Finalmente sou branco!

Queridíssimo leitor, este relato que lhe revelo é de muy mal gosto. Parece que estou a fazer graça do assunto, mesclando a questão da raça com a santidade dos milagres, algo que este bom cristão a escrever jamais desejou. Todavia, não minto, mas compreendo se preferires não acreditar, visto que até eu me debati com essa experiência espiritual, tendo por anos pensado e repensado os episódios, mergulhando-me em questionamentos teológicos inéditos.

Lá para 1958, quando eu tinha 28 anos, meu filho único, Sebastião, revelou a mim que odiava a própria cor, que queria a pele d’alva dos alemães e os olhos dos intitulados arianos. Estapeei-o, “cousa besta”, disse-lhe e mais: “Se algum mancebo escutar-te a dizer isso, pisar-te-á, fará graça e contará a todos”. No entanto, flagrei-o depois rezando à Maria para que o pintasse branco. Então, meti a cinta e a chinela, pois parecia uma blasfêmia de gente sarcástica. Apesar disso, manteve sua convicção demente e sua fé herética, levando-o dias depois a acordar-me à noite, revelando: “Pai, Maria deu graças! Olhe minha pele!” Peguei o rifle e pretendia atirar, mas meu filho contou cada detalhe de nosso dia a dia, todas as lições que lhe dei e meus maneirismos. Notei que era meu menino, mas seu rostos lembrava mais o filho do prefeito do que o filho de um sapateiro como eu. Ali a espiritualidade aflorou e, naquelle instante, minha semente estava d'alva e imaculada, abençoada pelos presentes do Altíssimo.

Levei o menino de 10 anos ao padre José, ancião íntimo da família, que, após perceber a seriedade do caso, deu as notícias ao bispo, o qual não acreditou. Porém, o bispo era distante e o povo de Campinas notou que aquele estranho menino louro era o preto Sebastião, meu único filho. Tornou-se celebridade, cumprimentou o prefeito, estudou com grandes cafeicultores e se formou bacharel em direito. Abraçava-me e contava-me as inúmeras maravilhas da cor branca: da ascensão à alta classe e das pretas e brancas que o queriam como esposo. Leitor, sabe? Fiquei com certa inveja, até pensei em rezar para nossa Maria, santa e benevolente, por tamanha graça, mas estava acostumado com minha cor e tais preces eram grandes humilhações. Logo, outros pretos fizeram a mesma oração, os japoneses amarelados também e até os portugueses pediam por uma branquitude mais forte.

Meu filho se casou com uma imigrante italiana, empreendeu e morreu antes de mim, lá para 2002. Tive uma penca de netos, sem minha cor. É melancólico, minha nora me trata bem, mas acredita que eu adotei o Sebastião. Enfim, já é 2023, logo morrerei, mas, se o inferno assusta, imagina esse céu?