serras se beijando, tomando o lugar da boca.

Um rosto humano, porém mórbido, desprovido de vida. De início, vi apenas, mas consegui ver mais 2, 4, 8, 10, 16. Rostos iguais em aparência e terror. Nasceram como rostos e assumiram caixas torácicas, colunas, braços e pernas. Eram espíritos, vultos… Fantasmas. Seres, horripilantes, asquerosos e assustadores nascidos a partir de preocupações da minha amada sobre o futuro. Olhava para eles com muito medo e pavor, mas minha amada não os notara. Não percebia a presença deles. Sua expressão de preocupação continuava a mesma, sem alterações por conta da presença dos fantasmas. A presença deles era totalmente invisível para ela. A minha presença era igualmente ignorada por eles. Seus rostos e olhares estavam voltados para ela, e somente para ela. Mesmo sendo esqueletos azulados de fumaça, pude ver maldade e perversão em seus olhares. Essas intenções se mostraram realidade quando os fantasmas pousaram sia mãos sobre minha amada. Eram tantas mãos que poderiam cobrir os braços e ombros dela. Eles a puxaram, fazendo-a levitar sobre o chão. Mesmo lentamente, subia pelo céu negro da noite, sendo capturada pelos fantasmas. Eu a chamei, gritei seu nome, mas ela não respondia. Sua expressão de ansiedade e preocupação não se alterou com aquilo. Sofria aquilo passivamente, alheira à causa daquele levitar. Eu a agarrei pelo tornozelo, impedindo que sumisse de mim por conta dos fantasmas. Estes responderam com gritos de raiva, puxando minha amada com força, afastando-a de mim, diminuindo meu contato com ela. Achei que não poderia resgatá-la, porém tive uma ideia.

“Ouça as ondas da praia se quebrando”, disse para ela.

Suas orelhas captaram o som das ondas. Elas receberam o som das águas salgadas quebrando sobre a molhada areia. Um som relaxante e agradável, sem ritmo e sem anúncio de chegada. A percussão mais simples da natureza estava do lado dela. Sua expressão de ansiedade desmanchou-se e os fantasmas ficaram preocupados. Não tinham amis tanta força para puxá-la. Ela estava estável no ar. Não brigamos mais por ela no momento, tratando-a feito uma corda de cabo de guerra.

“Veja as ondas se quebrando”, eu disse.

Ela virou seu rosto para o mar e viu as ondas majestosas levantarem-se e se quebrarem sobre a areia. Ela abriu um largo sorriso, contrastando sua antes evidente preocupação de minutos atrás. Os fantasmas se desesperam, pois a força deles se esvaiu quase que completamente. Minha amada ficou mais acessível para mim, mas ela ainda levitava.

“sinta a brisa marítima tocar a sua pele”, eu disse.

Ela fechou os olhos por um momento e prestou atenção à brisa refrescante que tocava seu rosto. Seu sorriso abriu-se mais ainda quando se permitiu ser tocada pela leve e gélida massa de ar. Seus músculos acalmaram-se, e seu cabelo esvoaçou por conta do movimento. Os esqueletos gritaram horrorizados. Começaram a se despedaçar. Minha amada ficou ainda mais acessível, quase no nível da minha altura, mas seus pés não tocavam a areia ainda. Decidi, enfim, trazê-la ao chão.

“Sinta a areia desmanchar sob o seus pés”, eu disse, por fim.

Seu corpo finalmente alcançou o chão. Seus pés caíram suavemente sobre a areia da praia. Ela desmanchou e se desfez lentamente e calmamente sob seus pés. Macia, não ofereceu qualquer resistência ao toque dela. Seu rosto se livrou de qualquer resquício de ansiedade, preocupação e temor pelo futuro. Ela vestiu uma expressão de calmaria e serenidade. Tão calma e serena quanto os estímulos ambientais que a tranquilizaram. Ela o salpicou com um longo sorriso, deliciando-se com o desfazer da forma plana da areia com seu toque. Os fantasmas do futuro se despedaçaram completamente, desaparecendo com um grito esganiçado de um fim brusco e repentino de uma existência. Minha amada finalmente voltou ao chão, de corpo e espírito, mas por algum motivo, seja pela serenidade gerada pelos estímulos da praia ou pela exaustão causada pela grande quantidade de tempo que sofreu com os sintomas da ansiedade exacerbada, ela deitou-se na areia e adormeceu. Seu corpo, livre de toda a rigidez muscular, se aconchega na superfície irregular da areia, completamente relaxado. Sua respiração agora estava calma, longa e aprofundada. Sua caixa torácica, antes dura e quase imóvel, passou a executar movimentos claros de expansão e retração, tal qual uma sanfona. Olhos bem fechados, desprovidos de qualquer estado de hipervigilância. Seu cabelo foi coroado por grãos de areia, temperando seus sonhos. Pensei em acordá-la ou carregá-la de volta para nossa casa. No entanto, desisti dessas ideias. Eu deixei-a aproveitar seu sono. Afinal, ela acabou de libertar-se do futuro e estava finalmente de volta ao presente.

Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia)
Enviado por Caio Lebal Peixoto (Poeta da Areia) em 03/10/2023
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