Judas na Cruz
Havia muito que não conseguia Auro impressionar ninguém com suas obras. Quando o fazia, refletia consigo mesmo por que estava a ouvir todos aqueles elogios. Perguntava-se a si mesmo se as pessoas - inclusive sua esposa e seu casal de gêmeos - entendiam o vazio e a tristeza que o motivavam a pintar aqueles quadros.
Costumava fazê-lo enquanto assistia aos filmes de Tarkovsky. Ou quando lia os livros de Gide. Ao iluminar-se com as poesias e manifestos de Breton. Sentia-se sempre inspirado ao vislumbrar os caóticos quadros de Pozzo. Sempre punha óperas cantadas por Bocelli ou tocadas por Rieu para concentrar-se com os pincéis em riste.
Auro não era um homem religioso. Tampouco acreditava ele em felicidade. As leituras de Comte-Sponville corroboravam sua visão materialista da existência terrena. Pensava ele ser aquele o papel da arte: transmitir apenas as emoções momentâneas e tentar representá-las da forma que se lhe tomassem forma.
Um dia acordou Auro de sonhos intranquilos. Precisou tomar um ansiolítico para diminuir a ansiedade. Sua esposa, professora, tardou a sair de casa aquela manhã. Precisava ele ficar sozinho, colocar a cabeça no lugar, dispersar a cabeça. O trabalho intelectual lhe estava a incomodar bastante.
Saiu de casa a deixar esposa e o casal gêmeos e pôs-se a caminhar sem rumo. Colocara as mãos dentro dos bolsos do capote, pois estava a morrer de frio naquela manhã. O sol aparecia, mas o vento gélido amenizava a temperatura. Auro dava passos no vazio, a tentar encontrar-se a si mesmo.
Parara defronte a uma igreja - que havia muito sua esposa quisera casar-se ali. Após a insistência de Auro para que apenas tivessem um compromisso civil e não religioso, Laura contentara-se com as explicações implausíveis do marido. Subira as escadarias da igreja, lentamente, e penetrara seus umbrais com certo sentimento de culpa.
Havia alguns fiéis a rezar. Ele aproximou-se o máximo possível do altar onde estava o Cristo e pôs-se a observá-lo. Não sabia orar ou coisas afins. Não sentia a energia que as demais pessoas conseguiam sentir. Apenas vislumbrava aquela tristes imagens a fim de inspirar-se para mais um quadro ou escultura que fosse.
De repente, vira o Cristo - que antes estava a fitar os céus com certo estertor - encarando-o com certa súplica, a dizer:
- Faça o Judas na cruz e toda a tua e sua culpas serão findadas - falou o Cristo, a voltar à sua posição de súplica com vislumbre aos céus.
Auro saiu não emocionado ou encantado com o que ouvira da santidade máxima do cristianismo, mas completamente assustado, estarrecido. Voltou à casa e havia ninguém: estava ele e sua própria existência e o que Jesus lhe havia murmurado havia quase uma hora. Dirigiu-se para seu ateliê e, a seu modo, fez uma pintura diferente de todas as que fizera anteriormente.
A exagerar em tons de vermelho e negro, a memorar as duras palavras de Malraux sobre como fazer arte e a estar embebido do sacro de Mantegna, ele viu sua obra ganhar forma por si mesma. Era a primeira vez que sentira sua própria subjetividade atingir a tela e conduzir os pincéis.
Certamente a figura que saíra não era a de um homem em uma cruz. Havia linhas e traços e curvas que bem definiam uma forma quase mística, um produto de uma ação que não lhe era natural. Ficara boquiaberto com o que fitara e intitulara Judas Crucificado.
Laura fora a primeira a vislumbrá-lo e havia muito que não observava um quadro de Auro por mais de dez minutos:
- O que aconteceu, querido? - disse ela de noite, a deixar o chá esfriar na caneca. - Está de tirar o fôlego!
Auro certamente não conseguiu explicar a ela o que se lhe ocorrera. Passar-se-ia por um louco se lhe contasse a mensagem que escutara naquela igreja e pior seria se lhe dissesse quem lhe havia inspirado a fazer tal obra.
O fato é que aquela foi a ascensão de Auro - que ele nem esperava. Fora processado por alguns católicos e membros de igrejas pentecostais que achavam agressivo o nome da obra sem ao menos entendê-la ou procurar vê-la. Uma galeria canadense oferecera uma nota preta pelo conjunto da obra de Auro.
Auro nunca mais voltou à igreja onde escutara o Cristo - seu ceticismo fizera-o crer que o que vira era projeção de sua mente artística.