O CAJUVÁ CHEGA A URUBICI
Tio Arcido respirou fundo e, entre uma baforada e outra do palheiro, começou a contar a história do aparecimento do pinhão cajuvá em Urubici. As crianças se ajeitaram no banco, e o Tio Arcido começou:
- Urubici ainda não existia, assim como ele é hoje. Morava por aqui um povo muito valente e muito antigo: o Jê, da tradição Taquara-Itararé.
- Isso faz tempo, Tio Arcido?
- Muito tempo! – respondeu ele, assoprando o palheiro. Há, mais ou menos, setecentos anos atrás.
- Nooossa... Tudo isso?
Esse povo Jê habitava nas beiradas do Rio Canoas. Não viviam somente da caça e da pesca, plantavam milho, mandioca, cará, feijão, abóbora e outras coisas.
- E como eram as aldeias deles? – indagou um piazinho. Os olhos do Tio Arcido brilharam, pois ele gostava muito de explicar sobre essa parte.
- As aldeias – disse ele - eram construídas nas várzeas do Rio Canoas, bem embaixo, no fundo dos vales. Moravam aqui, nesses nossos vales em forma de U, redondos na parte de baixo, onde se acumula muito húmus e onde a terra é boa para o plantio. Preferiam morar ali, ao invés de morar nas encostas dos morros. As aldeias eram sempre construídas no meio dos pinheirais, porque o pinhão era uma das bases da alimentação do povo Jê.
- E esse povo Jê ainda existe, Tio Arcido?
- Bem, desse povo Jê vieram outros dois povos; estes, sim, existem até hoje: os Xokleng e os Kaingang. Já ouviram falar deles?
Os garotos se entreolharam, sem responder. Tio Arcido continuou: - Aqui em Santa Catarina, os Xokleng vivem em apenas duas terras indígenas: uma lá na região do Alto Vale do rio Itajaí, e outra no norte do Estado. Os Kaingang ocupam cinco terras indígenas, mais lá para o oeste do Estado de Santa Catarina.
- E aí, Tio Arcido, mas o senhor disse que ia contar a história de um indiozinho. Ele era Xokleng ou era Kaingang?
- Boa pergunta... – retomou Tio Arcido, ajeitando o palheiro. - Ele era Kaingang. Mas já chego lá. Primeiro quero explicar mais um pouquinho sobre como era a vida dos Kaingang aqui na Serra.
- E como era?
- Bom, – pigarreou o velho – as aldeias dos indígenas da nossa região eram divididas em algumas partes: havia um terreiro grande, onde construíam as casas, um outro espaço, mais para fora, para as plantações, e um outro, um pouco mais longe, onde enterravam os mortos e onde faziam muitos rituais.
O pito já estava no fim; Tio Arcido apertou, de leve, a brasa contra a unha amarelada, apagou o palheiro e o ajeitou na orelha, por debaixo do chapéu. O interesse da gurizada pela história cresceu, quando Tio Arcido, arregalando os olhos, sentenciou:
- Naquela aldeia, pros lados do Rio dos Bugres, vivia uma família, que tinha um menino chamado Mufé, que, na língua deles, quer dizer Folha de Cipó. O pai de Mufé era Nengrei e a mãe dele se chamava Kokui, que significa Beija-flor.
Mufé tinha dez anos, e era uma criança doente. Sempre muito fraquinho e pálido. Os pais se preocupavam muito com ele e, apesar de todos os esforços, não conseguiam vê-lo sadio e disposto, como as outras crianças da aldeia.
Mufé, apesar de sua fragilidade, possuía uma grande força interior. Toda a tribo o respeitava como a um kujá, um rezador e sonhador, pois ele, desde pequeno, fazia preces e dizia coisas que encantavam as pessoas ao seu redor.
Certa vez, Nengrei e Kokui levaram o filho Mufé até um local mais alto, no domínio da floresta virgem, um local chamado Avencal. Lá havia um sítio de arte rupestre, muito antigo, com desenhos e carrancas feitas na rocha. Quando chegaram ao Avencal, Mufé teve grandes manifestações espirituais e os pais o reconheceram como um verdadeiro rezador, um kujá. Ali, Mufé conversou com os espíritos de seus antepassados, ligando esses antigos parentes a animais selvagens como o leão baio, as raposas e as carucacas. Foi no Avencal, também, que Mufé passou pelo ritual de perfuração dos lábios. Lugares sagrados, assim como o Avencal, eram cuidadosamente escolhidos, pelos líderes da tribo, e sempre ficavam voltados para o pôr do sol e diante de uma grande cachoeira.
