Bartleby Moderno

Horácio era um homem calmo e de feições brandas. Quando os condôminos passavam defronte ao seu portão, apenas lhes cumprimentava com um leve aceno de cabeça e um sorriso condescendente. Nunca parou ninguém. Passasse carro ou moto, para ele tudo era indiferente, pois recusava-se a supor que qualquer daqueles sujeitos que iam e viam poderiam ser de algum modo suspeitos. No segundo dia de trabalho, levou com desinteresse as queixas advindas da administração e manteve-se inabalável em sua postura – decidiu por si só que o portão, e não só isso, também aquela função, lhes pertenciam e que ninguém haveria de ter coragem para mandá-lo fazer o que não queria.

Noutro dia, às seis horas da manhã, chegara seu substituto. Leandro, diferente de Horácio, era bruto, e chegou ao condomínio à postos para cumprir com seu dever. Antes que pudesse falar algo, Horácio lhe disse com toda serenidade que possuía:

– Não saio.

Enfureceu-se Leandro.

– Ora se não sai! gritou Leandro.

– Já lhe disse que não saio.

Após ponderar muito, Leandro entendeu que nada podia fazer e, a bem da verdade, nada poderia ser feito, pois também não era sua obrigação fazê-lo. Vestiu-se com sua farda preta, ajustou o celular na cintura, tomou da mão de Horácio o dispositivo de abertura dos portões e iniciou sua jornada

Para Horácio, a chegada de Leandro não surtira qualquer efeito, pois estava completamente decidido. Tinha dentro de si seus valores inabaláveis e jamais se permitiria a recuar de sua decisão.

Bem perto dos portões, havia uma salinha destinada ao descanso dos trabalhadores. Era o destino preferido de Horácio. Enquanto Leandro prescrutava cada um dos passantes, exigindo-lhes documentos, identificações e pormenores, Horácio, ao achar um colchonete surrado cujo dono lhe era indiferente, resolveu usá-lo para apoiar suas costas largas e cansadas ao chão e, por que não, tirar um breve cochilo. No meio do sono, sonhou, e em seu sonho imaginava-se exatamente onde ali estava, na posição em que estava, fincado e integralmente preso no mais deleitoso dos seus prazeres: recusando-se a fazer qualquer coisa que lhes ordenassem.

Por fim, acordou, e passou a observar o cômodo ao seu redor. A sala dos colaboradores, além de espaço para descanso, comumente também era utilizada para armazenar mercadorias. Entre caixas e mais caixas, havia telefones, livros, roupas, produtos íntimos e, até mesmo, armas. Horácio vasculhou as caixas. Primeiro, encontrou alguns livros. Eram diversos: Dickens, Tolstoi, Ubaldo, Márquez. Como não era um adepto da leitura, resolveu guardá-los para posterior uso - iria bolar suas folhas qual feito um cigarro e preenchê-las com qualquer tabaco barato; ao cabo, as fumaria. Depois, vasculhou outras mercadorias e encontrou café, grãos de todas as espécies, enlatados de atum e sardinha, e latas frescas de refrigerante.

Era o paraíso. Afinal, o que mais precisaria? A sala, como uma espécie de provedor, dava-lhe tudo. Decidiu ficar.

No canto mais fundo da sala, por detrás das volumosas caixas, escondeu-se. Tinha o colchonete, tinha também as roupas do corpo, e tinha, mais do que tudo, subsistência.

Passou despercebido por meses, enchendo a barriga com tudo que podia, sem pudores, devorando tudo, assim como fazem as pessoas por excesso, quando estão defronte a itens e desejos cujo domínio não lhes pertence.

O cabelo de Horácio, antes aparado e bem justo, agora crescia desgrenhado e sem forma; os pêlos da barba, antes lisos e sedosos, surgiam pelos poros como monstros, crespos, sujos, com aspecto perverso. Todo ele era maligno. Sua roupa abarrotada por dias de uso, a pele emporcalhada pela negligência dos dias sem banho e sem assepsia, tudo isso assomava-se para torná-lo um ser miserável, engolfado na própria inanição. Não havia olhos que pudessem enxergá-lo, se houvesse, facilmente notariam como engordou, como tornou-se um sujeito roliço, bufão, atributos os quais tornaram-no ainda mais monstruoso.

Mais meses correram. A administração mudou, mudaram também os funcionários, até mesmo Leandro, último humano visto por Horácio, foi-se embora. Haja visto as novas tecnologias, não se precisou mais de um porteiro, dado que os portões abriam-se agora por aproximação, tornando obsoleto o trabalho braçal de quem quer que fosse.

Embora encontrasse alvo no seu vislumbre, e embora estivesse colhendo os frutos do seu mau plantio, sentia-se muito só o Horácio. Por mais que desejasse aquela vida sem regras, sem leis para reger-lhe as ações, e por mais que houvesse por toda sua vida buscado aquilo, sentiu-se recluso.

Era um homem sozinho.

A solidão apoderou-se de tal forma da sua alma que desejou ser descoberto. No meios dos livros empoeirados, das latas fétidas de atum há muito abertas e esmiuçadas até a última sobra, dos caixotes aparentemente sem dono, estava ali um homem, e perguntou-se por dias e dias se, afinal, ao perceber o estado ao qual se encontrara, se, de fato, ainda era um homem. Parecia-lhe, agora, não isso, mas um rato. Um rato que se esgueira por entre as sobras de comida e se esconde à primeira vista de um invasor.

