O velho Mineiro
Quase não saio da minha cidade, principalmente para passear. Muito menos saio para cidades mais distantes. Em uma dessas poucas vezes, atravessava uma fase um pouco complicada. Minha filha tinha um namorado e os dois não se desgrudavam. Meu filho, na mesma época começou a na- morar sua atual esposa e também não saia para lugar algum sem ela. Minha mulher, com problemas de saúde, também não se animava. Dizia sempre: Vá você, meu filho – tinha a mania de me chamar de seu filho – eu estou desanimada, não vejo graça nenhuma em viajar, além do mais é cansativo e quando chego lá não me divirto e deixo você preocupado. Só iria atrapalhar seu descanso.
Foi por essa razão que convidei o meu amigo para viajar comigo – nesta história eu o chamo de Mineiro – e ele aceitou, pois estava atravessando uma fase idêntica à minha. Não ia a lugar nenhum e estava separado da família, em processo de divórcio.
Muitas vezes já havia viajado com ele, mas cumprindo o calendário da nossa Sociedade, onde visitávamos amigos em outras cidades, mas nunca muito longe daqui.
Foi muito boa aquela viagem, a última que fiz com ele. Conversamos, conseguimos sair à noite e tomar um chope em um bar a beira-mar. Muitas confidências trocamos, na- quela ocasião, sobre as nossas vidas íntimas. Falava eu da minha necessidade de estar com alguém, pois minha esposa me rejeitava de todas as formas. Ele, agora solteiro, também reclamava da falta que sentia de um amigo, de uma namora- da, de companhias para sair à noite, entre outros particulares. No trajeto continuamos nossa conversa, até chegarmos em casa, ou seja, em nossa cidade.
Nunca mais falamos sobre o assunto. Encontrávamos, praticamente todos os dias, mas não falávamos mais sobre nossas vidas.
Essa foi uma das razões de não ter esquecido aquelas férias.
Acompanhando um cliente, tivemos que fazer uma certa viagem de negócios, onde este necessitava de meus serviços para examinar alguns contratos de acordos que estava firmando em uma cidade bem distante. Viajamos mais de dois mil quilômetros. Só paramos para dormir e quando chegamos no destino, mal tivemos tempo de guardar nossa bagagem em um hotel e já estávamos marcando almoço com os clientes, para o dia seguinte.
Negócios, contratos, visitas à empresas e escritórios, tornou-se a rotina daquela semana mas à medida que os negócios encaminhavam-se e os acordos estavam sendo firmados, fomos relaxando e diminuindo o ritmo. Tanto que já não chegávamos ao hotel cansados e só pensando em cair na cama, com a única certeza de que no dia seguinte a maratona de papéis e conversas recomeçaria.
Numa dessas noites, resolvi caminhar um pouco pelo calçadão da praia que havia nas proximidades do hotel. A caminhada parecia longa, portanto comecei caminhando sem pressa, pensando na minha vida, na minha família e de repente um senhor sozinho em um banco, olhar perdido na direção do mar me chamou a atenção.
Passei bem perto de onde estava sentado, mas parece que nem me notou. Prestei bastante atenção e me pareceu tão familiar, aquele rosto, embora já envelhecido, cabelos e barba crescidos e totalmente brancos. Trazia um boné, desses de propaganda, à cabeça, o que dificultava um pouco a sua identificação. Mas continuei meu trajeto pensando quem poderia ser aquela pessoa que me pareceu conhecida.
Caminhei por mais uns 10 minutos e não conseguia tirar da cabeça a fisionomia séria e concentrada do homem do banco. Foi quando resolvi voltar e olhar de novo para aquela pessoa, na tentativa de decifrar o mistério que estava me incomodando. De longe eu já vislumbrara a sua silhueta, um pouco encurvado, sempre olhando o mar, sem se importar com as pessoas que passavam em frente ao banco em que estava. Fui me aproximando e quanto mais me aproximava do estranho, mais inquieto me sentia. Seria impressão minha ou eu, realmente, havia identificado alguma coisa intrigante na fisionomia daquele senhor? Apertei um pouco o passo, para me certificar e tirar aquela ansiedade que me incomodava.