Depois de muitas tentativas de cura, e já um tanto desanimados, o casal resolveu, levar o menino ao pajé da tribo, o Kuiã, para ver o que ele conseguiria fazer. O feiticeiro morava fora da aldeia, numa choupana, na beira do Rio Cachimbo. Já de longe o casal avistou a casinha de pau-a-pique do Kuiã. Havia fumaça e um clima assustador por baixo do pinhal. A mãe parou na entrada da mata, segurando a mão do menino; o pai prosseguiu sozinho.
- Quem é você? O que quer aqui? – soou, de repente, a voz rouca do velho pajé. O pai de Mufé não enxergava o Kuiã. Parou indeciso e com medo.
- Oh, meu grande Xamã, posso me achegar?
Um longo silêncio tomou conta do matão. Nem um pio, nem um sopro, nada. De vereda, surgiu a figura do Kuiã: cabelos brancos, desgrenhados, o corpo curvado.
- Se achegue, vivente. – E virando as costas foi em direção ao barraco. Traga o menino aqui – disse ainda o velho, sem olhar para trás.
O pai de Mufé correu até onde estava a esposa e a criança.
- Vem! Kuiã está chamando...
A família caminhou temerosa e parou diante da choça, onde estava Kuiã, sentado sobre o tronco de um pinheiro. Kuiã olhou a criança de cima a baixo, sem esboçar reação. Os três continuaram de pé, esperando o milagre. Os Kaingang acreditam que as doenças vêm do numbê, o mundo que existe depois da morte, a aldeia dos mortos.
- Xamã, meu Pai. Estamos trazendo nosso filho, para que o livre de uma doença terrível, que não deixa ele crescer e viver feliz, como as outras crianças.
Kuiã olhava ainda, demoradamente, para o menino, já sentindo dentro de si que teria que travar uma grande batalha contra a morte. De repente, ele falou: - A alma do avô dessa criança, o vein kuprin do seu avô, quer levar ele para a morte. Kuiã vai lutar! Kuiã tem poder!
Dizendo isto, levantou-se o velho pajé, tomou Mufé pela mão e o colocou sentado sobre o tronco do pinheiro e, já em transe, iniciou o ritual, entre chocalhos de porongo, baforadas de palheiro e aspersões com chumaços de vassourinha. Kuiã sentia a presença da morte, querendo levar o menino e, caso não fosse tratado imediatamente, a batalha estaria perdida.
Levantando os braços para o céu, Kuiã invocou com força, chamando seu parceiro, seu iangrê, para que viesse auxiliá-lo no combate ao vein kuprin.
- Vem, iangrê! – gritou ele por três vezes. Os pais de Mufé estremeceram.
Já na companhia de iangrê, sua outra metade, Kuiã prosseguiu com o ritual, ora calado, ora soltando grandes rugidos. Kuiã, porém, estava confiante, sentia que o vein kuprin, que atacava Mufé, vinha do Leste e que, portanto, havia a possibilidade de cura para o menino, pois, quando o vein kuprin provém do Oeste, local onde está situado o numbê, não há cura possível para o doente. Exausto pelo longo ritual, que já durava um par de horas, Kuiã sentou-se ao lado de Mufé, chamou os pais do menino e disse:
- Kuiã está velho e cansado, já sente a morte chegar, e precisa escolher alguém que fique em seu lugar. Kuiã vê nessa criança um rezador e um sonhador. Ele pode ser o novo Kuiã.
As palavras do Pajé caíram como um raio sobre os pais do menino. Kuiã tomou então uma vasilha de barro, onde havia muitas ervas, e passou a aspergir a cabeça de Mufé, resmungando preces e andando ao redor do menino.
- Kuiã vê! Mufé será o novo Kuiã. Com essa água sagrada, Kuiã vê, junto com seu iangrê, que Mufé será curado... Mufé ficará livre da morte...
