Carta para Júlio Cortázar, um amigo distante
" É amargo entrar num ambiente onde alguém que vive belamente arrumou tudo como uma reiteração visível da sua alma"
Caro amigo, Júlio Cortázar, hoje, domingo gelado aqui nos trópicos. Devo confessar, amigo distante, às mãos com seu Bestiário, algo de surpreendente aconteceu. Sem que eu soubesse, que fosse capaz de encontrar alguma razão, algum motivo, me deparei com lágrimas, abundantes lágrimas, escorrem pelo rosto.
Casa Tomada, primeiro conto, caro amigo, me arrastou para questões que eu supunha superadas, mas não. Ao retomar a leitura me ocorreu de rememorar acontecimentos vividos num tempo de feliz saudade. Não vou entrar em detalhes, não seria elegante expor fatos, felizes, não nego, mas por envolver outras almas (um trocadilho com a epígrafe desta carta), considero salutar essa consideração.
A vida de dois irmãos que dividem uma mesma casa, seu cotidiano, suas rotinas, caro amigo, são descritas, e por isso, primorosa, com tamanha singeleza, tamanho carinho, que penso ser impossível alguém não se ver nas mesmas circunstâncias. A narração, ao contrário do que se pode esperar de uma vivência de duas pessoas num mesmo espaço por longo tempo, não indica saturação na convivência. Narrada com leveza, o conto sofre certa ruptura quando a casa é tomada. Mesmo nessas circunstâncias, o texto mantém sua leveza. A nova realidade não altera a relação entre os irmãos. A nova realidade impõe a pergunta: o que altera a realidade, o fato novo ou nossa disposição em deixar que se altere? Enfim, caro amigo, senti algo novo acontecer.
Ah, caro Júlio, repito, pra ti, o que disse para Andrée, em carinhosa carta. "Ah, querido Júlio, como é difícil se contrapor, mesmo aceitando com uma submissão total do próprio ser, à ordem minuciosa que você (na carta você cita Andrée) estabelece no que escreve. Me curvo, caro amigo, às minúcias com que consegue registrar a vida cotidiana. Não seria capaz, nem que me esforçasse, de transportar para o papel o registro de vidas e situações de convivência com tanta leveza. És um gênio, caro amigo distante.
Como não se comover com " ...como se de repente as cordas de todos os contrabaixos se cortassem ao mesmo tempo e a mesma horrível chicotada no instante mais calado de uma sintonia de Mozart " . Ao falar da ruptura causada por haver colocado numa ponta da mesa seus livros, quando o espaço era para a tacinha de metal, caro amigo distante, nesse instante, sem que possamos ignorar, nos chega à mente o deslindar de que por menor que possa parecer, qualquer mexida, intencional ou não, faz tremer o sentido de harmonia. Como se vê, é amargo entrar num ambiente belamente arrumado por alguém que tudo preparou como uma reiteração de sua alma. Não imagino, saudoso amigo distante, de que modo se diz que se chega à conclusão de que não é possível dividir o mesmo espaço sem alterar, mesmo que mínimo, a ordem belamente construída por alguém que fez tudo como um retrato visível de sua alma. Como anunciar essa disposição em não intervir na vida ajustada conforme o gosto, ou mesmo apenas demonstração de costume do habitante do recinto? Só quem detém a proeminente sensibilidade poética consegue.
Ah, caro amigo distante, como não se deixar conduzir por tanta beleza, tanta lucidez ao se debruçar sobre seus escritos? Como não se permitir um deixar -se levar sem pensar na remota possibilidade do que virá? Não. Mil vezes não.
Caro amigo distante, certa vez, e novamente não mencionarei quem, fui levado a acreditar na iminência de que algo terrível estava por acontecer. Confesso que fiquei perplexo. De imediato, talvez movido por instinto de autoproteção, me recusei acreditar. Não constava de minha índole dar crédito às coisas que chegavam por vias, digamos, pouco civilizadas. Mas, repito, talvez por instinto de autoproteção, resolvi que não sairia de casa. Tudo passou a ser resolvido pelos meandros da tecnologia (eu, justo eu, um anti -tecnológico quase canônico). Pois bem. Tudo transcorreu, ao menos a mim, como fato consumado, quer dizer, dei crédito a algo que nem procurei saber a origem como fato inexorável. Um horror. Nada aconteceu. Eu envelheci em três dias o que talvez aconteceria somente em dez anos. Imagino que esteja rindo; eu também ri e não me perdoo por me permitir deixar levar por simples conjecturas disseminadas por adolescentes e seus joguinhos de computador.
Mas... assim é a vida, não? Estou lhe escrevendo de noite porque de dia fortes dores de cabeça me consomem e tudo se paralisa. Não consigo fazer nada além de dormir. Às vezes acho que meu corpo desenvolveu suas próprias ferramentas de defesa, nada de remédio. Por exemplo, para dor de cabeça, uma generosa xícara de café e 4 a 5 horas de sono. Dor de estômago, nada de anti -acido, não; apenas três copos de água gelada e 5 a 6 dias sem gordura. Confesso, caro amigo distante, desde que me deparei com a possibilidade da morte, quer dizer, com a possibilidade mais presente confirme se envelhece, tenho me dado aos erros. Os erros, caro amigo, tem sido pra mim um verdadeiro renascer. É impressionante como o erro nos conduz à retomada de uma certa humildade. É bonito, pelo menos assim entendo, como se dar conta do próprio erro pode ser tão transformador quanto o nascimento de um filho. O erro, penso, tem duas funções revolucionárias. De um lado, aponta nossas fraquezas. Por outro, e aí penso ser a maior importância do erro, é nos mostrar que admitir o próprio erro é sinônimo de humildade e crescimento. Não sei se essa consciência veio com a idade, mas o que importa, é que me faz feliz.
Caro amigo Júlio, talvez influenciado por sua carta à senhorita Andrée, resolvi repetir o gesto.
Em carta à uma querida amiga, resolvi, - me corrija se achar que não devia - expor algumas questões que eu julgava importantes. Não tratei de pormenores, são desnecessários quando o que se quer nada mais é que manter, ainda que de maneira um pouco ofuscada, lembranças de momentos felizes. Finalizo a carta com um singelo "te ofereço um pedaço do céu" Fica a vontade para dar palpite, não se oprima.
Caro amigo Júlio, chego ao fim desta carta. Desculpe se algo não ficou claro ( nunca fui bom na escrita). Desculpe se lhe escrevo sem ao menos me apresentar. Desculpe se chego como um estranho no vagão do trem e toma seu lugar sem perguntar. Mas sou assim, estabanado. Sou, talvez, a antítese do homem formal, sou aquela gente, aquela gente que tão logo vislumbra a batida, igual o covarde, se abaixa ao primeiro golpe. Pessoa, o grande poeta lusitano, me ensinou que na poesia tudo se pode dizer. Então sejamos poetas, ao menos, teremos a sútil certeza que ao fazer nossos poemas, alcancemos outros corações, talvez, tão aflitos e saudosos, como os nossos.
Aliás, outro dia, o mestre lusitano, me visitou.
Então, caro amigo Júlio, finalizo com a sábia certeza: quantas coisas se podem construir quando se sabe o que construir. É agradável saber que do outro da rua passa alguém que poderá ser nosso salvador. Não o Salvador das escrituras, esse, penso, tem coisas mais importantes a tratar do que se preocupar com idiossincrasias fúteis, pra não dizer ridículas.
Então, caro amigo, quem sabe outro dia nos visitamos novamente; vou adorar, pode ter certeza. Até lá, cá fico eu, nos trópicos, torcendo para que o frio vá embora.