Aproximei-me do banco e disse:
– Boa noite!
O homem, continuava com o olhar fixo nas ondas que vinham bater na areia formando uma camada de espuma branca. Isso parecia lhe chamar muito a atenção e até imaginei que se divertia com aquela persistência das ondas em chocarem- se com a areia da praia.
Sem prestar atenção à minha presença, respondeu, seca- mente:
– Boa noite.
Já que havia quebrado o gelo, sentei-me ao seu lado e por um certo tempo imitei-o. Fixei meu olhar no fluxo das ondas que insistentemente se batiam na areia.
Nem sei por quanto tempo ficamos ali, lado a lado, sem trocar uma palavra sequer. Mas de repente, como se houvesse acordado, voltei a me intrigar com o solitário do banco. Puxei conversa, mas não deu muito certo, ele parecia mais interessado nas ondas que nas minhas palavras. Disse-lhe, então que não morava na cidade que vinha de um local distante a trabalho e estava ali tentando relaxar, pois a semana havia sido muito corrida e tensa. Falei sozinho, por um bom tempo sem ouvir uma palavra dele, nem mesmo um aceno de cabeça ou um olhar.
Repentinamente ele virou-se para mim e disse:
– Também não sou daqui. Estou aqui, mas sou de outro lugar, de muito longe. Já nem sei mais como é a minha cidade. Deve ter mudado muito.
Foram as palavras que consegui ouvir dele durante o tempo em que lá estive. Voltou seu olhar para o mar e ficou como uma estátua, sem o menor movimento, acho que nem piscava os olhos.
Examinei mais detalhadamente sua fisionomia, mas não conseguia me lembrar de quem pudesse ser aquela pessoa. Fiquei por mais de uma hora ao lado do estranho e as únicas palavras que trocamos foram essas.
Desisti de puxar conversa, dei-lhe boa noite e voltei para o hotel. Já bem distante do banco, parei no sinal para atravessar a avenida e olhei de volta para o banco e lá estava ele na mesma posição de antes.
Íamos voltar em breve, pois os negócios estavam se resolvendo e a nossa permanência nessa cidade já não era necessária. Segundo meu cliente, agora era esperar os frutos das negociações e dos acordos firmados.
No dia seguinte a mesma rotina, mas sem tanta correria e sem reuniões longas e cansativas. Almoçamos em um restaurante próximo do hotel. Após o almoço, enquanto meu cliente se dirigia para o hotel a fim de descansar um pouco, resolvi dar uma caminhada no calçadão onde estivera na noite anterior. Identifiquei o banco onde havia encontrado e estado ao lado do estranho, tive uma vontade irresistível de sentar-me ali e tentar reviver aqueles momentos intrigantes. A minha pergunta continuava sem resposta: Quem seria aquele homem?
Sentei-me e dirigi minha atenção para as ondas e pen- sativo fiquei por um bom tempo até que resolvi retornar aos compromissos da tarde.
Durante uma reunião em um escritório cuja janela dava frente para o mar, enquanto falavam de futuros negócios de progressos entre outras conversas de negócios, fiquei distraí- do olhando o mar, acho que na tentativa de entender aquele homem. O que será que ele via de tão atraente naquelas ondas que prendia tanto a sua atenção?
Comecei a analisar seu comportamento. Parecia uma pessoa desiludida ou deprimida. Sua apatia me incomodava. Como uma pessoa podia ficar, quem sabe, horas com o olhar fixo no mesmo ponto? Como ele permanecia assim, sem mesmo se interessar em conversar, falar alguma coisa que talvez o tivesse incomodando?
Na verdade alguma coisa estava me intrigando, mas não conseguia descobrir o que era.
À tarde, ao invés de ir para o hotel, fui para a praia. Passei próximo ao banco no qual havia sentado antes me dirigindo a um outro que ficava praticamente de frente para o anterior.