Kuiã sentou-se. Caía a noite, e um longo silêncio dominou o pequeno espaço. Somente se ouvia o murmúrio das águas do Rio Cachimbo, correndo em direção ao Canoas, e levando embora o peso da desgraça que tanto ameaçara aquela família.
Encerrado o ritual xamânico, e já recomposto, Kuiã chamou os pais de Mufé e lhes disse:
- Peguem o menino e sigam montanha acima. Lá no alto encontrarão um casal de corvos brancos, que os guiará ao lugar onde nasce o Rio Canoas. Lá Mufé será curado. Homens vindo de longe, com longas barbas e roupas pretas trazem muitas riquezas e trazem a semente milagrosa de uma planta que salvará Mufé e todo o seu povo. Vão!
Dizendo isto, Kuiã caminhando lentamente, embrenhou-se na mata escura de pinheiros e xaxins e nunca mais foi visto.
Passado aquele susto, Nengrei e Kokui tomaram Mufé pela mão e saíram em busca do Campo dos Padres, montanha acima, conforme lhes indicara o pajé Kuiã. A mata fechada, as escarpas quase intransponíveis, os imensos peraus, a presença constante das jararacas e coatiaras tornavam a viagem da família um constante pesadelo. Avançavam muito pouco durante o dia e aproveitavam a noite para descansar, retomando a caminhada ao alvorecer.
Caminhavam já há alguns dias, quando avistaram de longe a Pedra da Águia, estavam chegando aos contrafortes da Serra do Corvo Branco; dali por diante tudo lhes parecia pertencer a um outro mundo. Haviam saído do vale do Rio Canoas e subido por caminhos íngremes, e já atingiam o lugar chamado Cânion do Espraiado; ali, por entre o nevoeiro, apresentava-se o imenso e misterioso pico da Boa Vista. Estavam no caminho certo. Apesar das dificuldades da viagem, tudo era muito novo, tudo muito impressionante. Seguiam agora pela parte mais alta da Serra Geral, costeando o pequeno regato que, lá embaixo, se tornaria o gigante Canoas.
Já estavam há muitas luas longe de casa. Mufé andava cada vez mais cansado. Os pais se revezavam, levando o menino nas costas, por longos trechos do caminho. Num daqueles dias, Mufé puxou a mão de Kokui e disse:
- Olha, mãe! Olha lá em cima! – Mufé apontava para um grande pinheiro seco, perto de onde se encontravam, e onde estavam pousados dois urubus-rei, um casal de corvos brancos.
- Olha, mãe! É como Kuiã falou!
Kokui parou para olhar as aves. Eram enormes e espetacularmente lindas. As cabeças coloridas e a plumagem branca e preta, contra o cinzento dos penhascos, lhes conferiam uma aura sobrenatural. Uma delas estava com as asas abertas; dois metros de envergadura. Tinham a imponência de verdadeiros reis. Kokui chamou o marido, que ia mais à frente. Nengrei se voltou e ficou boquiaberto com a presença das aves.
Mufé relembrou então o que Kuiã lhes dissera: “um casal de corvos brancos guiará vocês até o local onde nasce o Rio Canoas”. Num ato instintivo, o menino ajoelhou-se no chão e se inclinou perante as aves. Ambas entenderam o gesto de Mufé e, num rápido voo, se aproximaram do menino, pousando sobre um grosso galho de ingazeiro. Os pais de Mufé imitaram o filho, ajoelhando-se em terra, reconhecendo no casal de urubus os ancestrais da tribo que tanto procuravam.
Um dos corvos, abrindo as enormes asas, soltou um grande grito, que ecoou pelas canhadas da serra, rebatendo pelas rochas. Era o sinal para que a família os seguisse. Dali em diante não mais perderam de vista os corvos brancos, que planavam nas alturas, indicando a direção e o caminho.
Nengrei, Kokui e Mufé seguiam, agora, confiantes e fortalecidos. Após dias de marcha forçada e de extenuantes caminhadas passaram pelo Cemitério dos Jesuítas e, seguindo o curso do pequeno riacho, foram se aproximando das mágicas nascentes do Canoas. Ali ele começa, pequeno e modesto e, depois, rola serra abaixo, por centenas de quilômetros, desaguando no Rio Pelotas, para formar o imenso Rio Uruguai.