Havia dias estava deitado, levantava-se apenas por alguns minutos para vasculhar as caixas e, encontrando o que buscava, retornava cambaleante para sua toca. Questionava-se, em seu íntimo, se não seria a hora de ir embora, de escancarar a porta daquela saleta com um chute e sair mundo afora, pronto para o que o esperava – mas não tinha forças; estava demasiado fraco e seu corpo era inchado, suas mãos eram sem vida; sua consciência, pensando agora, não saberia dizer se a têm, ou se, em algum momento, a havia possuído. Para o Horácio, dentro de si, dentro daquela crista cabeluda e do rosto fervoroso, quem seria o Horácio? Não saberia dizer.

Depois de tantos meses, as esperanças de o descobrirem estavam cessadas. Não conseguia compreender tamanha incompetência de quem o pusera no cargo, e também não saberia dizer se fora por pena ou por uma tremenda sorte os motivos de ter permanecido ali por tanto tempo.

- Vou sair - pensou - já é hora.

Preparando sua fuga, bisbilhotou uma a uma a caixas ainda não reviradas. Se concentrou nos pacotes menores, pois os pacotes de maior tamanho em geral estavam abarrotados de livros ou travesseiros. Como uma caça à procura da presa, também Horácio farejava os pacotes e, sem saber o que procurava, se limitava a por nos bolsos o máximo de itens que suas calças surradas poderiam suportar. Para agilizar o próprio trabalho, chutou-as, dando bicos com o pé descalço em todas elas. Os chutes, conforme iam sendo distribuídos, revelavam os tesouros escondidos naqueles compartimentos. Em um dos seus desesperados chutes, não teve sorte, e acertou em cheio um objetivo desconhecido; era duro, e o simples movimento do pé de encontro ao caixote fez com que sentisse um grande impacto no dedo mindinho. O instrumento achado, com a força proferida de encontro a ele, deslizou por entre os restos de papelão oriundos da quebra dos pacotes e foi caprichosamente parar bem rente à porta de saída. Antes de sair, Horácio observou calmamente o objeto em seu caminho, apanhou-o e escondeu-o atrás da calça, bem naquela interseção entre camisa e calça – assim ninguém o veria - estendeu o braço direito em direção à maçaneta, deu um giro e a porta se abriu.

Os olhos de Horácio mal puderam acostumar-se à claridade quando, certamente já esperando sua saída, assomaram-se diante dele um grupo enorme de pessoas. No meio do grupo estavam mulheres, homens e crianças que viram assustados um homem cavernoso sair por detrás daquela porta. A reação foi unânime: muitos reviraram os rostos; outros, a fim de poupar os filhos da visão horrenda, taparam os olhos dos pequeninos da maneira que conseguiram. No meio do tumulto, agora com os olhos já acostumados ao sol, Horácio pode ver de novo Leandro, cujo rosto marcara-o profundamente. E foi Leandro mesmo quem dirigiu a primeira palavra ao homem.

– Afinal saiu, não é? Besta fera do demônio. Me mandaram embora, mas voltei só para ver tua derrocada, cão dos infernos.

Horácio finalmente se vira liberto do claustro. Meu Deus! Quanto tempo passara ali dentro, longe do mundo, longe de quem quer que pudesse mandá-lo? Impossível saber. E não havia espaço para arrependimentos, pois era assim, era-lhe perfeitamente compreensível a forma como agira, a forma como conduzira sua própria vida. Não estava errado, pensou, pois se existe um direito inalienável ao homem é poder estragar a vida como quiser.

Em sua cabeça, passara-lhe sua vida, seus atos, e julgou ser preciso tomar uma atitude.

Diante de uma quarta-feira calorosa bem ali no pátio do Condomínio Villas Boas, uma platéia vira aquele ser de aspecto asqueroso e canastrão, de modo atrapalhado e, segundo alguns acharam, até mesmo desesperado, aprontar a última de suas peças.

Horácio, num derradeiro triunfo, deslizou-se por dentro da própria camisa que vestia e tirou-a. Ao tirá-la, olhou-a por todos os lados e estendeu-a ao chão, como se forrasse a cama de sua própria casa com um lençol limpo e aconchegante. O público, sem entender o que ocorria, aguardava ansioso. Com a camisa devidamente estendida ao chão, Horácio sentou-se por cima dela, e ao sentar sentiu uma alegria que jamais ousou experimentar. Ainda faltava algo, pensou, ainda faltava o grande final. Sentado, na posição em que estava, colocou a mão direita para trás e, um breve instante depois, voltou com um objeto metálico, rutilante, envolto nos dedos. Com a outra mão, procurou nos bolsos o que tanta ansiava. Do fundo do bolso esquerdo, amassado e de uma forma visivelmente mal feita, conseguiu distinguir os cigarros embalados no tempo de confinamento. Formava-se ali o par perfeito.

Aquela massa de pessoas aglomeradas pôde finalmente ver um homem concluir da forma mais estranha possível seu objetivo, e não contiveram o riso quando Horácio, com sua mão pesada e suja, acendeu o isqueiro e pós fogo naquele cigarro constituído essencialmente pela página trinta e seis da primeira parte de Anna Kariênina.

Estava sublime.

Alguns espectadores que se esforçaram um pouco mais do que os outros para ouvir o que repetia aquele homem entre uma tragada e outra, ainda puderam escutar, baixinho, quase inaudível, como um leve e calmo sussurro, as seguintes palavras proferidas por Horácio:

– Não saio. Já lhes disse que não saio.