Já estava escurecendo, as luzes do calçadão acenderam, as ruas próximas, muito movimentadas, estavam se tornando mais calmas. Permaneci naquele banco por um bom tempo observando tudo e todos, como um policial que espera que aconteça algum crime e procura estar atento a todos os movi- mentos de todos que passam e param e trocam cumprimentos e sentam e levantam. Nada. Já estava me achando com mania de velho, quando vejo o tal homem atravessando a rua, na faixa de pedestre. Parecia ter saído de um prédio próximo dali, pois surgiu muito de repente e como eu estava atento, imaginei que se tivesse vindo de longe, eu teria percebido.
Veio, ele, sem pressa com a mesma fisionomia de antes, mas me revelou mais que antes, estava me parecendo um conhecido antigo, mas não tinha certeza, mas seu jeito de andar calmo me lembrava essa pessoa.
Aproximou-se do mesmo banco, sentou-se dirigiu sua atenção para as ondas, como na noite anterior. Esse me
parece o Mineiro. Mas por que estaria ele aqui? Tão longe de tudo e de todos? Que terá acontecido com ele? Estava bem, quando tive notícias dele pela última vez. Estava casado, feliz. Por que estaria aqui. Logo aqui, nesse lugar que nada tem a ver com ele?
Quanto mais o observava, mais ia crescendo a suspeita de que só podia ser ele. Mais velho, naturalmente, pois havia um bom tempo que não o via. Talvez uns quinze anos ou mais. Mas me lembro que ele morava em outra cidade, bem longe daqui.
Então comecei a imaginar coisas. Lembrava de nossas conversas e ao mesmo tempo imaginava o que o trouxera a essa cidade. De intrigado passei a curioso. Imaginei: Tenho que esclarecer isso, senão perderei o meu sossego. Criei coragem e fui até o banco onde ele estava. Novamente o cumpri- mentei. Boa noite! Recebi a mesma resposta da noite anterior. Quando vi que ele não queria conversa, comecei a perguntar- lhe coisas:
• O senhor mora naquele prédio ali em frente? Aquele com os vidros escuros?
• Na verdade, nem sei se moro ou não. Respondeu-me ele. Eu fico ali, na portaria, durante o dia, à noite me acomodo num quartinho que tem lá na garagem. Durmo lá.
• Tem muito tempo que o senhor mora aqui? Quero dizer: Veio de outra cidade para cá, como me disse ontem. Veio de onde?
• É moro aqui, mas vim de outro lugar, ou melhor de outros lugares, já não sei por quantos lugares já passei. Sempre estou em um diferente. Tenho direito de viajar de ônibus sem pagar. Vez ou outra, pego um para qualquer lugar. Se arranjo um lugar para ficar, fico, senão vou para outro e assim eu não paro.
Pensei, comigo, que progresso. Para quem nada falava, está se saindo muito bem. Já disse que não é daqui, que já passou por muitos lugares, mas ainda não disse quem é.
Perguntei:
• O senhor é de Minas?
• Sim. Deu para perceber, pelo sotaque?
• Não é bem pelo sotaque, mas eu também sou mineiro.
• Eu sei. Reconheci desde ontem quando aqui sentou-se como quem nada quer, mas curioso e intrigado com a minha presença. Acaso já me viu em outro lugar?
• Não se lembra? Eu sou o Pires.
• Pires? Qual Pires?
• Lá da nossa cidade. Lembra que conversávamos todos os dias? Eu sou o Pires e você é o Mineiro. Ou estou enganado?
-Não. Eu me lembro das férias que viajamos juntos. Foi bom.
Mas não conseguia ver emoção em suas palavras ou nos seus gestos. Eu já estava com os olhos lacrimejantes. Des- cobrir o Mineiro, meu amigo antigo, naquela cidade? Jamais
imaginaria. Pensava que ele estivesse em outro estado casado e vivendo uma vida feliz e mais digna.
Continuei o meu interrogatório.
• Você não estava em Santa Fé? Não era casado? Não tinha uma casa lá?