Sob frio intenso, pisando a geada fria, a família de Mufé chegou ao Campo dos Padres, um lugar mágico e rodeado por peraus sem fim, que se precipitam por mais de quinhentos metros, a perder de vista, sumindo na escuridão das pedras.
O casal de corvos lá estava, pousado nos galhos mais altos de um gigantesco pinheiro, indicando que Mufé e seus pais deveriam acampar naquele lugar. Num abrigo, sob as pedras, passaram aquela noite, e ao amanhecer, em meio à espessa cerração, procuraram os corvos brancos, mas não mais os avistaram. Quedaram-se então confusos e desamparados, com a sensação de estarem perdidos nas alturas daqueles montes. Kokui preparou a parca refeição matinal com as últimas porções de comida que ainda tinham no pessuelo. Ali permaneceram sentados, à espera de que algo novo acontecesse.
Foi, novamente, Mufé que chamou a atenção dos pais para um estranho ruído que vinha da mata distante; um tropel de cavalos e gritos assustadores, que ecoavam ao longe, rebatendo nas grotas. De repente, duas figuras sinistras surgiram por detrás do pinheiral. Dois cavaleiros sujos e ofegantes, armados com mosquetes e adagas. As longas barbas e os chapéus de couro lhe davam uma aparência diabólica. Jogaram os cavalos, ameaçadoramente, contra o casal e, aos berros, perguntaram:
- Ei, vocês! Moram por aqui?
- Não senhor... – gaguejou Nengrei.
- Não viram um grupo de gente vestida de preto, passar por aqui, levando uma tropa de mulas?
- Não, senhor, não vimos nada.
- Aaah, vamos embora! – E seguiram a galope, com suas capas negras esvoaçando ao vento e gritando impropérios.
- Vamos pros lados do Aiurê! – e sumiram.
Nengrei puxou a mulher e o filho mais para dentro da gruta, e ali permaneceram o resto do dia, esperando pela proteção que a escuridão da noite poderia lhes dar.
Na madrugada congelada, a família de Mufé foi acordada por novos ruídos. Ainda no escuro, Nengrei pode ver um grande grupo que se aproximava. Eram homens barbados, com longas vestes pretas. Pararam à beira do riacho, puxando a tropilha de mulas para beber. Andavam em silêncio. Homens e animais pareciam cansados e famintos. A mulada vinha guiada pela mula madrinha, algumas de cola atada ao animal da frente. Os grandes cincerros, porém, pendurados ao pescoço vinham entulhados de guanxuma, silenciosos, mudos.
- Acampamos aqui. – disse um deles, que parecia ser o chefe da expedição, quase num sussurro.
Em silêncio, os homens começaram a tirar das cangalhas as pesadas bruacas de couro cru. Eram muitas mulas, cerca de quarenta cargueiros. Nengrei, a mulher e o filho observavam de longe, temerosos, e já em desespero. Como se não bastasse, uma parte dos homens de preto foi se aproximando perigosamente do local onde a família estava abrigada. Não foi possível fugir mais, foram vistos.
- Padre Superior, tem gente escondida aqui. – gritou um deles, apontando para Mufé e sua família.
- Tragam eles para cá. – Ordenou o jesuíta chefe. Foram levados à presença do Superior, que os olhava de modo estranho.
- Moram aqui? – perguntou. Mudos de espanto, nada responderam. Mufé se adiantou e disse:
- Nós estávamos procurando por vocês. Sabemos que vêm de longe, que trazem muitas riquezas e que possuem a semente milagrosa de uma planta que pode salvar a mim e a meu povo.
A fala firme e segura de Mufé deixou o Superior perplexo e, notando a sinceridade do menino, ordenou que lhes dessem de comer. Tinham pão preto, carne seca e paçoca de amendoim nos alforjes. Mais à vontade, Mufé se aproximou de um dos padres que carregava uma pequena bolsa pendurada ao pescoço, cheia de pinhões. Vendo que o menino o mirava com interesse, o jesuíta lhe perguntou:
- Gosta de pinhão? – estendendo a mão ofereceu a Mufé alguns daqueles pinhões. Mesmo sem entender, Mufé logo descascou as sementes e passou a comê-las. O que se seguiu foi algo digno de muita comemoração por parte da criança. Sentiu o corpo todo tremer, um imenso calor lhe subiu dos pés à cabeça, e entre gritos e saltos correu até sua mãe.
- Mãe, estou salvo! Estou curado! Veja como estou forte! Aconteceu o que Kuiã falou... – saltando e correndo, Mufé foi até ao padre que lhe dera os pinhões.
- Tem mais?
– Sim! - sorrindo admirado, o jesuíta lhe deu o picuá inteiro com todas as sementes.
- Eu não conheço este pinhão... Tão graúdo, tão gostoso!
- É o cajuvá, o pinhão mais nutritivo que existe.
Nengrei e Kokui, em silêncio, se entreolharam e entenderam o que se passava, ao ver o filho feliz e curado. Depois de relatarem tudo, contando toda a sua história ao padre Superior, se colocaram à disposição para guiar o grupo por aqueles ermos que tão bem conheciam.
Os jesuítas então lhes confidenciaram que estavam em fuga, que vinham sendo perseguidos por soldados imperiais e caçadores, e que precisavam encontrar um local seguro onde pudessem depositar e esconder as quarenta bruacas com os tesouros que transportavam.
Na manhã seguinte, guiados por Nengrei, Kokui e pelo saltitante Mufé, o grupo seguiu viagem. Ainda avistavam o casal de corvos brancos revoluteando no céu, que os acompanhava de longe.
Desciam do Campo dos Padres, caminhando lentamente em direção às Pirâmides de Urubici. Peraus medonhos, subidas íngremes, penhascos pontudos. Estreitas trilhas que ora subiam, ora desciam por ladeiras e labirintos rodeados de vegetação úmida. Homens e animais caminhavam cuidadosamente à beira dos abismos. Nengrei já avistava de longe o Morro da Igreja, imaginando os esconderijos da Pedra Furada como um imenso e seguro cofre para tanta riqueza. Os padres rezavam alto e entoavam cantigas de louvor a Nossa Senhora Mãe dos Homens. Haviam aprendido a confiar na família de Mufé, e seguiam pelas trilhas que eles indicavam.
Por fim, depois de alguns dias de viagem, chegaram ao topo do Morro da Igreja. Dali se descortinava um imenso panorama, formado por montanhas em sequência, que iniciavam com cores verdes mais escuras, até sumirem no horizonte pintado por nuances esbranquiçadas de perfis cinzentos. Diante deles surgia por entre as nuvens um imenso maciço de granito: a Pedra Furada. O grupo estacou diante do abismo. Os animais, assustados, negavam pros lados, rinchando e velhaqueando, sentindo a presença de algo terrível, que escapava à percepção dos humanos. O vento medonho levantava as barbas dos jesuítas, já molhadas pelo espesso nevoeiro.
- É lá! – afirmou convicto o guia Nengrei, apontando para o perau. - Lá embaixo há cavernas, socavões, furnas e grutas. Há bastante lugar para depositarmos esses tesouros. Ali eles estarão seguros e protegidos. Moram lá embaixo os espíritos mais terríveis. Nenhum ser humano, jamais chegará perto do tesouro.
Ao Superior pareceu oportuna tal estratégia. Descarregaram as bruacas e iniciaram a descida em direção às cavernas. Cinco homens foram escalados para a tarefa. À medida em que o pequeno grupo se aproximava das furnas, pendurados em cordas, tudo ia se transformando num verdadeiro inferno. O vento zunia de modo violento, deitando o mato ao redor. Bolas de fogo circulavam na boca da caverna. Sem mais, nem menos, tudo ficou escuro como o breu, e ante os olhos esbugalhados de Nengrei e dos jesuítas que o acompanhavam, da escuridão surgiu uma imensa cobra de fogo. Era o boitatá. O grupo caiu por terra, como atingido por um raio.