• É verdade. Era mesmo. Mas acabou. Sabe como é. Velho é muito enjoado. Nem todos gostam dos idosos. A mulher, que era bem jovem, não me quis mais. Achou que estava bem mais nova e eu parecia mais seu pai que marido. Começou a fazer plásticas, cuidar da beleza e ficar cada vez mais jovem e eu cada vez mais velho. Certo dia resolvemos que não tinha mais sentido continuar daquele jeito. Fui embora. No início ainda estava animado, ainda trabalhava, apesar de aposentado. Tinha uma renda boa. Depois fui desanimando de tudo. Tinha uma mágoa muito grande que me consumia. Resolvi que me mudaria e nunca mais voltaria naquela cidade. Não voltei mesmo. Nem de passagem. Sempre procuro lugares distantes de lá. Não quero me encontrar com nenhum conhecido de lá.
• Por que não voltou para a sua terra? Lá tinha seus amigos, não estaria só. Tem sua família.
• É meu amigo, família já não tenho há muitos anos. Realmente pensei ter uma, certa vez, mas acabou, como tudo na vida acaba. Família é ilusão. Ela existe, enquanto você está ali à disposição dela, fazendo tudo para agradar a todos e ajudar. Sem isso não há família. Cada qual cuida de si, assim como eu cuido de mim. Já estou velho e nem sei porque ainda estou aqui. Já devia ter partido, mas Deus ainda não me quer por lá. Então vou trocando de cidade e conhecendo lugares novos.
• Você não pensa em voltar para a sua cidade um dia?
• Não amigo, não tenho mais nada lá. Nem tenho mais uma cidade. Tudo acabou. Em cada cidade que passo, não volto mais, fica no passado. Deixa de existir. Entende? Só existe aquela onde estou e aquelas em que ainda vou estar.
- É que eu estou aqui a negócios, com um cliente e pensei que talvez pudesse querer voltar com a gente.
-Não, amigo, para que? Não quero mais saber de passado. Só presente e futuro. Sei que você foi um bom amigo, mas ficou lá. Ficou no passado. Foi bom ver você de novo, mas não adiantou nada. Continuamos distantes, assim como continuarei distante de todos que um dia conheci. É a vida. Temos que viver e andar sempre para a frente. Voltar, é como tentar retroceder no tempo, ninguém consegue. É ilusão.
Dentro de poucos dias estarei em outro lugar, talvez perto ou muito longe daqui quem sabe? Gosto de escolher na hora. Nada mais tenho, nada mais guardo nem me interessa. Só tenho que carregar o peso desses ossos por onde for. Não preciso de mais nada. Ainda me alimento, por necessidade, mas já não me faz tanta falta quanto antes.
Remédios, já nem me lembro deles, não tomo mais. Se tivesse que morrer por falta de remédio, já teria morrido há anos. É bobagem. A vida que a gente leva que nos faz tomar remédios.
Vivo outra vida. Só caminho para a frente, não tomo remédios, me alimento quando dá e vivo enquanto Deus achar que devo. Com o resto, deixei de me preocupar, não me atrai mais.
Esta foi a última vez que vi o meu amigo Mineiro nunca mais tive notícias dele. Talvez esteja por aí, de cidade em cidade, sempre buscando alguma coisa em algum lugar, como ele deixou claro alguma coisa que jamais encontrará e se encontrar para que adiantará? Essa é a vida. É preciso ter coragem para vivê-la como ela é. Ficamos impondo regras, dietas, tratamentos médicos, consultas e controles anuais para ver se tudo está bem. Como dizem se uma doença for descoberta a tempo pode ser curada. Mas nós fabricamos essas doenças. Meu amigo Mineiro parou de fabricar doenças, por isso não precisa mais de remédios, anda só para frente, como disse. Apesar de aparentar um humor diferente, ele me pareceu feliz. Não se preocupa em olhar para o passado, isso quer dizer que não carrega culpas ou lembranças desagradáveis. Isso não lhe deixa adoecer. Talvez um dia amanheça morto em algum lugar, como ele próprio previu, mas terá feito o que desejava fazer. Viver olhando para a frente, nunca para trás.