A gigantesca cobra tinha mil olhos, de onde saíam muitas chamas. De repente a cobra, levantando-se sobre o ventre, se transformou num tronco de pinheiro, também em chamas, ameaçando cair sobre o grupo e, de tronco em chamas, o boitatá começou a se parecer com um touro brabo, com gigantescos olhos em brasa, que escarvava o chão, soltando grandes labaredas pelas ventas. Logo virou cobra novamente, arrastando-se de forma ameaçadora.
- Não olhem para o boitatá! – gritava Nengrei. – Não olhem para ele! Quem olha para o boitatá fica cego!
O grupo parou, rosto colado no chão, olhos bem apertados e sem respirar. Aos poucos o barulhão foi sumindo e, quando Nengrei se arriscou a olhar, não mais viu o terrível monstro boitatá.
- Vamos! Vamos arrumar as coisas, depressa! – Todos se levantaram e começaram a gesticular para os de cima, para que enviassem as bruacas. Escolheram a caverna maior. Aos poucos tudo foi sendo colocado no fundo da escura gruta. Mal os homens haviam saído da furna, um grande estrondo aconteceu, e viram a boca da cova se fechar, transformando-se em rocha bruta. Num passe de mágica, a vegetação cobriu tudo, e tudo silenciou. O tesouro estava seguro.
Subiram pelas cordas, contando, assustados, aos outros o que sucedera. O padre Superior, então, ordenou que separassem algumas mulas, para continuarem a viagem. No escuro da noite partiram em direção ao litoral, em busca do Velho Mundo.
Nengrei, Kokui e Mufé, desceram a montanha, ladearam a cascata Véu de Noiva e retornaram para a aldeia. Doze luas cheias haviam se passado desde que partiram em busca do cajuvá.
Mufé, agora, estava completamente curado e se sentia forte e sadio. Passou a frequentar a antiga cabana do pajé, até que se tornou o novo Kuiã da tribo.
Ao ouvir semelhante história, as crianças permaneciam mudas. Tio Arcido reacendeu o palheiro, pigarreou, como sempre fazia, e finalizou:
- Os pinhões que Mufé trouxera no bocó foram plantados e, milagrosamente, cresceram de forma extraordinária. Em menos de um ano já estavam os pinheiros carregados de pinhas. Os membros da tribo, ao passarem pelo novo pinhal, levantavam as mãos e saudavam os pinheiros gritando: - Kaiowá! Kaiowá!
- Foi assim que o cajuvá chegou a Urubici...
- Nossa, Tio Arcido, que história bonita! – Comentou a menina com vestidinho de chita. E ele continuou:
- Os povos indígenas que habitaram a nossa região semeavam e plantavam pinheiros de diversas variedades.
- E tem muitos tipos de pinheiro, Tio Arcido? – perguntou o piazito de boné.
- Tem sim. – Respondeu Tio Arcido. – O pinhão macaco, por exemplo, começa a aparecer entre os meses de setembro e janeiro. Esse pinhão não se solta facilmente da pinha. A debulha dele é bem difícil.
- Macaco? Porque chamam de pinhão macaco? – Indagou outro gurizinho.
- Chamam de pinhão macaco, porque a pinha não se debulha sozinha. O pinhão não cai do pé; chega a brotar nos galhos. Os bugios comem esse pinhão lá em cima do pinheiro mesmo.
Tio Arcido se animou na conversa e continuou: - O outro pinhão, que vem em seguida, é o pinhão São José. Ele é mais clarinho, e amadurece pelos meses de fevereiro e março. Aí, então, começa a aparecer o que chamam de pinhão comum, aquele mais vermelhinho, que vai de abril a maio.
- E o cajuvá, Tio Arcido? O cajuvá chegou a Urubici, mas o senhor ainda não falou dele.
- É verdade. – Concordou Tio Arcido. O cajuvá é um pinhão mais escuro, mais graúdo, e ele amadurece mais tarde, de junho pra frente, podendo ir até setembro.
- Então temos pinhão durante o ano inteiro! – Concluiu um deles.
- É... parece que somente, no mês de agosto não temos pinhão por aqui.
A semente milagrosa do cajuvá havia chegado a Urubici para ficar.
As crianças que ouviam a história bateram palmas e se levantaram para abraçar Tio Arcido.